Dos
vários movimentos de mudança durante o final da dinastia Tang, o de
maior duração foi o de declínio das famílias aristocráticas que
tinham dominado o governo. A dinastia Han Posterior viu uma distinção
social marcada, embora não oficial, entre as famílias da elite
(shi) e o povo comum (shu),
além das pessoas humildes (jianmin).
Em seu sentido original, o termo shi designava
“servidores”, referindo-se à elite erudita que servia o Estado.
Dos Han até o final dos Tang, o status “aristocrático” dos
grandes clãs coincidiu com a posse de altos cargos no governo pelos
membros desses clãs. As famílias da elite eram listadas nos
registros sociais oficiais. O casamento entre elas e gente do povo
era visto com maus olhos. Durante o período de desunião pós-Han, a
elite era fonte de cerca de três quartos oficiais do governo.
Durante o início da dinastia Tang, a proporção era de mais da
metade e, mais tarde, de três quintos. Embora os clãs
aristocráticos do Noroeste tivessem uma origem principalmente
não-chinesa, eram uma grande fonte de funcionários para o governo
central. Como diz Divid Johnson (1977), “Diferente da Inglaterra ou
da França, onde um homem podia chegar a uma posição social de
vulto por meio de uma carreira no direito, na medicina, no comércio,
na igreja ou no exército, na China só havia uma hierarquia
profissional significativa: a do serviço civil”.
A ausência de primogenitura na China significava que uma divisão
equânime da propriedade entre homens era a prática mais comum em
caso de morte do chefe da família. O código legislativo imperial
exigia herança divisível e, assim, impediu o surgimento de uma
nobreza latifundiária como ocorreu na Europa. Se um membro da
família se tornasse um funcionário do governo por duas ou três
gerações, a família mais cedo ou mais tarde entraria em declínio.
Cada geração era potencialmente insegura e tinha de provar seu
valor na vida oficial. O status decairia. No entanto, foi criada uma
medida protetora em que os Tang mantinham vários grupos de status
fora da burocracia categorizada a partir dos quais eles poderiam
retornar ao serviço social.
As
nomeações para cargos eram feitas por intermédio de recomendações,
primeiro pelo prefeito, de quem se esperava a categorização de
todos os membros da elite dentro de sua jurisdição conforme uma
escala que acabaria por consistir em nove categorias, cada uma
dividida em superior e inferior. As avaliações oficiais de cada
candidato em sondagem para a nomeação eram acumuladas em dossiês.
Com esse sistema, a elite perpetuava-se. Embora o sistema de exames
tenha começado na época Sui-Tang, o processo de seleção de
funcionários não prevalecia. O recrutamento era mais um processo
social que legal, já que no campo social os contatos pessoais
(guanxi) constituíam
a matriz pela qual os candidatos a cargos progrediam e o status
familiar era mantido. Por exemplo, os Wei do Norte criaram sua
própria lista de grandes clãs e tornaram-na equivalente à lista
chinesa, de forma que famílias de ascendência nômade podiam
ingressar na vida chinesa em postos elevados. Foram elaboradas listas
oficiais das genealogias dos grandes clãs entre 385 e 713 d.C.,
obviamente com base nas listas de recomendação enviadas pelos
prefeitos. Essas genealogias estabelecidas eram as bases para os
casamentos arranjados.
Os fundadores da dinastia Tang sentiram que esse sistema obstruía a
probabilidade de talentos e sublevaram-se contra ele. Assim, as novas
famílias sino bárbaras do Noroeste, que estavam tomando o poder
nessa época, fizeram com que as grandes famílias chinesas a
nordeste da planície do Norte da China sofressem um baque. Os
fundadores da dinastia Tang também denunciaram os enormes presentes
exigidos pelas famílias antigas quando suas famílias casavam. Em
659, houve um censo da genealogia nacional de duzentos capítulos,
contendo 2.287 famílias de 235 clãs. Um dos objetivos da revisão
era, evidentemente, conter as famílias do Noroeste.
No século VIII, aparentemente a manutenção de cargos tornara-se o
principal critério de status familiar, e o pedigree dos grandes clãs
perdeu importância. Agora tudo dependia da categorização oficial
da pessoa listada, e não de suas origens familiares. Legalmente, os
funcionários não eram mais considerados uma elite especial. Embora
seus filhos recebessem uma categorização menor no código legal
Tang, não havia mais um status de classe elevada assinalado no
código que desse direitos especiais à nomeação para cargos. A
instituição imperial tinha prevalecido sobre os interesses sociais
dos grandes clãs.
Segundo
Denis Twitchett (in CHOC 3) sugere, foi assim que os Tang iniciaram a
transição do governo de famílias aristocráticas, em que a casa
imperial era apenas primus inter pares,
para o governo da China por uma burocracia treinada selecionada pelo
mérito – em parte pelos exames. A decadência das famílias
aristocráticas tornou o o poder central mais capacitado a dominar as
regiões locais. O imperador se tornaria um governante sacrossanto
isolado em seu palácio, distante dos companheiros de batalha e
dependente dos conselheiros que ascendiam com a nova burocracia.
A perda do domínio do governo pelos clãs aristocráticos no final
do período Tag foi acompanhada por outra grande mudança – o
governo encerrou seu intenso domínio sobre a vida econômica
chinesa. O colapso do sistema de campo igualitário de distribuição
de terras rurais e dos mercados oficiais e preços fixos nas cidades
mostrou que a economia estava crescendo além do controle estatal. As
propriedades começaram a se acumular nas mãos dos magnatas locais.
