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quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

O Império da Vingança, por Voltaire Schilling*



“...mas de ruins princípios, é sabido, jamais bons resultados têm saído.”
Shakespeare – A Tragédia do Rei Ricardo II, ato II, 1595-6


Em meio aos duros tempos de ocupação romana da Palestina (I a.C. - II d.C.), a Revolução da Cruz, liderada por Jesus Cristo, propôs um radical mudança ética: o inimigo, o que atormenta e oprime, deveria ser amado e não mais odiado. Foi um esforço do Nazareno em banir o terrível costume da vendetta, prática tão comum na bacia do Mediterrâneo, que obrigava a vítima, ou um parente dela, a reagir pela exposição do sangue do ofensor. Intentou ele estabelecer um patamar elevado entre os homens – ainda que utópico – para contornar a rotina de brutalidade. Estancar um ciclo sem fim de crimes seguidos de represálias, recomendando ao ofendido, ainda pensando seus ferimentos, perdoar o seu agressor.
Não houve na história do Ocidente, e isto é seguro, propósito do evangelho, mais desrespeitado e desconsiderado do que esse, visto que a vingança sempre foi muito popular. Mostra a História que vingar-se é um dos instintos humanos mais incontroláveis que se conhece. Quem é humilhado não vira tolerante. Ao contrário, quer descarregar num outro, de preferência mais fraco, o que acabou de padecer. Os alemães, por exemplo, indignados pelas condições impostas pelo Tratado de Versalhes, de 1919, e mais ainda pelas existências absurdas das indenizações de guerra fixadas pelos vencedores de 1918 (o que causou a mais violenta inflação ocorrida numa sociedade industrial moderna de que se tem conhecimento, a débâcle do marco de 1923), viram na oratória chauvinista e belicista de um ex-comandante chamado Adolf Hitler, líder do partido nacional-socialista, a possibilidade de vir a executar a grande revanche.
Com os franceses não se deu muito diferente (ainda que em menor proporção). Tendo a pátria ocupada por quatro anos pelas tropas nazistas (1940-44), envergonhados com a fraca resistência que opuseram ao invasor, logo que se viram livres dos generais nazistas, não tiveram nenhum remorso em , terminada a guerra na Europa, irem reprimir os vietnamitas (1945-1954) e, em seguida, os argelinos, insurgidos contra eles (1956-1961). Usaram então as mesmas práticas de torturas e espancamentos que tanto lamentaram terem sofrido antes, nas mãos da Gestapo. Descontaram nos colonizados as aflições que sofreram nas mãos dos alemães.
Por que Harry Truman, o presidente dos Estados Unidos em 1945, tendo plena consciência dos devastadores efeitos, deu a ordem para lançarem-se duas bombas atômicas sobre a população civil japonesa? O Japão, por acaso, já não estava nas últimas, prostrado, sem marinha e sem aviação? Vingança! Nada senão vingança. Carregava Truman dentro de si a amargura, comum a todos os norte-americanos naquela ocasião, pelo ultraje causado pelo ataque à base de Peral Harbor, destruída de surpresa pela esquadra de Tojo em 8 de dezembro de 1941. A taça da vingança americana somente secou com o calor dos artefatos que incineraram o povo de Hiroshima e Nagasaki.
Sente-se que idêntica circunstância de psicologia coletiva deu-se agora aom a reeleição do presidente George W. Bush. Mesmo sabendo que o republicano mentiu para eles e para o mundo (ainda que a administração Bush tenha exposto os Estados Unidos ao vexame universal revelado pelas fotografias da prisão de Abu Ghraib, em Bagdá, e que até agora, com o bombardeio e ocupação do Iraque, já tenha vitimado uns 100 mil iraquianos), foi consagrado com a maior votação popular da história eleitoral do país: quase 60 milhões de votos. Para as multidões norte-americanas, George W. Bush é o vigador do 11 de Setembro, a desforra das Torres Gêmeas. A destruição das cidades do Iraque e de outras que ainda virão, é a Hiroshima dele.
Poderia, afinal ser diferente? Se os civilizados descendentes de Goethe e de Beethoven, se os herdeiros de Victor Hugo e do doutor Pasteur, povos com sólida cultura humanista, quando em crise, não resistiram ao chamado primitivo das Erínias – as fúrias postas a serviço da vingança –, como seria possível esperar que esta pobre gente de Ohio, de Oklahoma, do Missouri, do Alabama ou das Carolinas, berço da Ku-Klux-Khan, beatos que acreditam que Charles Darwin foi um agente do demônio, poderia reagir de outra forma? Como votariam diferente do que votaram? É o eleitorado que anda com a Bíblia nas mãos quem mais deseja ver o sangue esguichar, são eles os maiores entusiastas do Império da Vingança.


