Além do déficit habitacional de quase 6 milhões de residências, muitos ainda precisaram enfrentar a ameaça de despejo
| Foto: Fabiano do Amaral
Por Giullia Piaia
A falta de acesso a moradia é um problema crônico no Brasil. O déficit habitacional de quase 6 milhões de residências une milhares de pessoas na busca por uma habitação digna. Durante os primeiros meses da pandemia de Covid-19, quando a principal recomendação médica e governamental era para que as pessoas ficassem em casa, mais de 175 movimentos e organizações sociais de todo o Brasil, já engajados na causa, se juntaram na Campanha Despejo Zero, lançada em julho de 2020. A ação visa a suspensão dos despejos e remoções que resultem em famílias e comunidades sem abrigo durante a pandemia.
Segundo dados da campanha, houve um aumento de 602% no número de famílias ameaçadas de despejo desde o início da pandemia, em março de 2020. Em fevereiro deste ano, quando foram coletados os últimos dados disponíveis, 132.291 famílias estavam em perigo de perder a moradia. Em outubro de 2021, foi promulgada a Lei 14.216 que, por razões de emergência em saúde relativas à pandemia, suspendia, até 31 de dezembro daquele mesmo ano, o cumprimento de medida judicial, extrajudicial ou administrativa que resultasse em desocupação ou remoção forçada coletiva em imóvel privado ou público, exclusivamente urbano.
Posteriormente, a proibição foi estendida duas vezes por decisão do ministro Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), que também pediu a inclusão da proteção a ocupações rurais nos mesmos parâmetros. A última delas, no último dia 30 de março, prorrogou a vigência da lei até 30 de junho de 2022. Em sua decisão, Barroso cita como razão para a extensão os efeitos ainda vigentes da pandemia, tanto sanitários quanto econômicos. “No contexto da pandemia da Covid-19, o direito à moradia está diretamente relacionado à proteção da saúde, havendo necessidade de se evitar ao máximo o incremento do número de desabrigados”, decidiu.
Porém, as determinações não foram capazes de impedir que mais de 4 mil famílias fossem despejadas desde o início da vigência da lei. “Teve muitos lugares que a gente viu realmente se cumprirem as suspensões, porém a campanha recebeu muitos casos em que as pessoas denunciaram despejos e ameaças de despejo”, diz Cristiano Muller, advogado do Centro de Direitos Econômicos e Sociais, organização não governamental que apoia o Despejo Zero. A campanha foi diretamente responsável por 106 casos de suspensão de despejos, frutos da atuação popular e de entidades de defesa.
O ministro Barroso, entretanto, reforça que com o fim, ou o controle, da pandemia, não caberá mais ao STF jurisdicionar sobre o tema. “Isso porque embora possa caber ao Tribunal a proteção da vida e da saúde durante a pandemia, não cabe a ele traçar a política fundiária e habitacional do país”, escreveu. A Constituição de 1988 consagra a moradia como um direito social, juntamente com a educação, saúde, alimentação, trabalho, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados. Doze direitos que, se cumpridos, garantem aos brasileiros uma vida digna.
O direito à moradia foi acrescentado à lista por Emenda Constitucional no ano 2000 e complementado pelo Estatuto da Cidade em 2001. Lei que estabelece “normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”.
Constituição consagra moradia como direito
Além das leis nacionais, outros acordos garantem o direito à moradia. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual, como membro da Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil é signatário, reconhece a moradia adequada como um direito fundamental do cidadão, que não se resume apenas em um teto com paredes, mas no acesso a um lar com segurança da posse, disponibilidade de serviços, infraestrutura e equipamentos públicos, custo acessível, localização adequada, habitabilidade e adequação cultural.
Apesar de todas as garantias, o déficit habitacional é crescente no Brasil: de 5,65 milhões em 2016 aumentou para 5,87 milhões em 2019, 8% do total, conforme pesquisa da Fundação João Pinheiro. Deste número, 79% são de famílias de baixa renda. Engana-se, porém, quem pensa que o déficit habitacional trata apenas de famílias ou pessoas sem casa. Ele não é absoluto. O cálculo abrange as habitações precárias, a coabitação (quando mais de uma família divide a mesma moradia) e o ônus excessivo com aluguel, quando há destinação de mais de 30% da renda domiciliar de até três salários mínimos com despesa de aluguel.