Procurando ancorar o poder estatal, o sistema de impostos foi
racionalizado com o estabelecimento de cotas anuais a serem cobradas
sobre a terra, e não sobre a pessoa, no verão e no outono. Ficar
conhecido, a partir de 780, como o sistema de dois impostos, ou seja,
a combinação de impostos territoriais com impostos prediais. As
cotas de impostos eram estabelecidas previamente e forneciam alguma
segurança ao governo central, embora o novo sistema tenha confirmado
a incapacidade de o governo continuar controlando o enriquecimento
individual e o livre comércio no país.
Após a rebelião de 755-763, a superintendência de comércio do
governo também começou a decair. A política Tang tinha sido de
conservar a regulamentação do comércio, para que os mercados
oficialmente supervisionados com preços estáveis auxiliassem a
produção camponesa e não permitissem a ignóbil propensão humana
a perseguir o lucro. A venda tributária do comércio só era
considerada importante quando ocorria uma crise fiscal, embora isso
sempre acontecesse em épocas de necessidade militar ou decadência
dinástica. A rede de comunidades comerciais da China (conforme
descrita na Introdução) logo emergiria sob os Song e seria
prolífica para o Estado controlar.
Finalmente, devido à rebelião de An Lushan, a China havia se
militarizado, mesmo que os postos Tang na Ásia Central tenham sido
tomados e a maior parte do Noroeste estivesse ocupada por um povo
tibetano, os Tangut. Dentro da China, as novas províncias
totalizavam, num primeiro momento, trinta unidades, a maioria sob
governantes militares cujas guarnições lhe concediam poder sobre o
governo local. Em contraste, o governo central quase não tinha
exércitos próprios e foi várias vezes ameaçado de ser tomado
pelos invasores Tangut. Após 763, o poder do imperador baseava-se
precariamente em quatro regiões – a província metropolitana, a
zona fronteiriça a noroeste, o baixo Yangzi e a zona ao longo do
Grande Canal, que era o cordão umbilical da capital. Várias
províncias do Norte da China mantinham-se fora do controle central
e, assim, desfalcavam o sistema de impostos de renda de cerca de um
quarto da população do império, deixando que as regiões do baixo
Yangzi e do vale Huai fosse a principal fonte de renda da dinastia.
Após a rebelião, alguns poucos imperadores Tang conseguiram
reorganizar-se e centralizou o poder, mas a época áurea dos Tang já
passara. Nessa época, a Corte Interna estava abalada pela confiança
do imperador no poder dos eunucos, enquanto a Corte Externa era
destruída por um partidarismo extremo.
Em geral, a introdução do serviço civil Tang contribuiu para uma
renovação do confuncionismo, outro aspecto da transição
Tang-Song, sobre a qual a pesquisa mais recente é a de David
McMullen (1988). Os Tang promoveram um desenvolvimento contínuo da
cultura clássica por meio do sistema escolar, dos exames, do culto a
Confúcio e do rtual estatal, bem como pela historiografia e a
literatura secular. Esse crescimento da elite budista durante os Tang
preparou o terreno para o florescimento intelectual dos Song do
Norte.
Em
845, o imperador Tang decretou uma repressão ampla e sistemática
aos monastérios budistas, como seus enormes latifúndios isentos de
impostos e resplandescentes templos urbanos abrigando centenas de
ocupantes. Duzentos e cinquenta mil sacerdotes e freiras foram
obrigados a retornar à vida laica. Daí em diante, o governo
controlou o crescimento budista por meio da emissão de todos os
certificados de ordenação para monges. O esplendor dos Tang e o
budismo chinês foram decaindo juntos.
As relações de poder no Norte da China nessa época sugerem que o
verdadeiro interregno do poder central durou desde a rebelião de 755
até 979. Os governantes militares sobreviventes da dinastia Tang e
seus sucessores estabeleceram regimes centralizados, conduzidos
pessoalmente, que se tornaram o modelo de governo durante o
interregno e no início da dinastia dos Song do Norte.
Em seu século final, os Tang foram uma lição concreta de
anarquia. Os funcionários, tantos civis como militares, tornaram-se
tão cinicamente corruptos e os camponeses aldeões foram oprimidos
de modo tão grosseiro que o abominável virou lugar-comum. A
lealdade desapareceu. A bandidagem assumiu o comando. Gangues
glutinaram-se em hordas armadas, saqueando tudo o que viram pela
frente, de província em província. Os imperadores, seus eunucos e
funcionários perderam o controle e eram execrados. Por seis anos
(878-884) o importante bandido Huang Chao liderou sua horda por todos
os lugares da China, de Shandong a Fuzhou e Guangzhon, depois houyang
e Chang'an, que foi destruída. Em 907, o fim oficial da dinastia
Tang, os turcos e outros povos não-chineses ocuparam boa parte do
Norte da China, e o poderio militar floresceu em outro lugar.
Desses escombros emergiram estados regionais conhecidos no Norte da
China como as Cinco Dinastias e, no Centro e Sul, como os Dez Reinos.
O problema do poderio militar generalizado só seria resolvido pela
dominação de um exército imperial na nova capital, com a chegada
da dinastia Song, em 960.
Fonte: China – Uma Nova História, páginas 91 à 94.