“Seria preciso não conhecemos a vida da cidade do Rio de Janeiro, mesmo nos seus dias anormais, para não compreendermos os acontecimentos de ontem que encheram de pânico e pavor toda a população. Houve de tudo ontem. Tiros, gritos, vaias, interrupção de trânsito, estabelecimentos e casas de espetáculos fechadas, bondes assaltados e bondes queimados, lampiões quebrados à pedrada, árvores derrubadas, edifícios públicos e particulares deteriorados.” - Gazeta de Notícias, 14 de novembro de 1904
Há um século, o povo do Rio de Janeiro pegou em armas contra a vacinação obrigatória. Quase um ensaio de golpe militar, o movimento recebeu o apoio de positivistas e do Exército.
Por Moacyr Scliar
Tudo começou no dia 10 de novembro de 1904 com uma pequena manifestação: estudantes – não raro são eles que começam estes movimentos – saíram às ruas gritando lemas de protesto, entoando canções satíricas. Houve confronto com a polícia, violência, prisões. No dia seguinte, novas manifestações, agora com troca de tiros indicavam que o conflito se ampliava. No dia 12, o número de pessoas nas ruas cresceu consideravelmente. Em passeata, os manifestantes dirigiram-se ao Palácio do Catete, sede do governo federal. Tiros foram parados contra o carro do comandante da Brigada Policial, o general Piragibe. O Exército entrou de prontidão. No domingo, dia 13, estava caracterizada a rebelião. O centro da cidade do Rio de Janeiro e os bairros adjacentes. Tijuca, Gamboa, Saúde, Laranjeiras, Botafogo, Rio Comprido, Catumbi e Engenho Novo, transformaram-se em campo de batalha. Bondes eram virados e incendiados, os lampiões de gás eram quebrados e começavam a surgir barricadas.
Cem anos depois dessas manifestações de violência, o modo costumeiro de explicá-las ainda é a rejeição popular à vacina contra a varíola. Como veremos, porém, essa interpretação é no mínimo simplista. Sim, a denominação de Revolta da Vacina ficou na história. Sim, havia resistência contra a vacina. Mas a Revolta foi mais, muito mais do que isso.
O Rio de Janeiro tornou-se o cenário preferencial para as mudanças que ocorriam no país. A então capital federal estava longe de ser a Cidade Maravilhosa, mais tarde cantada em prosa e verso. Apesar da beleza natural, a infraestrutura sanitária era precaríssima; o lixo acumulava-se nas ruas, sempre cheias de gente, o abastecimento de água era precário, esgoto praticamente inexistia. Por toda parte encontravam-se os quiosques, pequenos estabelecimentos de rua que vendiam alimentos sem nenhuma condição de higiene. A população viviam em cortiços, imensas habitações coletivas. Um deles tinha a entrada decorada com grotescas cabeças de suíno, de onde veio a expressão “cabeça de porco”. Nessa época, também surgia a favela. Este era o nome de um arbusto muito comum na região de Canudos. Os veteranos dessa campanha, regressando ao Rio, foram morar em um morro que ficou conhecido exatamente por essa denominação, Favela.
Grassavam doenças como febre amarela, a peste, a varíola. O que também tinha graves consequências econômicas. O Brasil era considerado um país perigoso, não por causa de violência, mas das enfermidades infecciosas. As agências europeias anunciavam viagens de navio direto para Buenos Aires, sem escala no Brasil. Privado do transporte marítimo, o Brasil não conseguia exportar café, principal fonte de divisas. Não havia dinheiro para pagar a enorme dívida externa, contraída sobretudo com bancos ingleses. A cafeicultura também era prejudicada em termos de mão de obra: os emigrantes eram particularmente vulneráveis à febre amarela.
