domingo, 9 de janeiro de 2005

A difícil tarefa de explicar o horror

Depois da morte de mais de 150 mil pessoas, as religiões tentam descobrir um significado para a tragédia

PETER GRAFF

Reuters/Londres

Sempre que acontece um desastre, uma tragédia, a pergunta é feita. Dias atrás, ela foi repetida mais uma vez, agora na boca de uma mulher idosa em um vilarejo destruído do Estado de Tamil Nadu, no sul da Índia

  • Por que fez isso conosco, Deus? O que fizemos de errado?

  • Chorava ela.

Os tsunamis de 26 de dezembro, ondas gigantes assassinas que mataram mais de 150 mil pessoas, desafiam as grandes religiões do mundo. A tragédia atingiu indiscriminadamente muçulmanos indonésios, hinduístas indianos, budistas tailandeses e do Sri Lanka, além de cristãos e judeus que faziam turismo nas praias do Oceano Índico. Nos templos, mesquitas, igrejas e sinagogas de todo o mundo, pede-se aos religiosos que expliquem: como um Deus benevolente pode lançar tanto horror contra pessoas comuns? Alguns líderes religiosos descreveram a destruição como parte do plano de Deus, como prova de seu poder e como punição pelos pecados dos humanos.

É a expressão da grande ira de Deus com o mundo. O planeta está sendo punido pelas coisas erradas, seja o ódio desnecessário, a falta de caridade, a torpeza moral – disse à agência de notícias Reuters o rabino-chefe de Israel, Shlomo Amar.

Pandit Harikrishna Shastri, sacerdote do grande tempo hindu Birla, em Nova Délhi, declarou que o desastre foi causado por “uma enorme quantidade de maldade humana na Terra”, além da posição dos planetas. Para Azizan Absul Razak, líder religioso muçulmano e vice-presidente do Parti Islam se-Maysia, partido oposicionista islâmico da Malásia, a tragédia foi um lembrete de Deus que “ele criou o mundo e pode destruí-lo”. O xeque Ibrahm Mogra, influente líder religioso muçulmano de Leicester, na Grã-Bretanha, também deu sua opinião.

  • Acreditamos que Deus tenha o controle total sobre sua criação. Temos a responsabilidade de tentar atrair a bondade e a misericórdia de Deus e de não fazer nada que atraia a sua fúria.

Maria, 32 anos, uma testemunha de Jeová do Chipre que acha que o Apocalipse está se aproximando, afirmou que as pessoas começam a prestar atenção em suas palavras. Mas, para outros, calamidades como a do final de dezembro podem provocar a rejeição da fé. Ateu britânico Martin Kettle escreveu no jornal britânico The Guardian que os tsunamis deveriam obrigar as pessoas a se perguntarem “se Deus existe e pode fazer coisas como essas” – ou se não há Deus, apenas a natureza.

  • Não há problema para explicar a tragédia pela visão da ciência. Houve um fato natural burro, que destruiu tanto os muçulmanos como os hindus. Um sistema de crença não-científico, especialmente um que se baseie em qualquer tipo de noção de ordem divina, no entanto, deve explicações – escreveu Kettle.

Conforme o rabino americano Daniel Isaak, da congregação Neveh Shalom, em Portland, Oregon, essa é uma questão com que os religiosos lidam quase todo dia, quando consolam as pessoas em relação às tristezas diárias da vida – e não só nas épocas de grandes catástrofes.

  • É muito difícil acreditar em um Deus que não apenas cria tsunamis que matam milhares de pessoas, mas que põe defeitos de nascimento em crianças. Muitas vezes a primeira pergunta que as pessoas fazem é aquela feita pela mulher indiana. Por que Deus está fazendo isso comigo? – admite o rabino.

Para alguns, Deus não interfere em sua criação

Segundo Isaak, na visão moderna no entanto, Deus não interfere nas questões de suas criações. Catástrofes como as dos tsunamis no sul da Ásia ocorrem pelos motivos naturais apontados pelos cientistas.

  • Não foi algo que Deus fez. Deus não escolheu um determinado grupo de pessoas em determinada área do mundo e disse: “Vou puni-los”. O mundo tem certas imperfeições em sua ordem natural, e temos que conviver com elas. A pergunta não é “Por que Deus fez isso conosco?”, mas “Como nós, seres humanos, cuidamos uns dos outros?” – opinou Isaak.

