Svante Pääbo foi o vencedor do prêmio pela revolucionária ideia
Em uma época em que a maioria dos geneticistas voltava-se para entender o genoma humano, um especialista sueco teve uma ideia ainda mais ousada. E se conseguíssemos extrair material genético de fósseis dos ancestrais do homem moderno? Para surpresa de muita gente, a ideia funcionou.
O reconhecimento maior chegou nesta segunda-feira ao autor dessa ideia. O Prêmio Nobel de Medicina deste ano foi concedido a Svante Pääbo. Ele dedicou pelo menos três décadas à tentativa de extrair material genético de fósseis de mais de 40 mil anos. Sua obstinação revelou o até então inédito genoma dos neandertais (Homo neanderthalensis). E fundou um novo campo da ciência: a paleogenética.
Segundo a Assembleia Nobel do Instituto Karolinska de Estocolmo, responsável pela homenagem, as descobertas do cientista do Instituto Max Planck de Antropologia Evolucionária de Leipzig "oferecem a base para explorar o que nos faz unicamente humanos".
O Instituto Karolinska destacou que ele desenvolveu um trabalho considerado até então impossível: "sequenciar o genoma de um neandertal, um parente extinto dos humanos de hoje. "Também fez a sensacional descoberta de um hominídeo extinto, o denisovano, completamente com base em dados de genoma recuperados de uma amostra de osso do dedo mínimo, encontrado em bom estado de preservação em uma caverna siberiana".
O especialista é filho de outro Nobel de Medicina, o bioquímico Sune Bergström, que ganhou a homenagem em 1982 por sua pesquisa sobre as prostaglandinas, substâncias similares a hormônios que regulam vários processos no organismo. Pääbo era filho de um relacionamento extraconjugal de Bergström e tinha contato restrito com o pai.
Em entrevista à imprensa, ele disse ter ficado surpreso com a homenagem. Ao receber a ligação da Suécia pela manhã, o cientista, que vive na Alemanha. achou que era o aviso sobre algum problema com sua casa de verão, que mantém em seu país natal. "Achei que era para falar que o cortador de gramas havia estragado!"
A publicação do genoma dos neandertais, em 2010, abriu caminho para responder a questões que atormentavam os cientistas desde que os primeiros fósseis da espécie foram descobertos na Alemanha, em 1856. Por exemplo: como esses hominídeos se relacionaram com os humanos modernos (Homo sapiens) e o que os tornava diferentes de nós.
Até as primeiras pesquisas de Pääbo serem divulgadas, acreditava-se que o DNA jamais poderia ser extraído de fósseis milenares - nem muito menos sequenciado. Acreditava-se que o material genético tende a se degradar com o passar do tempo.
Além disso, as amostras pesquisadas podem facilmente ser contaminadas por DNA dos cientistas responsáveis pela pesquisa. Isso tornaria difícil distinguir o que seria novo do que seria mais antigo. Bactérias também podem deixar material genético em fósseis, aumentando a confusão.
"Me lembro bem dele, há 25 anos, tentando sequenciar o DNA de fósseis e das pessoas dizendo que aquilo era completamente impossível, que ele não ia conseguir nada, que o DNA não tinha estabilidade", contou o geneticista francês Hugo Aguilaniu, diretor-presidente do Instituto Serrapilheira.
"Além de desenvolver técnicas de preservação, ele conseguiu fazer um sequenciamento mais refinado, inferindo os trechos que faltavam. Juntando tudo isso, conseguiu fazer o sequenciamento genético com um grau de eficácia muito bom. Hoje, ele é uma referência da paleogenética. Atualmente, ninguém concebe um estudo paleológico sem análise genética."
O prêmio Nobel foi concedido ao cientista por ele ter conseguido driblar todos os problemas técnicos e decifrar o código genético de nossos parentes extintos mais famosos, a partir de uma amostra de 40 mil anos. O trabalho revelou que os neandertais eram diferentes dos humanos modernos, mas se relacionaram com eles.
Humanos modernos e neandertais compartilharam um ancestral comum que viveu há cerca de 600 mil anos. Pääbo e sua equipe também descobriram evidências genéticas de que, durante períodos de coexistência, humanos modernos e neandertais tiveram filhos juntos.
"Pääbo começou esse trabalho de arqueologia genética e foi evoluindo nessa área até criar o Instituto Max Plank, de biologia evolucionária", lembrou o geneticista Sergio Penna, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), integrante da Academia Brasileira de Ciência (ABC).
"Ele conseguiu demonstrar, por exemplo, que, atualmente, os seres humanos da Europa ainda carregam de 3% a 4% do DNA neandertal, comprovando a miscigenação. É uma pessoa espetacular e o prêmio é muito merecido."
Pääbo esteve no Brasil em 1992, a convite de Sérgio Penna. O geneticista brasileiro chegou a enviar ao laboratório do cientista sueco amostras de Luzia - o fóssil mais antigo de hominídeo achado no Brasil, de 11 mil anos. A ideia era tentar sequenciar seu DNA.
"Com a tecnologia da época, era impossível", contou. "Embora os neandertais sejam muito mais antigos, seu DNA foi mais bem preservado do que o de Luzia." Neandertais viveram na Europa até desaparecerem há cerca de 30 mil anos por motivos que, até hoje, permanecem obscuros. Ancestrais dos humanos modernos surgiram na África. Depois migraram para a Europa e a Ásia. Nessas regiões, se misturaram a outros hominídeos.
Dessas misturas surgiram alterações genéticas que permitiram as espécies sobreviver em diferentes ambientes. Essas alterações incluem, por exemplo, variantes genéticas que ampliam nossa capacidade de viver em altas altitudes. Também aprimoram a forma como nosso sistema imunológico responde à infecção.
Pääbo também descobriu outra espécie de hominídeos até então desconhecida: os denisovans. Segundo o comitê do Nobel, os trabalhos ajudaram na compreensão da história evolutiva dos humanos modernos e de como eles se espalharam por todo o planeta, enquanto as demais espécies desapareceram.
"Ele trabalhou na fronteira do conhecimento, desenvolveu tecnologia para extrair DNA de fósseis", resumiu o paleontólogo Alex Kellner, diretor do Museu Nacional, no Rio. "O desenvolvimento desse tipo de tecnologia, nos faz pensar até que ponto poderíamos adaptar essas técnicas para extrair material genético de fósseis ainda mais antigos."
Desde o ano passado, tem havido expectativa sobre a premiação ser dada aos desenvolvedores da vacina de RNA contra a covid-19 - em especial para a pesquisadora húngara radicada nos Estados Unidos Katalin Kariko -, mas os responsáveis pela láurea costumam esperar alguns anos para que a descoberta científica se consolide.
Agência Estado e Correio do Povo