O governo federal resolveu agir, então, em duas frentes: reforma urbana e combate a doenças. O presidente Rodrigues Alves, que assumiu o cargo em 1902, entregou a prefeitura de capital, então cargo de confiança, a Francisco Pereira Passos. Filho de um rico proprietário rural, Pereira Passos estudara engenharia e fora nomeado adido da legação brasileira em Paris, onde completara seus estudos e observara a reforma empreendida na capital francesa por Georges Eugène, barão Haussmann: bairros inteiros eram arrasados para dar lugar a largas avenidas e praças – o que facilitava o trânsito e evitava a formação das barricadas, que então caracterizavam as revoltas populares. Para implantar o modelo haussmaniano, Pereira Passos recebeu do governo amplos poderes.
Como em Paris, casas foram demolidas, ruelas estreitas foram alargadas, amplas avenidas foram construídas. Mas Pereira Passos tomou outras medidas contra “velhas usanças”: por exemplo, lojas não poderiam mais pendurar artigos em umbrais de portas, teriam de exibi-los em vitrines (como em Paris). Uma verdadeira guerra foi movida contra os quiosques. Era proibido, por decreto, urinar e cuspir nas duas. Até o candomblé e a capoeira foram severamente reprimidos por causa da “imoralidade”, O Rio civilizava-se, dizia o cronista João do Rio, mas nem todos estavam felizes com o processo civilizatório em curso, sobretudo com o “bota-abaixo”. Houve protesto, houve revolta. O proprietário de um casebre que ia ser demolido recusou-se a deixar o local. A demolição foi feita com o homem lá dentro.
Rodrigues Alves estava particularmente atento aos problemas de saúde pública. Rico fazendeiro de café, sabia da ameaça representada pela febre amarela aos emigrantes que trabalhavam na lavoura. Ele mesmo tinha perdido uma filha vítima da doença. Além disso, tinha interesse pessoal nas questões de saúde e de doença, chegando a frequentar reuniões científicas. Mas o presidente não poderia, claro, assumir o comando de luta contra as doenças. Alguém deveria cuidar disso. Mas, naquela época, não havia ainda Ministério da Saúde. As ações de saúde pública estavam a cargo do Ministério da Justiça e Negócios Interiores, cujo titular era J. J. Seabra. Para o cargo de diretor de Saúde Pública, equivalente ao do anual ministro. Seabra convidou seu médico particular e amigo Sales Guerra. Que não aceitou, mas indicou o seu colega e também amigo Oswaldo Cruz. E assim entrou na história do nosso país um personagem fascinante.
Surge a ciência brasileira
Em seu livro Gênese e Evolução da Ciência Brasileira, a historiadora e brasilianista americana Nancy Stepan vê em Oswaldo Cruz o pioneiro da ciência no Brasil, o que chama a atenção: na Europa, ciência estava associada à astronomia, à física, à química, com nomes como os de Galileu, Newton, Lavoisier. No Brasil a ciência surgiu de maneira diferente, por causa de Oswaldo Cruz. Mas quem era ele?
Oswaldo Gonçalves Cruz nasceu a 5 de agosto de 1872 na pequena cidade paulista de São Luís de Paraitinga, onde seu pai, Bento Gonçalves Cruz, trabalhava como médico.
O doutor Bento decidiu deixar o interior para morar no Rio de Janeiro. Lá conseguiu um emprego, que Oswaldo herdaria, como médico de uma fábrica de tecidos. Mais tarde, foi nomeado pelo imperador membro da Junta Central de Higiene Pública, um órgão federal que fiscalizava coisas como alimentos e condições de habitação. Oswaldo frequentou bons
Ao longo da história, apesar de suas intenções, Oswaldo Cruz foi um dos políticos mais atingidos pelas caricaturas das revistas políticas
colégios e, seguindo o exemplo do pai, estudou medicina. Não era um aluno brilhante: não gostava muito de clínica.
No decorrer do curso, porém, fez uma descoberta que mudou não apenas a sua carreira, mas toda a sua vida. Como ele próprio conta na sua tese de doutoramento sobre doenças transmitidas pela água (grafia da época): “Desde o primeiro dia em que nos foi facultado admirar o panorama encantador que se divisa quando se colloca os olhos na ocular dum microscópio; desde que vimos, com o auxílio desse instrumento maravilhoso os numerosos seres vivos que povoam uma gotta d'água; desde que aprendemos a lidar como o microscópio, enraizou-se em nosso espírito a ideia de que os nossos esforços intelectuaes d'ora em diante convergiram para que instruissemos, nos especialisassemos numa sciencia que se apoiasse na microscopia”.