O teólogo grego ortodoxo Costas Kyriakides, do Chipre, tem uma visão semelhante:

  • Pessoalmente, não vejo nenhum significado teológico nisso. Deus é sempre o bode expiatório. É sempre culpado, injustamente, por nós.

Fonte: Zero Hora, página 32 de 9 de janeiro de 2005.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2004

Suicídio – Uma triste epidemia

A maior causa de mortes violentas no mundo não é a guerra nem a criminalidade, mas o suicídio. O maior número de mortes é registrado nos países da antiga União Soviética. Recordista mundial: Lituânia, com 51,6 por 100 mil habitantes, superando os registros na Bielo-Rússia, na Estônia e no Cazaquistão. O 14º lugar, com 17 por 100 mil, é ocupado pela França. Um dado é comum a todos os países: são as pessoas idosas as que mais se matam, em número três vezes maior do que os jovens de 15 a 24 anos. A doença, a precariedade social e a solidão são os principais fatores.

O número mundial de suicídios se situa em volta de 1 milhão de mortes por ano. Levando-se em conta a evolução demográfica, estima-se que chegue a 1,5 milhão em 2020. Para deter a epidemia, cogita a OMS de providenciar ajuda psicológica e evitar a venda de pesticidas, meio mais usado pelos suicidas, especialmente os chineses.

Fonte: Correio do Povo, Flávio Alcaraz Gomes. 22 de dezembro de 2004, página 4.

domingo, 12 de dezembro de 2004

100 anos de imigração judaica no Rio Grande do Sul

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Exposição resgata saga de 100 anos

Documentos, objetos e relatos mostram a história da imigração judaica para o Rio Grande do Sul

As comemorações do centenário da primeira imigração judaica organizada da Europa para o Brasil propiciaram o resgate da história desse povo nas terras de além-mar. Resumo da saga dos judeus no Estado, a exposição “Uma terra para todos:100 anos da imigração no Rio Grande do Sul” está aberta à visitação até o dia 18, no Museu Nacional de Migrações Judaicas. As pesquisas começaram em 2003 e resultam da parceria entre o Memorial do Ministério Público e a Federação Israelita do Rio Grande do Sul (Firgs).

A curadora da mostra, Andréa Cogan, diz que o objetivo é propiciar ao público leigo o acesso a essa parte da história gaúcha, além de trazer aos judeus o resgate da sua cultura. Quem visitar o museu poderá ver documentos do Instituto Cultural Judaico Marc Chagalli e objetos de famílias da comunidade, como cartas na língua ídiche, um salvo-conduto da década de 40 (documentos da Central de Polícia que os imigrantes usavam para circular no país) e até braçadeira com estrela amarela, de uso obrigatório pelos judeus na Alemanha nazista. Também estão expostos mapas originais da colônia de Quatro Irmãos, na região Norte do Estado.

“A partir da pesquisa, resolvemos retratar não só a imigração no que se refere à parte agrícola, mas as diferentes levas migratórias de judeus”, explica Andréa, museóloga do Memorial do MP. Embora a imigração organizada seja a de 1904, acrescenta, houve outras viagens, em momentos distintos, e por motivos diversos. A mostra retrata a imigração agrícola, a russa e a polonesa urbana (década de 1920), a alemã (antes e depois da Segunda Guerra Mundial) e sefardita (Espanha, Marrocos, Egito, Grécia e Turquia).

A exposição também traz relatos curiosos de imigrantes recém-chegados ao Brasil, que demonstram a estranheza do povo em um nova terra. “Forma obrigados a sair de sua pátria para sobreviver, e o Rio Grande do Sul foi receptivo, permitindo seu crescimento”, comenta Andréa. O Museu Nacional das Migrações Judaicas fica na Firgs (rua João Telles, 329).

Intelectuais tiveram de deixar a Alemanha

Diferentemente da imigração russa e polonesa, Da Alemanha vieram judeus intelectualizados e profissionais liberais que tiveram de deixar o país por causa do nazismo. Os grupos de judeus alemães começaram a chegar ao Estado em 1933, ano em que Hitler se tornou primeiro-ministro. “Eles eram tão bem adaptados na Alemanha que nunca acreditaram que o Holocausto pudesse acontecer. Estavam inseridos econômica, social e politicamente”, explica a museóloga Andréa Cogan. Apesar dos sinais do que estava para acontecer, muitos judeus optaram por ficar na Alemanha. Inúmeros conseguiram deixar o país europeu com ajuda da Sociedade Israelita Brasil de Cultura e Beneficência. Isso explica por que os judeus alemães se concentram no bairro Rio Branco, em Porto Alegre, onde fica a entidade. Até o final da década de 1930, muitos judeus vieram para o Brasil procedentes da Alemanha. Mais tarde, ficou difícil a fuga do país, devido à tomada do poder pelos nazistas. Terminada a Segunda Guerra Mundial, o RS voltou a receber um grande contingente de judeus. Desta vez fugidos do horror passado durante o Holocausto.

