(Pesquisadora Patricia Ramos Novaes - INCT Observatório das Metrópoles) 1. Os primeiros debates sobre o fenômeno da gentrificação no Brasil, bem como em outros países da América Latina, surgiram a partir dos anos 2000 relacionados à adesão dos governos estaduais e municipais a políticas de “renovação” e “revitalização” urbana. Em muitas cidades brasileiras, essas políticas vêm primando pelo embelezamento, reordenamentos habitacionais e criação de novos espaços de cultura e lazer destinadas às classes média e alta. Percebeu-se que alguns territórios populares nas cidades brasileiras sofreram elitização e por isso na década seguinte, o conceito de gentrificação passou a ser acionado não só por pesquisadores nas suas análises acadêmicas, mas também pelos meios de comunicação e por movimentos populares que sentiram os efeitos da elitização nos espaços em que vivem.
2. Muitos estudos já apontaram que o conceito de gentrificação foi sendo ampliado justamente para dar conta de novas experiências que a teoria clássica da gentrificação não conseguia explicar. Dentre elas, as experiências mais atreladas às transformações no padrão de lazer, turismo e entretenimento daquelas atreladas ao padrão residencial, no qual verifica-se a atração da população de classe média, em maior medida, para consumir do que para estabelecer moradias, tal como apontado na literatura sobre gentrificação comercial e gentrificação turística. Na cidade do Rio de Janeiro, a literatura relaciona o fenômeno da gentrificação essencialmente a três localidades: a região portuária, o bairro da Barra da Tijuca e as favelas da zona sul. De acordo com algumas pesquisas , a região portuária pode vir a sofrer processos de gentrificação, na medida em que as obras de “revitalização” da região vêm transformando o espaço físico, com a construção de museus e a reurbanização do espaço público, mas também buscando atrair novos consumidores de classe média (público alvo do projeto), através da mudança das representações negativas da região.
3. O local pobre e degradado da região portuária está sendo reinventado como local da cultura, do “business” e do futuro. E por outro lado a herança negra e popular da região vem sendo tratada como passado. Além disso, uma parte da população da região portuária foi removida e reassentada em outras partes da cidade e o Plano de Habitação de Interesse Social desenvolvido para a região no ano de 2015 não foi, até o momento, executado permanecendo sem perspectivas para sua implementação . Além da área portuária, pesquisas apontam que a expansão do bairro da Barra da Tijuca, na zona oeste da cidade, também vem promovendo processos de gentrificação. Este bairro de classe média-alta que tem como características a ocupação predominantemente por complexos condominiais de edifícios de altos padrão, shopping centers e centros comerciais e empresarias, vem se expandindo para os bairros contíguos (Camorim, Curicica, Jacarepaguá) de padrão médio e baixo. Esses bairros de expansão vêm se constituindo em um novo nicho do mercado imobiliário, especialmente após as obras de infraestrutura e outros investimentos na região para abrigar modalidades dos Jogos Olímpicos de 2016 que se concentraram nesta região.
4. Por outro lado, diversas favelas presentes nestes bairros foram removidas ou ameaçadas de remoção. O caso mais emblemático foi a favela Vila Autódromo que se localiza ao lado do local escolhido para construção do parque olímpico, onde se concentrou grande parte das modalidades dos jogos e, também, onde se construiu a vila dos atletas, os conjuntos residenciais de médio e alto padrão que serviram para abrigar as delegações esportivas e após os jogos foram comercializados. Mesmo com intensa resistência das famílias que levou a uma grande mobilização de setores da sociedade civil, universidades, defensores públicos, vereadores e deputados, cerca de 500 famílias foram removidas com o discurso do risco ambiental, pois se localiza próximo a uma lagoa. Mas a organização e resistência das famílias garantiu a permanência de cerca de 30 famílias e a execução de obras de urbanização no local.
5. Na zona sul, pesquisas mais recentes vêm apontando processos de gentrificação em favelas. Em geral elas apontam mudanças no padrão dos comércios e serviços, no perfil da população que circula e consome estes serviços, além do encarecimento do custo de vida e novas oportunidades criadas para venda e aluguel de imóveis por valores nunca praticados na favela . Observou-se, também, que nos espaços onde antes ocorriam os bailes funk passaram a ser ocupados por outros sons, como soul music, samba e jazz e esses espaços cobravam valores de ingressos inacessíveis aos moradores . Outras análises apontam que a distribuição de títulos de propriedade decorrente da regularização fundiária em algumas favelas na zona sul, gerou processos de privatização de estoques de terras públicas. Tal fato poderia caminhar para legitimação de processos de gentrificação, na medida em que criou novas condições de mercado em territórios que vêm passando por um forte processo de requalificação econômica, social e cultural .
