Bom,
nunca entendi direito essa coisa de Réveillon. Dizem que a palavra
Réveillon é oriunda do verbo révellier, que em francês
significa “despertar”. Há quem encare como momento de
“refeição”, do tipo que tradicionalmente, fazemos com muita
lentilha, promessas e superstições – tudo isso durante a virada
do ano, claro!
Não sei
bem por que escrevo aqui sobre o tempo ou suas reviravoltas. Talvez o
faça por capricho de uma palavra dada a meu pai. Ele disse que
gostaria de ler alguma coisa minha mais uma vez ainda neste ano (devo
ser péssimo falando). Não entendo esse orgulho maluco pelas letras
de um analfabeto do tempo feito eu. Afinal, ele é o que tem mais
tempos, ele e minha mãe, a esposa desse sessentão, quase
setentão... Ah, que carga pesada ter que temperar o que só as
cozinheiras e os velhos sabem fazer! Não sei nada sobre sabedoria,
sabor é um elemento que sempre me veio pronto, como disse, feito
pelas mãos de minha mãe, a melhor entendedora daquele verbo que
quer se conjugar só para amar os outros: cozinhar. Os gregos já
conheciam muito bem desse assunto, inclusive, os dividiram em quatro
partes: kairós (tempo da oportunidade); íon (tempo da história);
crono (tempo de tudo, para nós, os modernos, seria como se
obedecêssemos aos ponteiros do relógio); e, finalmente o aion
(tempo da explosão). (Não me
refiro aqui à sapiência helênica para satisfazer o ego intelectual
sobre a inteligência “natural”, mas para acrescentar. “É
preciso ser muito bom ara ser simples”, já advertia meu pai, isso
ainda não falta).
Sendo
assim, como criança que sou (ao menos perto dos sábios e
cozinheiros), sempre gostei mais do último, o aion,
pois é ele que nos tira dessa medida de separação de antes e
depois. Para os pequenos – aqueles que criam, daí vem o
termo criança -, os tempos são
minas terrestres, uma vez que explodem aos seus pés, bastando uma
pisadela de imaginação para estourar. Ou seja, podem dar a volta ao
mundo em um barquinho de papel, tudo bem rápido, tal como fazem as
estrelas cadentes. Nós, filhos do relógio, apenas vemos o papel,
não sabemos mais sobre a cor nem sobre ação. Só velhos e
cozinheiras é que sabem voltar a “marujar” pela memória, uns
meninos que reaprendem a levar água em peneiras “amanoeladas” e
autopoiéticas, tudo por nada, apenas a pretensão de explodirem-se
faceiros em uma breve eternidade.
Pai, mãe! Não me peçam mais para escrever sobre o que o mundo o
mundo deixou inscrito nas peles de vocês. Sei das letras, leio, mas
não tenho as marcas que me fazem um leitor eficaz e belo como vocês.
Rugas são linhas cheias de verdades, que ainda não tive tempo para
compreender, pois há coisas que devemos apenas sentir, tal como a
fala de um velho e a comida caprichada de cozinheira. O ano foi bom,
mas só porque ainda os pratos estão sobre a mesa e os livros ainda
não queimaram, porque (como quer Mia Couto), quando morre um velho,
arde uma biblioteca inteira. Ouvi-los e sentir os sabores que nos
saboreiam, sim, isso já me basta. Saber que ainda estão comigo faz
do ano um tempo lotado de tempos, uma bomba de Hiroshima que se abre
como rosa perfumada, uma bomba do bem. Feliz Ano-Novo!
*Professor
Correio
do Povo, edição de 31 de dezembro de 2014, página 2.