Leis ficam restritivas no final do século XIX

No final do século XIX, os judeus que viviam no império russo confinados em áreas delimitadas, que excluíam grandes cidades. A partir de 1880, as leis se tornaram mais restritivas, incluindo a proibição da atividade agrícola, limitação do acesso ao ensino e abolição das garantias jurídicas. O local em que viviam também estava mais reduzido. Os czares russo estimulavam o anti-semitismo e patrocinaram pogroms – palavra russa que identificava saques e atos de violência coletiva contra judeus. Todos esses motivos levaram os judeus russos a buscarem um país onde pudessem sobreviver em melhores condições.

A Jewish Colonization Association (JCA) começou a financiar a saída dos judeus da Rússia e seu assentamento em outros países. Entre os lugares escolhidos estava o Rio Grande do Sul, onde foram criadas duas colônias: Phillipson (Santa Maria) e Quatro Irmãos (Norte do RS). A primeira leva chegou em 1904. “Muitos que vieram não tinham experiência no trabalho agrícola, nunca haviam arado uma terra e plantado e não sabiam lidar com as ferramentas da agricultura. Tudo era novo para eles, além da língua e da alimentação”, comenta a museóloga Andréa Cogan, explicando por que motivo o projeto das colônias acabou não dando certo.

Depois das comunidades agrícolas (incluídas na imigração organizada), o primeiro grande grupo de judeus foi o dos russos e poloneses urbanos, que vieram nas décadas de 1920 e 1930 para Porot Alegre, estabelecendo-se no bairro Bom Fim. Muitos se voltaram para o comércio de móveis, conforme Andréa. Em geral, eram rapazes solteiros que começaram trabalhando com mascates, vendendo de porta em porta mercadorias que carregavam no corpo. Quando prosperavam, voltavam ao seu país de origem para buscar toda a família.

Conflitos ocasionam imigração para país

O enfraquecimento do Império Turco-Otomano impediu que os judeus de áreas que estavam dominadas progredissem no comércio. Entre 1910 e 1920, intensificou-se a imigração de judeus sefarditas (Grécia, Turquia, Egito e Marrocos), com predominância dos vindos da Turquia. O Brasil era um dos principais destinos. O conflito árabe-israelense ocasionou a chegada ao país de outros grupos no final da década de 1950, principalmente em 1956, com maior ênfase na imigração egípcia e marroquina.

Em Porto Alegre, os judeus sefarditas se concentraram no Centro, onde atuavam no comércio de tecidos, principalmente na Rua dos Andradas, na Marechal Floriano e imediações. Até hoje, a comunidade frequenta a sinagoga do Centro Hebraico Rio-Grandense, construída naquela época. Lojas de tecidos que ainda há na região, em sua maioria, não pertencem mais a eles. Com o tempo, passaram a buscar as universidades e as profissões liberais.

Fonte: Correio do Povo, página 15 de 12 de dezembro de 2004.

domingo, 5 de dezembro de 2004

RS desenvolve variedades de bananas resistentes

Duas variedades resistentes à sigatoka negra deverão ser desenvolvidas pela Fepagro no RS. Conforme o coordenador do Profruta, Afonso Hamm, as variedades Honduras FHIAO 1 e Asía THAP MAEO são materiais genéticos já testados em SC. A Honduras já está disponível pela Epagri. A praga se manifesta nas folhas e não oferece risco ao consumidor. “No RS, 75% do produto plantado é da variedade prata, que tem alta resistência à sigatoka”, informou.

Fonte: Página 18 de Correio do Povo de 5 de dezembro de 2004.

quarta-feira, 17 de novembro de 2004

O amigo ''velho''

O competente professor de jornalismo da ULBRA, Luiz Artur Ferraretto lançou o livro “Rádio no Rio Grande do Sul”. Abrange os anos 20, 30 e 40 e muito bem pesquisadas. Numa delas, a participação de Érico Veríssimo em pioneiro programa infantil. Valendo-se do depoimento de Maurício Rosemblatt, grande amigo de Érico Ferraretto conta que o escritor saia correndo da Livraria do Globo, subia a Borges de Medeiros e as escadarias do viaduto e chegava ao microfone da PRH-2, da Rádio Farroupilha, onde improvisava histórias para as crianças que apinhavam o estúdio da emissora. Érico era o “amigo Velho” w a gurizada formava o “Clube Os 3 Porquinhos”. Sucesso absoluto. Em 1937, porém, o Estado Novo, quis submeter à censura as inocentes histórias. Érico, sempre altaneiro e independente, recusou, tirando-o do ar.