6. Porém, o que nos parece mais pertinente até agora nos estudos sobre gentrificação na cidade do Rio de Janeiro, especialmente nas favelas, é que este fenômeno não se estabeleceu completamente, sendo um processo em aberto. Isso se deve a uma série de motivos. No caso das favelas, o peso simbólico dos territórios da ilegalidade, da violência e da marginalidade parece funcionar como um bloqueio ao pleno desenvolvimento dos experimentos de gentrificação. Outros bloqueios parecem derivar das características físicas das favelas e da fragilidade das políticas públicas voltadas para esses territórios, especialmente a política de segurança, a política de habitação e a política de urbanização. E não podemos deixar de observar as mobilizações dos moradores que fazem frente ao processo de exclusão, permanecendo e resistindo nas favelas. A política de segurança pública, através do programa de polícia “pacificadora”, parece ter garantido a penetração do mercado nestes espaços, o que pode ser notado pela quantidade de bares, bistrôs, hostels, agências de turismo que abriram desde a implementação das Unidades de Polícia Pacificadora – UPP nestes territórios, seja de empreendedores externos a favela, seja de moradores.
7. Além disso, percebeu-se a revalorização dos prédios localizados na área formal no entorno das favelas. Por outro lado, o programa de polícia “pacificadora” não rompeu o padrão de atuação repressivo nestes territórios. De fato, em algumas favelas notou-se a minimização dos tiroteios que tanto alteravam as dinâmicas de sociabilidade e de entrada e saída nas favelas. No entanto, as “duras”, as revistas vexatórias e o uso ostensivo das armas pelos policiais permaneceram, demostrando que a militarização nas favelas nunca deixou de existir. Cabe mencionar, ainda, que a partir do ano de 2016 quando o projeto de polícia “pacificadora” ganha claros sinais de enfraquecimento, ocorreram inúmeros confrontos da polícia com traficante dentro das favelas, resultando em mortes tanto de moradores, quanto de policiais. Pode-se dizer que a política urbana, através dos programas PAC-favelas e Morar Carioca , propiciou algumas melhorias na infraestrutura nas favelas, porém não alcançou o que se pretendia, além de ter levado a processos e tentativas de remoções de moradias, nas quais algumas não se consumaram em razão da resistência e mobilização dos moradores.
8. Neste sentido, essa política não alterou as condições urbanas em termos de esgotamento sanitário, limpeza urbana, condições de habitabilidade, iluminação, entre outras. Ao contrário, as condições urbanas permanecem precárias se comparadas com as condições urbanas dos bairros nos quais as favelas estão inseridas. Já as políticas sociais organizadas no âmbito do programa Rio+Social , embora tenham contribuído para o acesso da população a alguns serviços que levaria à promoção da cidadania, como saúde, educação e capacitação para o trabalho, demostrou não terem sido eficazes. Por outro lado, propiciou o estímulo ao empreendedorismo, fundado na ideologia do sucesso individual, o que envolve certa ilusão, na medida em que poucos possuem habilidades ou condições financeiras de atingir este ideal. Assim, aqueles que tinham mais condições de aproveitar a oportunidade para terem fontes de renda foram beneficiados pela nova realidade, enquanto muitos tantos ainda vivem na insegurança e precariedade.
9. A questão é que a introdução da dinâmica de mercado com ausência de mecanismos de regulações estatais, levou à especulação imobiliária e ao aumento dos valores de venda e aluguel praticados nas favelas. Como resultado, gerou-se processos objetivos e subjetivos de aumento do custo de vida e deslocamentos de moradores para outras partes da cidade e até mesmo para dentro das favelas. Além disso, essa dinâmica do mercado levou a mudanças no padrão dos comércios e serviços nestes territórios. Para além do surgimento de espaços voltados ao turismo e ao consumo da classe média, viu-se o aumento dos valores praticados em alguns comércios tradicionais que buscaram se adequar às novas demandas. Neste sentido, entendemos que os processos de mercantilização e “integração” da favela à cidade pelo consumo encontraram algumas barreiras. Além das apontadas acima, lembramos as tentativas de organização da sociedade local que denunciaram a não correspondência entre os deveres que tiveram que assumir abruptamente e a qualidade dos serviços públicos prestados.
10. Mas também é preciso levar em consideração que esses experimentos ocorrerem em territórios de favelas, marcados por uma configuração física bastante peculiar, por serem morros com alta densidade demográfica nas áreas ocupadas. Além disso, combinam estruturas viárias bastante precárias, que muitas vezes se tornam uma verdadeira barreira para um projeto de expansão urbana. Em suma, o pretendido resgate das favelas, através das políticas públicas e do acesso ao mercado formal, esteve longe de assegurar à população local a expansão da cidadania, através da garantia dos direitos sociais mais amplos, como moradia digna, mobilidade, saneamento, saúde, educação, cultura, segurança, expandindo, assim, o direito à cidade. Essa afirmação parte das percepções de que as políticas públicas voltadas a esses territórios não cumpriram sua função integradora e de reguladora do mercado.
11. Por estes motivos, achamos pertinente acionar a ideia de gentrificação periférica para interpretar as experiências de elitização que as favelas da zona sul da cidade vêm passando. Esta ideia refere-se ao entendimento de que as favelas permaneceram como territórios populares e estigmatizadas pela marginalidade, porém com algumas partes destes espaços sofrendo processo de elitização, principalmente em termos do padrão de serviços e comércios ofertados, reforçando as dinâmicas de exclusão e reproduzindo, na escala micro, a estrutura socioespacial desigual e combinada de formalidade e informalidade da cidade.
Ex-Blog do Cesar Maia