Afora o déficit habitacional, o Brasil sofre com a inadequação dos domicílios. Moradias sem acesso à infraestrutura urbana adequada – abastecimento de água, esgotamento sanitário, coleta de lixo e energia elétrica –, com inadequação edilícia – cômodos (exceto banheiros) servindo como dormitórios, ausência de banheiro de uso exclusivo, cobertura inadequada e piso impróprio – e inadequação fundiária, que corresponde aos imóveis em terrenos não próprios ou sem permissão de uso.
Regularização fundiária deve estar entre as prioridades
São várias as razões que tornam a aplicação do direito à moradia um desafio. Para a pesquisadora e professora de Direito Ambiental e Urbanístico Betânia Alfonsin, há um marco claro de quando os problemas relativos a isso começaram no Brasil: a abolição da escravatura. “Os mais de 5 milhões de pessoas que foram sequestradas na África e escravizadas no Brasil foram libertas sem lugar para morar. Então, começaram a produzir suas moradias com o resto de material que encontravam na rua. No Rio de Janeiro, temos favelas com mais de 130 anos, que são contemporâneas da abolição.” A professora também aponta a existência do que descreve como “cultura da propriedade” no país. “Outros países trabalham com arrendamento, aluguel social, direito de superfície, que separa o direito de propriedade do direito de construir”, explica.
A regularização fundiária é um dos passos mais importantes na garantia do direito à moradia. “Em uma perspectiva ideal, ela inclui a titulação dos imóveis. Então, aquela pessoa que está com medo de ser despejada passa a ter um título que lhe dá a segurança da posse, por exemplo, um título de propriedade ou de uso”, exemplifica. Mas a garantia da posse não supre por si só o direito à moradia. “Isso é importante, porque muitas vezes as pessoas acham que levar outras para uma casa no fim do mundo é garantir direito à moradia, mas não é”, frisa Alfonsin, observando que também é necessário melhorar as condições habitacionais, garantir o acesso à água potável e energia elétrica de maneira regular, assim como ligação ao esgoto sanitário, drenagem das águas pluviais, iluminação pública e pavimentação.
De acordo com a professora, a “cultura da propriedade” se transpõe para as políticas habitacionais, fazendo com que o único instrumento jurídico visto como válido e eficaz para garantir o direito à moradia seja a propriedade. Mas a professora discorda desse pensamento. “Esse direito pode ser garantido através de várias políticas públicas, ao contrário do que o senso comum imagina, que é só produção habitacional”, complementa Alfonsin. “As prefeituras, os estados da federação e a União têm a obrigação de garantir direito à moradia. Acaba caindo o problema com as prefeituras porque são elas que estão lá na localidade”, clarifica Muller.
Existem instrumentos no Estatuto da Cidade que permitem que o poder municipal exerça um papel de policiamento administrativo em matéria urbanística, identificando imóveis vazios ou subutilizados e notificando os proprietários para que haja um aproveitamento adequado ao local. Aos proprietários que não cumprem com o dever, o município pode aplicar aumento progressivo no IPTU por cinco anos, culminando na desapropriação do imóvel.
Se em vez de construir novas moradias em uma zona periférica da cidade, prédios já existentes em situação de abandono fossem destinados à moradia social, a expansão da cidade sem necessidade poderia ser evitada. “Você tira um monte de recursos da natureza para produzir 4 mil moradias na periferia quando você certamente tem estoque de moradias já construídas no tecido intraurbano da cidade”, explica a pesquisadora.
Redes de distribuição mal aproveitadas
Ademais, há um custo em manter os imóveis ociosos. “A sociedade faz um enorme esforço para dotar aquele imóvel de todos os serviços e equipamentos públicos e ele é mantido vazio para especulação imobiliária. É uma tragédia”, explana Pedro Araújo, arquiteto da Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC) e membro da Comissão de Política Urbana e Ambiental do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul (CAU/RS). De acordo com ele, é difícil que a Justiça não fique do lado do proprietário. “A Prefeitura de Porto Alegre já tentou criar políticas para enfrentar esses vazios urbanos e não foi feliz. Sempre teve uma questão judicializada defendendo a propriedade privada.”