Fonte: Flávio Alcaraz Gomes, Correio do Povo, página 4 de 17 de novembro de 2004.

Uma homenagem ao mestre Salvador Dalí

O Centro Cultural Brasil Espanha, a Embaixada da Espanha no Brasil e a Agência Espanhola de Cooperação Internacional Salvador Dalí, através da mostra “Dalí por artistas daqui”. A exposição pode ser visitada até 23 de novembro, de segunda a quinta, das 14h às 19h, na rua Felipe Camarão, 71.

São 92 artistas, entre eles Zorávia Battiol, Mbel Fontana, Estelita Branco, Eunice Lima, Fátima Siqueira Borges, Marilice Costi, Lecia Maria Bohne Eduardo Rangel Baptista, que procuram retratar um pouco do magnífico artista espanhol, um dos mais conhecidos do século XX. Nascido em 1904, na cidade catalã de Figueires, Dalí foi atraído pelo surrealismo a partir de 1927. O movimento, que iniciou em Paris, tinha sido influenciado pelas teorias de Freud. Dalí criava obras ditadas pelo inconsciente através do sonho e, de 1929 a 1939, pintou suas obras mais famosas.

Salvador Dalí faleceu em 20 de janeiro de 1989, aos 84 anos de idade e seu corpo embalsamado está enterrado em uma tumba sob a cúpula do Museu de Figueires, na Espanha.

Fonte: Correio do Povo, página 20 de 17 de novembro de 2004.

domingo, 14 de novembro de 2004

Terra sem História, por Voltaire Schilling*

a partida para o Alto Parus é ainda o meu maior, o meu mais belo e mais arrojado ideal. Estou pronto à primeira voz. Partirei sem temores... nada me demoverá de um tal propósito”

Euclides da Cunha, Carta de Guarujá 6/7/1904.

O primeiro encontro dos dois, de Euclides da Cunha com o Barão do Rio Branco, deu-se no palacete Westfália, em Petrópolis, em julho de 1904. Local para onde o chanceler se retirava em descanso. Quem levou o escrito até a presença do Juca Paranhos, como o barão era conhecido em moço, foi um diplomata, Domício da Gama, por igual um intelectual. Apesar da timidez, dele, de Euclides da Cunha, frente a Rio Branco, àquela altura um verdadeiro monumento nacional, os dois conversaram por cinco horas. O escritor só se viu liberado às duas da madrugada.

Ambos estavam no auge da fama, Euclides, com a publicação de Os Sertões, em 1902, denunciara a guerra do governo brasileiro contra os caboclos da Bahia; o outro, pelo Tratado de Petrópolis, de 1903, evitara que os caboclos do Acre entrassem em guerra contra o governo de La Paz.

Os unia a paixão pela História e pelo Brasil. De resto eram diferentes em tudo. O barão descendia do patriciado luso-brasileiro, era filho do Visconde de Rio Branco, homem habituado aos viveres da Europa. Um monarquista que se colocara a serviço da República, Euclides, ao contrário, era “um bugre”, como ele mesmo dizia. Um cariri, um indiozinho que, moço, fora republicano mas que àquelas alturas se decepcionara com o regime de 1889. Ao contrário do barão, nunca fez questão de ir conhecer Paris. Queria, isto sim, era desbravar “as paisagens bárbaras”, meter a cara nos assombros do Brasil ainda pouco desconhecido.

O barão, sempre atento aos talentos, o satisfez. Em 9 de agosto de 1904, nomeou-o chefe da Comissão do Alto Purus para ir fixar as longínquas fronteiras com o Peru. Talvez esperassem dele de uma outra maravilha literária resultante do contanto de Euclides com as selvas.

A Amazônia frustrou o escritor. Impressionante sim. Muita água, imensa, barrenta, perigosa, muito mato, muito cipó e muito bicho. Uma “imensidão deprimida”. De dia silenciosa, de noite um carnaval. A fauna, aos ruivos, aos gritos e aos pios, fazia a festa a partir do pôr-do-sol. Sentiu-se lá um Adão no jardim paleozoico. Tudo lhe era estranho, fantástico, e muito chato. Tudo lhe era estranho, fantástico, e muito chato. Para onde se olhava via-se a desolação, tudo raso e plano.