Oswaldo não era exceção: todo estudante de medicina fica maravilhado quando olha pela primeira vez ao microscópio. Em primeiro lugar, é um mundo novo e fascinante que se descortina. Depois, trata-se de tecnologia, e tecnologia, na medicina moderna, representa um forte apelo. À época em que Oswaldo Cruz cursou a Faculdade de Medicina, a tecnologia ainda se reduzia a uns poucos recursos, entre eles o microscópio, que tinha atrás de si a figura gigantesca e já quase lendária de Louis Pasteur (1822-1895), cujo instituto era visto por muitos médicos como o “santuário” da medicina. Ali foram identificados germes causadores de muitas doenças. Para estes eram preparados soros e vacinas. Nessa época foi também introduzida a anti-sepsia, que consiste em usar a substância contra os germes. Tudo isso seria completado, já no século XX, com o desenvolvimento dos antibióticos. A admiração de Oswaldo pela microbiologia era explicável.
Em 1893 casava-se com a namorada de infância Emília, com a qual teria seis filhos. Ao mesmo tempo, via-se diante de um desafio: que rumo tomar na profissão? Emprego ele tinha, mas não lhe satisfazia. Decidiu aperfeiçoar-se microbiologia em Paris; afinal, lá ficava o Instituto Pasteur, lá estavam as grandes cabeças da especialidade. Problema: o sustento na Europa era caro; naquela época, bolsas de estudo praticamente não existiam. O sogro, homem rico, Dispôs-se a ajudar. Em 1896, Oswaldo seguia com a família para Paris.
Lutando contra a peste
Oswaldo estagiou em vários lugares, incluindo o Instituto Pasteur. Regressando ao Brasil, tentou ganhar a vida com o que aprendera. Abriu um serviço de urologia e um laboratório de análises. Também voltou para o emprego na fábrica de tecidos, no qual substituíra o pai. E ainda trabalhava, junto com outros médicos, numa policlínica. Mas em outubro de 1899 foi convidado a formar, com dois famosos cientistas de São Paulo, Adolpho Luiz e Vital Brazil, uma comissão encarregada de investigar casos suspeitos de febre bubônica em Santos.
Esse convite representava um reconhecimento oficial de suas qualificações. Oswaldo não hesitou em aceitá-lo. Fez os exames laboratoriais e concluiu que se tratava mesmo de peste. Seu relatório, porém, foi posto em dúvida. Peste era um diagnóstico sombrio, e as atividades do porto ficariam prejudicadas muitos capitães de navios se recusariam a atracar ali. Por causa disso o material foi enviado à Europa. Os laboratórios europeus confirmaram as conclusões de Oswaldo, cujo prestígio, evidentemente, cresceu.
Administradas de modo autoritário, as primeiras campanhas brasileiras de saúde pública foram mal recebidas por boa parte da população
O surto de peste gerou um enorme problema. O único e duvidoso tratamento para a doença era o soro antipestoso, preparado com a inoculação das bactérias causadoras da peste em animais (cavalos, geralmente), que fabricavam anticorpos como defesas. Além de não funcionar muito bem, tal soro tinha de ser importado da Europa. O governo federal decidiu, então, fabricá-lo no Brasil. Para isso criou dois institutos, um em São Paulo outro no Rio, Este último era dirigido pelo barão de Pedro Afonso, médico de grande clínica, professor da Faculdade de Medicina e aristocrata conhecido pela arrogância. O barão queria contratar, para diretor técnico, um cientistas estrangeiro. Para isso, pediu a Émile Roux, diretor do Instituto Pasteur, que lhe indicasse um nome. Roux ponderou que o Brasil já contava com um grande cientista: Oswaldo Cruz, O barão procurava longe o que estava perto.
