Notícia de última hora!
Comissão da Verdade de SP começa investigar participação de empresas na ditadura
A atuação e colaboração de várias empresas na
repressão política durante a ditadura militar começou a discutir hoje
(27), em audiência pública, na Comissão da Verdade da Assembleia
Legislativa de São Paulo. Nesta sexta-feira, a comissão analisou a
participação da Volkswagen e da antiga Cobrasma (Companhia Brasileira de
Materiais Ferroviários). A atuação de outras empresas será investigada
nas próximas audiências.
A Cobrasma foi criada em 1944, em São
Paulo, para a produção de equipamentos ferroviários no Brasil. Ela
funcionou até maio de 1998, quando encerrou suas atividades fabris,
embora ainda exista como empresa.
Durante a audiência pública,
antigos trabalhadores da Cobrasma disseram que a empresa colaborou com o
regime militar, principalmente durante a repressão à greve de julho de
1968, em Osasco (SP), quando metade dos cerca de 4 mil trabalhadores
aderiu à greve. O movimento depois se espalhou para outras fábricas,
entre elas, a Braseixos, a Barreto Keller e a Lanoflex.
A greve
foi reprimida pela ditadura, com prisões e tortura dos líderes do
movimento e de trabalhadores grevistas. O Sindicato dos Metalúrgicos de
Osasco e Região (Sindmetal) também sofreu fortes intervenções, segundo a
entidade. Em uma delas, pouco tempo depois da greve, 600 pessoas foram
presas na Cobrasma e demais fábricas por participação no movimento.
Segundo
o Sindmetal, documentos da época mostraram também que dirigentes da
Cobrasma forneceram aos agentes públicos do Departamento de Ordem
Política e Social (Dops), os nomes das pessoas que organizaram ou
participaram da greve, entre elas, João Batista Candido. “A fábrica não
tinha restaurante, nem refeitório. Cerca de dois terços trabalhavam em
condições insalubres. Assisti a três mortes dentro da fábrica em
acidente em horário de serviço. Por isso, fizemos a greve”, disse
Candido, durante a audiência.
O professor de política internacional Antonio Roberto Espinoza trabalhou em vários setores da Cobrasma entre 1960 e 1966. À
Agência Brasil,
ele relatou que a Cobrasma era a maior fábrica de Osasco e, por isso,
interessava muito ao governo militar para a produção de armas bélicas.
“A Cobrasma era emblemática para os dois lados. Do lado dos
trabalhadores, porque tinha um grande contingente de empregados e longa
tradição de luta. Para o governo, porque ela trabalhava com fundição
pesada para a fabricação de vagões de trens e podia ser transformada em
fábrica de equipamentos militares”, ressaltou. “A empresa colaborava com
a repressão, fornecia nomes de trabalhadores e pedia investigação [aos
militares] sobre alguns nomes [de trabalhadores]”, disse.
Já na
Volks, os trabalhadores ouvidos durante a audiência disseram que parte
da diretoria da empresa na época era composta por militares. A montadora
mantinha também uma “lista negra”, com nomes de trabalhadores
sindicalizados, que repassava aos agentes da ditadura.
Documentos
com a identificação dos empregados, os endereços pessoais [que só eram
conhecidos pela empresa] e até o setor em que trabalhavam foram
encontrados por pesquisadores nos arquivos do Dops. Em outro documento
localizado no Dops, sobre a empresa, consta um trecho degravado de um
discurso feito pelo então sindicalista e ex-presidente da República Luiz
Inácio Lula da Silva a trabalhadores da Volks.
Em
um dos trechos, Lula diz aos trabalhadores: “dentro da VW [Volks], em
alguns setores em que vocês trabalham, a segurança fica de olho em
vocês, através de um circuito de televisão, e o coronel Rudge [Adhemar
Rudge, que foi gerente da Divisão de Segurança Industrial e Transporte
da Volkswagem, entre 1969 e 1991] fica o dia inteiro vendo a televisão e
vendo vocês trabalhando”. Isso comprova, segundo a comissão, que a
empresa monitorava toda a movimentação dos empregados.
A Volks
também fazia parte de um centro de controle em que trocava informações
sobre os trabalhadores com outras empresas. Demitidos da Volks, muitos
metalúrgicos não conseguiam outro emprego na região porque seus nomes
constavam de uma lista de vetos. Em depoimento hoje na comissão, Lucio
Bellentani, que trabalhou como ferramenteiro da Volks entre os anos de
1964 e 1972 e que também integrava o PCB, disse que foi preso e
torturado dentro da própria empresa.