O rio, sempre desbordando, desmoralizava qualquer trabalho sério. A marge de hoje soçobrava nas correntes do amanhã. Lá, as matas caminham em meio a um tumulto permanente produzido pelas monstruosas leis fisiológicas da região. Os moradores, pendurados nas palafitas, só sobreviviam pelo nomadismo. Por isto, na Amazônia, excetuando-se a concentração enérgica dos seringueiros em Manaus, a civilização era impossível. De resto, o caucheiro “é o homúnculo da civilização”, vilmente explorado pelos coronéis do barranco. Era um reino sem história - “à margem da história”, como designaram a coletânea de artigos dele publicada em 1907.

Chegado a Manaus em 30 de dezembro de 1904, depois de uma viagem de 17 dias, rumou logo pôde para a sua missão. Acompanhou-o um capitão peruano, dom Pedro Buenaño. Até por um naufrágio ele passou no Baixo Purus. De onde estava quando podia, informava o barão. A Amazônia era uma esfinge. Ninguém conseguia abarcar o seu todo. Mal e mal captavam-se facções da natureza. A amplidão é tal que ofusca o entendimento, inibe mesmo uma “inteligência heroica”.

Antes de findar a expedição que durou quase um ano. Em carta a Domício de Gama, Euclides imaginou o ridículo de uma guerra entre o Brasil e o Peru. Como se dois duelistas, um no alto do Pão de Açúcar e o outro no Corcovado, tentassem terçar espadas separados por um abismo vazio.

Bendita essa viagem de Euclides de cem anos atrás. Ainda que a Amazônia continue rendendo muito pouco, a nossa ensaística enriqueceu-se com as observações dele, ao ponto de até hoje, entre tantos que escreveram sobre aquela “Terra sem História”, ninguém conseguiu deixar, em prosa, nada que fosse superior à de Euclides da Cunha.

*Historiador

Fonte: Zero Hora, página 13 de 14 de novembro de 2004.

 

quinta-feira, 4 de novembro de 2004

Presídio Central / Acredite ou não


Na bela obra “Os viajantes olham Porto Alegre”, de Sérgio da Costa Franco e Valter Antônio Noal, o alemão Victor W. Esche, que aqui esteve provavelmente em 1888, descreve nossos principais prédios e se admira, dizendo que “... o estrangeiro fica particularmente comovido pelo fato de ser o presídio a construção mais luxuosa da cidade e também a de maior bom gosto, construído em estilo de castelo, cercado externamente por altos muros.
Quanto aos presidiários, 'para um alemão acostumado à disciplina militar', é um espetáculo engraçado vê-los perambulando pelas ruas da cidade em seus trajes de presídio, com as correntes tilintando e desaparecerem dentro de um botequim, enquanto o policial que está vigiando, se não for convidado, espera pacientemente à porta, até o sr. Prisioneiro se fortaleça suficientemente”.



Fonte: Flávio Alcaraz Gomes, Correio do Povo, página 4 de 4 de novembro de 2004.

quarta-feira, 3 de novembro de 2004

Santa Catarina desenvolve maçã resistente

Resistente ao frio no período de brotação, uma nova variedade de maçã, a castel gala, já estará no mercado em janeiro de 2006. A cultivar, lançada em junho durante o Enfrute, em Fraiburgo (SC), vem sendo desenvolvida há cinco anos pelo agrônomo Jânio Seccon, de Monte Castelo (SC). Em convênio com a Epagri, as mudas são multiplicadas para preparar a venda. “A vantagem é que a gala standart exige 700 horas de frio para brotar enquanto essa requer 400 horas, podendo ser plantada em regiões mais quentes.” Com isso, os frutos podem ser colhidos até quatro semanas antes da variedade convencional, período em que o mercado oferta somente produção do ano anterior, armazenadas em câmaras frias. “Em geral, maçãs recém-colhidas e comercializadas do Natal ao final de janeiro têm preços maiores que os obtidos a partir da colheita da gala, de fevereiro em diante”, explica o técnico agrícola da Epagri de Monte Castelo, Pedro Cardoso.