“A gente precisa aproveitar as redes de distribuição de água, de coleta de esgoto, as vias públicas e todos os serviços já disponíveis na cidade. Loteamentos afastados deixam a cidade muito mais cara em termos de manutenção”, completa Karla Moroso, arquiteto do escritório Arquitetura Humana.
Segundo Moroso, o fator que faz com que muitos empreendimentos como o Minha Casa Minha Vida (MCMV) e o Casa Verde e Amarela sejam construídos nas periferias é o preço da terra. Quanto melhor localizada, com melhor infraestrutura e serviços, como é o caso das regiões centrais, mais cara é a terra. “O poder público sempre vai optar por onde tem menor interesse monetário, menor valor agregado”, diz.
Os maiores empreendimentos do MCMV na Capital foram efetivamente em regiões periféricas. “É uma casa pela metade, porque ela não vem com acesso à cidade, às oportunidades de emprego, aos serviços urbanos. As áreas centrais são onde as pessoas querem morar para ter condição de buscar um emprego, com mais facilidade para acessar o serviço público. Se o poder público não garante boas localizações para as populações de baixa renda, o mercado garante que esse povo vai ficar muito longe”, finaliza Araújo.
Destinação de terrenos urbanos ociosos
Das 5,8 milhões de moradias em déficit no Brasil, 87,7% delas estão em áreas urbanas. A região Sudeste é de longe a que tem os maiores percentuais. Só na região metropolitana de São Paulo, há um déficit de 570.803 moradias, quase a totalidade de toda a região Sul, onde faltam 605.621 habitações.
Isso, no entanto, não significa que a situação não seja preocupante no Rio Grande do Sul, que tem o maior déficit dentre os estados do Sul: pouco mais de 220 mil. Na Região Metropolitana de Porto Alegre, são 87 mil moradias, mais da metade delas por conta do ônus excessivo com aluguel.
O programa Casa Verde e Amarela, que substituiu o Minha Casa Minha Vida a partir de 2020, não conta mais com financiamento específico para famílias que vivem com até três salários mínimos. No MCMV, essas famílias contavam com até 90% do subsídio do imóvel, pago em até 120 prestações, de no máximo R$ 270, sem juros. Condições que não são mais possíveis pelo novo programa. “Aqueles que estão na faixa de zero a 3 salários mínimos no Brasil compõem 90% do déficit habitacional”, relata Cristiano Muller.
A falta de outras possibilidades, leva as pessoas às ocupação. Muitas ocupações se dão em terrenos periféricos, com construções irregulares e sem fiscalização – muitas vezes, ao mesmo tempo, causando e sofrendo com desastres naturais, como deslizamentos de encostas –, mas algumas outras se dão justamente em imóveis existentes que estão ociosos, sem cumprir nenhuma função social. “Ninguém sonha na infância em ocupar um imóvel caindo aos pedaços, abandonado e sem infraestrutura ou em ocupar a beira de um rio, para em uma enchente a casa ficar cheia de água. Ninguém ocupa um imóvel porque quer, mas porque não tem alternativa”, diz Betânia Alfonsin.
Ricardo Dias Michelon, diretor do Sindicato da Indústria da Construção Civil do Rio Grande do Sul (Sinduscon-RS), relata que os construtores também têm tido problemas com certas partes do Casa Verde e Amarela. “O programa tem que se atualizar do ponto de vista desse novo cenário de inflação”, argumenta o proprietário da Michelon Construtora e Incorporadora. Para ele, o Índice Nacional de Custo de Construção (INCC) teve aumento expressivo e é preciso que os programas públicos acompanhem o cenário, aumentando os limites e faixas do programa. “O que importa é a parcela que o comprador vai pagar. A gente está muito atrelado a isso, então se sobe a inflação, a gente pode subir o nosso valor, mas se o comprador não consegue pagar, não adianta”, clarifica.