Oswaldo Cruz trabalhou dois anos no Instituto Soroterápico. As desavenças entre ele e o barão eram frequentes. Oswaldo, embora mais moço e menos famoso, não levava desaforos para casa. Acabaram saindo os dois. Só que Oswaldo voltou. Como diretor. E aí foi indicado para o cargo de Diretor de Saúde Pública, com amplos poderes para enfrentar as pestilências no Rio de Janeiro.
Oswaldo enfrentou a tarefa com extrema competência. Era um notável cientista e um grande administrador, e capaz de muito autoritarismo. As primeiras campanhas foram dirigidas à febre amarela. Havia controvérsia acerca dessa doença: muitos médicos, inclusive professores da Faculdade de Medicina, achavam que a causa seria um hipotético bacilo transmitido pelos alimentos ou pelo solo. Oswaldo, baseando-se em trabalhos feitos em Cuba, defendia a hipótese da transmissão por mosquitos, e organizou brigadas de mata mosquito para – dentro do espírito de campanha, um terreno militar – combater os focos dos insetos.
Apesar do ceticismo da imprensa – ele era um alvo predileto para os caricaturistas e humoristas – e de boa parte da população, a campanha teve êxito: os casos de febre amarela diminuíram diminuíram consideravelmente. A seguir, voltou sua intenção para a peste bubônica. Tratava-se de desratizar a cidade e, para isso, Oswaldo lançou mão de um expediente: assim como a recente campanha contra armas, ele pagava por ratos mortos. DE novo, a gozação foi enorme – e aumentou quando apareceu um cidadão chamado Amaral, que criava ratos para vender o governo. Mas, de novo, a campanha teve êxito.
A Revolta da Vacina
O alvo seguinte seria a varíola, para a qual já existi, havia mais de cem anos, uma vacina, introduzida por um médico inglês chamado Edward Jenner. Segundo a tradição, quem deu a Jenner a ideia da vacina foi uma camponesa: ela afirmou ao médico que não teria varíola porque ordenhava vacas portadoras de uma doença chamada vaccinia, a varíola das vacas. As lesões da vaccinia eram leves e, de fato, imunizavam contra a varíola. Hoje se sabe que os vírus dessas doenças são parecidos, mas à época sequer se suspeitava da existência deles. Mesmo sem conhecer a causa da doença. Jenner teve então a ideia de extrair o líquido das lesões da vaccinia e aplicá-lo em pessoas, conseguindo assim imunizá-las. A vacina antivariólica foi o primeiro imunizante a ser utilizado pela saúde pública. Mas, para funcionar, era necessário que um número grande de pessoas fosse vacinado.
Por meio de um novo regulamento sanitário, logo foi apelidado de “código de torturas”, Oswaldo Cruz tornou a vacinação obrigatória. Essa medida foi muito mal recebida pela população. Dizia-se que a vacina poderia matar ou, no mínimo, deixar a pessoa com cara de bezerro. Também corria o rumor de que as vacinas eram feitas com sangue de rato – aqueles mesmos que o governo comprara na campanha contra a peste.
Mas ainda: a vacina era aplicada com uma espécie de estilete, nos braços ou nas pernas. Isso, para mulheres, configurava uma ofensa ao pudor, coisa que os vacinadores, às vezes pessoas grosseiras, não levavam em conta. Dizia uma canção da época: “Chega o tipo e logo vai/enfiando aquele troço,/ lanceta e tudo mais (…)/ A lei manda que o povo,/ o coitado do freguês,/ vá gemendo pra vacina,/ ou então vá pro xadrez./ Eu não vou neste arrastão/ sem sofrer o meu barulho”.
Como se tudo isso não bastasse, havia ainda uma importante questão trabalhista: para conseguir emprego, era necessário o atestado de vacinação, fornecido por médicos particulares, que cobravam pelo documento. Isso deixava indignado o nascente movimento sindicalista brasileiro. O Centro da Classe Operária, formado sobretudo por marítimos e dirigido por Vicente de Souza, organizou um abaixo-assinado contra a obrigatoriedade da vacina, que foi assinado por mais de 15 mil pessoas, incluindo muitos militares. Também se opunham à medida os positivistas, que valorizavam a ciência, mas viam na vacinação um atentado contra a liberdade individual, um “despotismo sanitário”, nas palavras do líde positivista Teixeira Mendes, ele próprio um médico. Finalmente, havia a posição política, que incluía os monarquistas, ainda insatisfeitos com a Proclamação da República.