A castel gala tem origem numa mutação genética natural da planta. Seccon conta que lhe chamou à atenção a um único ramo da muda já brotado e florescido em pleno inverno. “Cortei ele e comecei a enxertar e multiplicar. Fiz 30 mudas, acompanhando a floração, produção e incidência de doenças e pragas”. Depois, firmou parceria com a Epagri para realização de novos testes. Novos enxertos foram feitos sobre Maruba / M-9 e, para confirmação, sobre a M-9. “No ciclo 2003/04, constatou-se que todas as plantas apresentavam brotação e floração uniformes, bem mais precoces que a gala, confirmando mutação homogênea e estável para essas características. “A Epagri já fez o registro e proteção da variedade junto ao Mapa. “Quando começar a produzir as mudas, repassei um percentual da venda à Epagri”, diz Secoon, detentor dos direitos comerciais para multiplicação e venda das mudas.

Fonte: Correio do Povo, página 15 de 3 de novembro de 2004.

sexta-feira, 20 de agosto de 2004

Reencontrando o tempo, redescobrindo a literatura, por Moacyr Scliar

Receita para diferenciar uma pessoa comum de grande escritor: dar a ambos uma dessas pequenas tortas que os franceses conhecem como madeleines. A pessoa comum gostará ou não gostará, mas ficará nisso. O grande escritor imediatamente mergulhará em recordações do passado, que resultarão numa notável obra literária. Observação: a madeleine não precisa ser de qualidade excepcional, mas o escritor deve ser Marcel Proust.

Nascido em Auteil, perto de Paris, em 1871, Proust era filho de um casal peculiar. O pai, o médico Adrien Proust, era um homem enérgico, autoritário mesmo. A mãe, Jeanne Wiell, vinha de uma próspera família judaica da Alsácia e foi um pequeno Marcel o tipo da mãe judia superprotetora. Proteção de que ele aliás precisava: era um menino enfermiço, sujeito a crises de asma. Apesar disso, foi à escola e até fez um ano de serviço militar. Depois cursou Direito na universidade.

Ainda jovem escrevia para revistas simbolistas e frequentava salões como o de madame Arman, amiga do famoso escritor Anatole France. Graças a este conseguiu publicar (1896) seu primeiro livro, Les Plaisirs et les Jours, coletânea de contos, ensaios e poemas, que não teve maior repercussão. Tentou um romance, que ficou inacabado (mas foi publicado em 1952, com o título de Jean Santeuil). Dedicou-se então à tradução e à redação de artigos. Com a morte do pai (1903) e da mãe (1905), abandonou a alta sociedade. Financeiramente independente, refugiou-se em seu apartamento no Boulevard Haussmann e ali dedicou-se a escrever. Em 1907, publicou no Le Figaro um artigo sugestivamente intitulado Sentimentos Filiais de um Parricida, no qual analisa dois elementos que seriam fundamentais em seu trabalho: culpa e memória. Estava pronto para começar sua obra monumental Em Busca do Tempo Perdido (La Recherche du Temps Perdu), tarefa a que dedicaria boa parte de sua curta vida (faleceu de pneumonia em 1922).

São sete partes, a primeira das quais, No Caminho de Swann, financiou com seu próprio bolso em 1913, depois que André Gide aconselhou a editora Gallimard a rejeitá-la. O livro provocou estranheza (E. M. Forster considerou-o “caótico”). Mas Gide voltou atrás, apoiando a publicação dos volumes restantes, que acabaram por fazer sucesso. Um sucesso que ele não chegou a presenciar: os três últimos volumes foram publicados após a sua morte.

No Caminho de Swann está dividido em três partes. A primeira intitula-se “Combray”, nome da vila onde o narrador passou a infância. Toda a ação se desenrola em uma noite. Deitado, ele evoca sua infância e os personagens que nela foram importantes. A segunda, Um Amor de Swann, é focada neste parisiense elegante, mundano, amante da arte. Swann conhece a fútil e inconstante Odette de Crecy com quem se casa, apenas para concluir que está perdendo tempo com ela (e a questão do “tempo perdido” remete ao título geral da obra). A terceira parte conta com a adolescência do narrador em Paris e seu amor por Gilberte. Passado e presente se fundem, e as lembranças mudam de acordo com o momento em que são evocadas. Enfim, a memória, e o questionamento da memória dão o tom da novela. O estilo é peculiar: longos parágrafos que, segundo Mário Quintana, um dos tradutores de Proust no Brasil, “davam a volta ao quarteirão”. Mas foi uma literatura renovadora, que influenciou autores como Virgini Woolf e James Joyce e permanece como um monumento literário do modernidade.

Fonte: Zero Hora