Em março deste ano, o governo federal publicou portaria que cria o programa Aproxima. Com ele, terrenos ociosos da União, localizados em áreas urbanas, serão destinados à construção de moradias de interesse social para famílias com renda bruta de até cinco salários mínimos. O programa será implantado junto com os municípios, sendo necessária adesão do poder público local para que seja implementado, já que ficarão a cargo destes entes as ações de adequação ao ordenamento urbanístico local. Segundo a União, os terrenos utilizados deverão estar em local com malha urbana já implantada, próximos a edificações comerciais, residenciais, institucionais ou mistas e com serviços e infraestrutura urbana implantados. A ideia é realizar parcerias com a iniciativa privada para construção e manutenção das unidades e, como contrapartida, as empresas poderão explorar comercialmente o local.
Famílias conquistam garantia de posse de imóvel
O CAU/RS entende não ser complicado adequar estruturas já existentes à moradia. “Qualquer edifício pode ser adaptado com projeto e determinação técnica adequado. Há vários exemplos dos Estados Unidos de edifícios de garagem nas áreas centrais que foram transformados em edifícios de apartamentos, obviamente, respeitando as exigências”, explica o presidente do CAU/RS, Tiago Holzmann Silva.
Inúmeras são as ocupações em prédios abandonados ou em áreas irregulares da cidade que existem sem garantias de cumprimento de direitos, como acesso à água e saneamento, por exemplo. Mas alguns movimentos em Porto Alegre foram bem-sucedidos em conquistar ao menos: a garantia da posse.
Um deles é o Assentamento 20 de Novembro, lar da cooperativa de mesmo nome. O prédio na rua Dr. Barros Cassal, próximo à avenida Farrapos, é casa de 40 famílias. Originalmente projetado para se tornar um hospital de uma associação de ferroviários, o que nunca ocorreu, o local estava abandonado havia 50 anos. Em 2016, a cooperativa, iniciativa do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM/RS), recebeu a concessão de direito real de uso do edifício.
O grupo surgiu dez anos antes, em 2006, em uma ocupação de um prédio na rua Caldas Júnior, esquina com a avenida Mauá, também no centro da cidade. “Nós moramos lá por um tempo e fomos despejados em março de 2007. Foi uma megaoperação, tipo 300 policiais, helicóptero. Foi bem tenso, parou a Mauá a manhã inteira”, lembra Ceniriani Vargas da Silva, presidente da Cooperativa de Trabalho e Habitação 20 de Novembro, coordenadora do MNLM/RS e moradora do assentamento.
Com o despejo, os moradores da ocupação foram acampar em frente ao paço municipal. Segundo Ni, como é conhecida, naquele momento foi possível negociar uma área do município ao lado do estádio Beira-Rio e para lá foram as 40 famílias. Mas, ainda em 2007, com o anúncio de que o Brasil seria sede da Copa do Mundo de 2014, o risco do despejo voltou: “A gente teve essa discussão com a prefeitura, mas não tinha muita saída porque estávamos muito perto do estádio”.
As famílias contaram com sorte e estratégia para conquistar a moradia definitiva. “Eles foram muito hábeis na estratégia de luta deles, de ação direta. Se botaram na vitrine, aproveitaram o megaevento para botar a questão da moradia na roda”, opina a pesquisadora Betânia Alfonsin. As famílias estavam assentadas ao lado do estádio do Inter em um terreno que viria a ser um estacionamento ao lado do estádio a partir de exigências da Federação Internacional de Futebol (Fifa) para que Porto Alegre fosse sede do evento, um cenário que poderia resultar em muitas pessoas desalojadas. Com a pressa do evento, porém, o Departamento Municipal de Habitação (Demhab) tratou de agilizar a realocação.
Entre 2003 e 2014, houve um esforço por parte do governo federal para que os imóveis da União cumprissem alguma destinação social, ao mesmo tempo que parte era privatizada. Dessa forma, foi possível a destinação gratuita de terrenos e prédios vazios para a produção por autogestão de conjuntos habitacionais. Após muita conversa com a Superintendência do Patrimônio da União no RS, a cooperativa apresentou uma proposta para a reforma do prédio na Barros Cassal. “A proposta ficou quatro anos ‘trancada’ na prefeitura”, lamenta Ni. Foi somente em 2016 que a União cedeu o prédio à cooperativa, onde até hoje estão as famílias.