Com tanta gente contra a vacinação, não é de admirar que em 10 de novembro de 1904 tenha eclodido uma revolta, a Revolta da Vacina. Durou cerca de duas semanas e transformou o Rio de Janeiro num cenário de guerra. Atrás de barricadas, os insurgentes enfrentavam as tropas do governo, que teve de mobilizar até a Marinha. Vários líderes surgiram então, o mais conhecido deles foi um capoeira conhecido como Prata Preta que se destacou pela coragem e pela astúcia. O bairro que mais resistia era o da Saúde, no centro velho do Rio, e que ficou conhecido pelo apelido de Porto Arthur, este o nome de uma cidade que, na guerra russo japonesa então em curso, era foco de ferozes combates.
A triste e velha história da epidemia
Doenças e epidemias acompanham a humanidade há milênios. Marcas de varíola são visíveis em múmias egípcias e, na Bíblia, encontramos uma longa descrição dos sinais de lepra. Um problema que se agravou com o advento da modernidade o processo de urbanização concentrou pessoas, favorecendo a transmissão de doenças, e as viagens marítimas traziam de longe os agentes infecciosos da peste bubônica. Trata-se de uma enfermidade causada por uma bactéria, transmitida pela pulga do rato. Uma das epidemias conhecida como a Peste Negra (1348), liquidou grande parte da população europeia de então.
Depois do século XVI, os europeus levaram enfermidades para o Novo Mundo. Uma delas era a varíola, doença causada por um vírus que passa de uma pessoa para outra – portanto, a varíola é uma doença contagiosa. Manifesta-se por pústulas, que são lesões cheias de pus, e que se espalham por todo o corpo, sobretudo na face. “Quem gosta de cara é varíola” era uma expressão muito usada no Brasil. Estas pústulas, quando cicatrizavam, deixavam feias e persistentes marcas. Isto quando a varíola não matava, o que acontecia com frequência.
A varíola ajudou Hernan Cortés a conquistar o México. Os nativos era muito suscetíveis a essas doenças, para as quais o seu organismo não tinha defesas; até gripe podia matá-los. Quando os europeus se deram conta disso, recorreram a uma variedade de guerra biológica. Deixavam nas trilhas dos índios roupas contaminadas. Os indígenas vestiam-nas, contraiam a doença e morriam como moscas. (M. S.)
Quase um golpe militar
Positivista destacado era também o paranaense Lauro Sodré, general, senador e líder de grande prestígio, considerado o herdeiro de Floriano Peixoto. Ferrenho opositor do governo, Sodré não atacava apenas a vacinação a: denunciava o domínio do país pela oligarquia cafeeira da qual Rodrigues Alves era representante. Era preciso, argumentava, diversificar a agricultura e estimular a industrialização. Sodré assumiu a presidência da Liga contra a Vacinação Obrigatória, fundada a 5 de novembro de 1904, no Centro da Classe Operária. Em seu discurso, fez um protesto veemente: “Esse governo só tem o rótulo de republicano, porque isso que nós temos como forma de governo é uma república falsificada. À nação assiste o direito de repelir a força pela força... Essa lei iníqua, arbitrária e deprimente provoca a reação, que deve ser feita por todos os meios, inclusive à bala”.
Tão logo começaram os protestos de rua e os choques com a polícia, o senador Lauro Sodré e o general Silvestre Travassos dirigiram-se à Escola Militar, na Praia Vermelha, e prenderam o seu comandante, general Alípio de Macedo Costellat, obtendo adesão em massa dos cadetes, cerca de 300 deles. Marcharam para o Palácio do Catete, entrando em choque, na rua da Passagem, com as tropas do 1° Regimento de Infantaria e da Brigada Policial, à frente das quais estava o general Carlos da Silva Piragibe. No combate, de resultado indefinido, Sodré e Travassos foram feridos.