“Quem comandou a prisão foi o
[coronel] Rudge. O Rudge estava encostado em uma coluna com vários
policiais, e mais gente da segurança da Volks, e encostaram uma
metralhadora nas minhas costas. Levaram-me para o Departamento de
Pessoal, onde havia outros agentes do Dops. Ali levei porrada e cascudo.
Dali fui para o Dops, onde fiquei 45 dias totalmente incomunicável”,
disse.
Bellentani relatou ainda que agentes da ditadura, pouco
tempo depois de sua prisão, passaram a ir sistematicamente à sede da
Volks, para prender trabalhadores. “Cerca de 22 prisões foram feitas,
todas efetuadas dentro da Volks, com auxílio da segurança da Volks. E
todos os que chegavam lá iam para acareação e para sessões de tortura”,
contou. Para Bellentani, a ajuda da Volks e de outras empresas à
ditadura precisa vir à tona e ser esclarecida. "É necessário que essas
coisas venham a público e [as empresas] sejam realmente punidas."
Na
audiência, integrantes do Fórum de Trabalhadores e Trabalhadoras por
Verdade, Justiça e Reparação entregaram uma carta aberta à Comissão
Estadual da Verdade em que dizem que a extinta Comissão Nacional da
Verdade (CNV) deixou de acatar uma recomendação à Presidência da
República para responsabilizar as empresas que colaboraram com a
repressão durante a ditadura militar.
Na carta, eles pedem, entre
outras coisas, que os empresários e empresas privadas e estatais sejam
investigados, denunciados e punidos por colaboração com a ditadura
militar. Eles também solicitam que seja instituído um fundo, mantido com
multas e punições a essas empresas e empresários, para reparação dos
danos provocados aos trabalhadores e organizações sindicais na época. O
documento foi entregue também para Rosa Cardoso, ex-membro da Comissão
Nacional da Verdade, que ficou de se mobilizar para encaminhar essas
reivindicações ao governo, mesmo após o fim dos trabalhos da CNV.
Rosa
Cardoso disse que a CNV abordou o tema sobre a colaboração das empresas
em seu relatório final, mas, em sua opinião, isso deve continuar sendo
explorado e publicado pelas demais comissões, movimentos sociais e pelo
Ministério Público. “Todos os grupos devem continuar seus trabalhos e
publicações.”
Em entrevista hoje a jornalistas, ela admitiu que o
grupo de trabalho da CNV que abordou esse tema teve muita dificuldade
para encontrar documentos que comprovassem a ajuda de empresários ao
regime. “Não pudemos saber efetivamente o que houve. Há muitos pedaços
da realidade que estão totalmente encobertos em uma névoa. É claro que
os partícipes dessa história não vão revelar isso. Os militares não vão
acusar os empresários. Essas revelações e confissões são muito difíceis.
O que nos ajudaria seria encontrar essa documentação, mas essa
documentação dos empresários foi efetivamente destruída”, ressaltou.
A
Agência Brasil procurou
ouvir representantes da Cobrasma, mas ninguém foi encontrado para falar
sobre a atuação da empresa durante a ditadura militar. Representantes
da empresa foram convidados a participar da audiência, mas não
compareceram. No entanto, em depoimento na Comissão Municipal da Verdade
de Osasco, em novembro do ano passado, o empresário Luís Eulálio de
Bueno Vidigal Filho, um dos dirigentes da Cobrasma na época da greve,
negou que a empresa tivesse dado algum tipo de apoio à ditadura militar
ou que os trabalhadores que participaram da mobilização tenham sido
repreendidos ou denunciados ao regime.
A Volks mandou um
representante à audiência, o gerente de Assuntos Jurídicos, Rogério
Vargas. Segundo ele, a empresa, que está há mais de 60 anos no país,
está analisando documentos e em processo de aprendizagem com as
comissões da verdade para entender o período. “A Volks está aprendendo
com esse processo de abertura. Nunca cogitamos não estarmos presentes
aqui. Estamos analisando os documentos para entendê-los e
contextualizá-los”, disse Vargas.
Ele acrescentou que a montadora
também está analisando seus arquivos internos na busca de documentos do
período. “Nosso papel é de aprendizagem com as comissões para
encontrarmos, de forma respeitosa e com equilíbrio, uma posição da
empresa”. Apesar de dizer que a montadora ainda analisa os fatos, Vargas
negou que a Volkswagen tenha colaborado com os órgãos de repressão. “A
Volks não colaborou com órgãos de repressão. Não há documentos ou
quaisquer evidências disso”, disse, durante a audiência.
Agência Brasil