O programa funcionava por meio da concessão de financiamentos a beneficiários organizados de forma associativa por uma entidade organizadora, com recursos provenientes do Orçamento Geral da União, aportados ao Fundo de Desenvolvimento Social. “Nessa modalidade do MCMV, toda a organização do projeto fica a cargo das famílias: projeto de arquitetura, engenharia”, elucida Ni. Em 2018, o projeto já estava pronto e a obra licenciada pela prefeitura. Mas a cooperativa até hoje não recebeu os recursos para a realização da reforma. De acordo com a arquiteta Karla Moroso, uma das responsáveis pelo projeto, isso se deve, também, à troca de políticas com a posse do novo governo federal em 2019.
“No primeiro momento, veio a questão de readequação de novos programas habitacionais por parte do Governo Federal. Eles diziam que iriam avaliar a funcionalidade dos programas em andamento e desenhar novas propostas. Depois, a Caixa passou a alegar que os repasses de recursos que recebia estavam defasados e deveriam ser revistos. Desde então, o argumento para que as coisas não avancem é que não tem um acordo entre a Caixa e o Ministério do Desenvolvimento Regional sobre essas taxas”, explica Karla Moroso.
Reforma ainda não liberada
“Estamos já há três anos na expectativa da realização da reforma. O Ministério Público Federal está acompanhando o caso. Dentro do Casa Verde Amarela, há o artigo que fala de situações como a nossa, que poderíamos continuar seguindo a contratação nos moldes do MCMV Entidades. Eles até agora não disseram que não farão a contratação, mas não fizeram ainda”, explica Ni.
A situação do prédio está longe de ser ideal e as reformas são fundamentais para a garantia do direito à moradia. “As famílias têm muita dificuldade. A maioria das responsáveis são mulheres, têm muitas pessoas idosas. Na última semana ficamos sem luz. Só há um medidor de energia para todo o prédio, a conta vem muito alta. Durante a pandemia acumulou uma dívida muito grande e não tivemos mais como pagar”, aponta a presidente da cooperativa.
Além de condições mínimas, como um novo projeto elétrico e adequação geral da situação da edificação, o projeto arquitetônico contratado prevê auxiliar a cooperativa a cumprir suas duas funções: trabalho e habitação. “Foi trabalhada a questão de que a moradia não é somente casa, está articulada com outras funções e o trabalho é uma delas. Então, além do prédio habitacional, tem um anexo que é para atividades de geração de trabalho e renda que as famílias já executam”, descreve Moroso.
Parte do terreno também seria aberto ao público, para permitir a venda de produtos e realização de atividades com a comunidade. Outro objetivo do projeto é deixar o edifício mais sustentável e econômico, com a instalação de placas de captação de energia solar e cisterna para recolhimento de água da chuva. A presidente da cooperativa ainda reclama que, por conta da demora para a liberação dos recursos, as famílias acabaram perdendo outros benefícios: “A prefeitura, por meio da Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC), iria pagar o aluguel social para as famílias, que teriam que sair do prédio durante o período de obras. Esse dinheiro ficou guardado durante todo o ano de 2019, aguardando a contratação da obra, até que no fim do ano eles tiveram que destinar o dinheiro para outra coisa”.
Apesar de todos os percalços no caminho, nenhum dos moradores pensa em desistir do local. “O Assentamento 20 de Novembro representa muita coisa. Não é só a casa de 40 famílias que foram beneficiadas com esse projeto. É moradia popular no centro da cidade dentro de um contexto de um mercado imobiliário muito voltado para outras faixas de renda, não para famílias com o nosso perfil”, declara Ni.
Despejo ocorreu em 2017, desde então prédio segue desocupado
A ocupação Lanceiros Negros se localizava em um edifício abandonado do governo estadual na esquina entre as ruas General Andrade Neves e General Câmara. Como a 20 de Novembro, no centro da cidade. A ocupação era organizada pelo Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB).
Mas o local ficou conhecido pela reintegração de posse com o uso de cassetetes, bombas de gás lacrimogêneo e sprays de pimenta, que ocorreu durante a noite, em 14 de junho de 2017, culminando no despejo de cerca de 60 pessoas. O grupo ocupou, 20 dias depois, um hotel no Centro, mas em 24 de agosto houve nova reintegração. As pessoas foram encaminhadas para o Centro Vida, mas tiveram que sair em dezembro.