No dia 15, feriado nacional, operários de fábricas do Jardim Botânico fizeram barricadas, Batalhões de Minas e São Paulo chegaram para reforçar as tropas federais. Barricadas apareceram também nos bairros do centro da cidade. A batalha final deu-se no bairro da Saúde, onde as barricadas, com bandeiras vermelhas, estavam montadas ao longo de toda a rua da Harmonia. Precariamente armados com garruchas e navalhas, os rebeldes recorriam a truques – como um simulacro de canhão, feito com um poste de iluminação.
O ataque, iniciado pela polícia e pelo Exército – depois apoiados pela Marinha – encontrou forte resistência. O saldo da revolta foi 30 mortos, 110 feridos e 945 prisioneiros, dos quais 454 enviados para o Acre. O General Travassos morreu dos ferimentos recebidos; Lauro Sodré ficou detido dez meses em um navio de guerra. Os cadetes da Escola Militar foram desligados e o estabelecimento passou a funcionar no Realengo.
Finalmente, sufocou-se o movimento com muitos mortos e dezenas de prisioneiros. O governo recuperou o controle da situação, mas a verdade é que a imagem de Oswaldo estava muito prejudicada. Sua demissão do cargo parecia questão de tempo. A vacinação obrigatória foi suspensa (com resultado desastroso: em 1908 eclodiu novo surto, com quase 10 mil casos). Estava claro que Oswaldo Cruz já não teria o mesmo poder, ainda que posteriormente e, graças a um prêmio internacional, houvesse recuperado o prestígio. Acabou deixando o cargo de Diretor de Saúde Pública para fundar o instituto de pesquisas que hoje leva o seu nome. Participou ainda de viagens pelo interior do Brasil, sempre ligadas a problemas de saúde pública; e foi nomeado prefeito da cidade de Petrópolis, RJ, onde teve muitas desavenças com proprietários locais. Faleceu em fevereiro de 1917.
Pode-se extrair da Revolta da Vacina uma lição até hoje válida: não dá para fazer saúde pública sem o público, sem a população devidamente motivada e mobilizada. Vacinar pessoas não é a mesma coisa que vacinar gado. É preciso levar em conta fatores psicológicos, sociais e culturais. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, até médicos manifestavam-se contra a vacinação. Num artigo do New York Journal of Medicine, em julho de 1899, dizia Charles Rauta, professor de Higiene: “A vacinação é uma monstruosidade”. Palavras que encontravam eco em Barata Ribeiro, médico, senador, professor da Faculdade de Medicina do Rio que declarava: “Prefiro morrer a me vacinar”.
Seria, portanto, necessário comunicar-se com a população, informá-la e esclarecer suas dúvidas. Mas isso Oswaldo Cruz não chegou a fazer. Em parte, talvez, por causa do autoritarismo então comum entre os médicos, sobretudo os sanitaristas. Em parte, também, porque não contava com meios de comunicação de massa adequados. Na época, aquilo que hoje conhecemos como mídia, restringia-se aos pasquins e aos jornais – que eram, em sua maioria, contra o governo e que, além disso, não tinham muitos leitores, numa época em que a maioria da população era analfabeta.
Mas a saúde pública brasileira aprendeu, sim, esta lição. Informar as pessoas faz parte de qualquer programa de controle de doenças. As vacinas, devidamente aperfeiçoadas, são hoje bem aceitas; mães e pais acorrem em massa aos postos de vacinação, trazendo seus filhos. Oswaldo Cruz lidara hoje com um país diferente. Mar a verdade é que Oswaldo Cruz, hoje, também seria um homem diferente.
MOACYR SCLIAR é autor de obras como o Centauro no Jardim (Companhia das Letras – 2004) e Sonhos Tropicais (1992), adaptado para o cinema por André Sturm em 2002.
fonte: História Viva, setembro de 2004, páginas 83 a 88.