Em resposta à reportagem do Correio do Povo em junho de 2018, o governo estadual afirmou estar retomando a posse de imóveis irregularmente ocupados para aproveitamento ao serviço público estadual, por isso teria pedido a reintegração de posse do prédio da Lanceiros Negros. Na ocasião, disse que o imóvel havia sido cedido à Empresa Gaúcha de Rodovias e teria R$ 3 milhões para reforma.
Em abril de 2022, o imóvel permanece fechado e não foram feitas reformas. Em nova consulta, a Secretaria Estadual de Planejamento, Governança e Gestão (Seplag) disse que o imóvel está cedido à Junta Comercial, Industrial e de Serviços do Rio Grande do Sul para abrigar a nova sede da Junta.
Município busca fonte de recursos
Em janeiro de 2021, na troca de gestão municipal, havia alguns projetos de moradia popular já em execução pelo Demhab: um condomínio na Restinga e outro no limite com Alvorada, na região metropolitana. Um deles foi feito especificamente para receber famílias realocadas da Vila Nazaré. Ambos tinham financiamento do MCMV. “Nós temos procurado junto ao governo federal fontes de financiamento para outros empreendimentos aqui em Porto Alegre. Estamos em fase de credenciamento do programa Pró-moradia, que vai construir unidades ali naquela região no bairro Cristal, na foz do Arroio Cavalhada”, afirma o secretário municipal de Habitação e Regularização Fundiária e diretor-geral do Demhab, André Machado. De acordo com o secretário, a prefeitura também está na expectativa de ser selecionada para recursos pelo programa Casa Verde Amarela, para onde enviaram três protótipos para financiamento.
A gestão atual da prefeitura de Porto Alegre trabalha principalmente com a regularização fundiária. “Nós já entregamos mais de mil lotes desde o início de 2021. Esperamos até o final da gestão entregar seis mil”, estima Machado. O município trabalha também com um programa de bônus moradia, concedido a famílias que precisem passar por reassentamento. O valor de R$ 78.889,65 é destinado à compra de um imóvel, em qualquer localidade do país, à escolha da família, desde que o valor esteja dentro do limite estabelecido.
Sobre a destinação de imóveis já existentes para moradia popular, o secretário diz gostar da ideia e estar estudando o movimento em outras cidades. “Se for possível, Porto Alegre também pode vir a utilizar essa questão. São Paulo tem um programa bem interessante na ocupação Júlio Prestes, espero ir até lá para conhecer melhor.” Entretanto, os gastos da prática são questionados por Machado. “Muitas vezes, apesar de boa a localização, os custos podem acabar sendo maiores e não compensa que esse investimento seja priorizado diante de recursos tão escassos”, pondera.
O secretário espera transformar a política de habitação da Capital, para melhor garantir o direito à moradia. “Queremos que o Conselho Municipal de Acesso à Terra e Habitação (Comathab) se torne, de fato, um fórum da política. Estamos pedindo ao conselho que nos ajude a organizar um grande congresso para que se discuta o plano municipal de habitação de interesse social, que não é revisto desde 2009.” A partir dessa discussão, seria definido um novo caminho para a política habitacional em Porto Alegre. “Temos poucas políticas para oferecer pra comunidade e a gente quer abrir um portfólio maior”, garante Machado.
Já o governo do Estado conta com 257 imóveis que, segundo a Secretaria Estadual de Planejamento, Governança e Gestão (Seplag), não possuem destinação, estando ociosos. Desde o ano passado, eles fazem parte do Programa Permanente de Aproveitamento e Gestão Eficiente de Imóveis Públicos e as iniciativas para seu reaproveitamento dizem respeito a inclusão em projetos de permuta e alienação através de editais públicos. “O governo também criou o projeto de Modelagem de Ativos, com auxílio do BNDES, que irá definir a melhor destinação para imóveis que não estejam sendo utilizados pelo Estado, através de alienação direta, concessão, parceria público-privada, criação de fundo de investimento de imóveis estaduais, entre outros”, disse, em nota, a secretaria.
Coreio do Povo