Historiador


Fonte: zero Hora, 6 de novembro de 2004, página 15.

sábado, 21 de novembro de 2015

Abaixo a vacina!, por Voltaire Schilling*

 “Houve de tudo ontem. Tiros, gritos, vaias, interrupção de trânsito, estabelecimentos e casas de espetáculos fechadas, bondes assaltados e bondes queimados, lampiões quebrados a pedrada, árvores derrubadas , edifícios públicos e particulares deteriorados.” - Gazeta de Notícias, 14 de novembro de 1904

Se bem que o Rio de Janeiro daqueles tempos não tivesse nenhum buraco negro como em Calcutá, um semidouro abrasante de homens brancos, a capital do império em termos de higiene e saúde pública era um pavor. A paisagem sim, belíssima, de extasiar, mas as condições de vida para quem vinha da Europa eram de assustar. O Conde Gobineau, embaixador francês no Brasil e amigo do imperador dom Pedro II, mal desembarcou em 1869, foi derrubado por uma febre que o prostrou por seis meses. Deixou direto que o Rio de Janeiro era um “deserto povoado por malandros” e passou boa parte do tempo alarmado em contrair algo mortal. Podia ter sido eleito por qualquer das desgraças tropicais: a peste bubônica, a febre amarela ou a varíola, entre tantas mais, visto que a cidade acolhia todas as pandemias existentes. O Rio era um hospital a céu aberto.
Salvando-se o aprazível bairro do Botafogo, morada do Conselheiro Aires de Machado de Assis, e o Flamengo, o centro da cidade era medonho. Ali, da beira do cais estendendo-se até os morros da Saúde e da Providência, concentrava-se a república dos cortiços. Um mar de casebres, colados uns aos outros, que parecia não ter fim. Com a abolição de 1888, a situação urbana piora. Milhares de ex-escravos, largados sem nada do eito, deram com os costados por lá. Viviam ao deus-dará.
O ponto determinante que levou as autoridades republicanas a pôr um fim naquilo, naquele matadouro invisível, foi a morte em massa de marinheiros italianos. Em 1895, 240 tripulantes da fragata Lombardia, em visita à cidade, caíram atacados pela febre amarela. Em uma semana, 144 deles morreram, inclusive o comandante. Como atrair imigrantes para virem para o Brasil com aquilo? Precisou-se esperar pela Presidência de Rodrigues Alves, o “soneca”, que, negando o apelido, resolveu detonar.
Em 1903, ele deu carta branca ao engenheiro Pereira Passos para desmantelar os pardieiros e construir uma Paris tropical no lugar deles, ao tempo em que indicou o doutor
Oswaldo Cruz, vindo do Instituto Pasteur, da França, para acabar com os “microassassinos”, geradores das doenças (não era o calor, nem a maresia que provocava as febres e pestes, mas sim os insetos e os ratos).
Com a picareta e a dinamite do “bota-abaixo”, somadas à fumaça contra os pernilongos, esperava-se que a cidade deixasse de ser o que Olavo Bilac chamou de “cemitério dos vivos”.. Naturalmente que a população pobre, aquela imensa plebe sem eira nem beira que habitava o miolo da capital, não gostou nada daquilo. Explodiram quando deu-se a aprovação da obrigatoriedade da vacina contra a varíola, em 31 de outubro de 1904.
Os ajuntamentos e os tumultos se multiplicaram a partir do dia 10 de novembro. Multidões furiosas reuniram-se no Largo São Francisco para protestar. A obrigatoriedade, entendiam eles, era uma monstruosidade. Uniram-se a eles os poucos positivistas, denunciando o “despotismo sanitário” do doutor Oswaldo. Num zás os bondes começaram a ser atacados. As lojas do centro foram varridas a pedradas. Nas ruas, colchões ardiam em meio a latas viradas. Escaramuças de desordeiros contra a polícia se multiplicavam por todos os lados. Barricadas surgiram do nada. O grito de guerra deles era “Abaixo a vacina!”
Outras vítimas foram os lampiões. Do desembarcadouro da cidade até Copacabana (despovoada na época), não sobrou nenhum para alumiar as noites. Cada parte da turbamulta entrou na batalha a seu modo e gosto. Os trabalhadores alegaram que defendiam suas famílias da intromissão indecorosa dos vacinadores, a choldra queixava-se do abandono e dos maus tratos, e os estudantes por amor à baderna. Até a rapaziada do Colégio Militar, então na Praia Vermelha, pegou em armas contra o governo. Por cinco dias, do dia 10 ao dia 15 de novembro, deu-se um pandemônio no Rio de Janeiro.
O governo reagiu trazendo tropas de fora, de Niterói e até de São João del Rei, regimentos aptos a disparar nas turbas. Obuses foram lançados sobre o morro da Gamboa e da Saúde (sinta-se a ironia do nome). Somou-se quase mil presos, 30 mortos e uns 200 feridos. Assim, ao troar das canhonadas, a “metrópole dos desocupados”, em mãos da “matula desenfreada”, como Bilac chamou a cidade revoltada, voltou à calma no dia 15 de novembro de 1904, justo quando a república completava 15 anos. Revogou-se a obrigatoriedade no dia seguinte. Todavia, a vacinação “pegou”. Oswaldo Cruz, que fora moralmente linchado, apelidado de o “Czar dos mosquitos”, terminou por ser reconhecido e Pereira Passos, o “bota-abaixo”, levou adiante seu sonho de estender bulevares parisienses em meio à miséria carioca. Viabilizaram o Rio de Janeiro de hoje.

*Historiador


Fonte: Zero Hora, página 17 de 21 de novembro de 2004.



quarta-feira, 17 de junho de 2015

Nebrija e o império do idioma, por Voltaire Schilling*


A língua sempre foi companheira do império
Antônio de Nebrija à rainha Isabel de Espanha, 17/07/1492

O ano de 1492 ficou memorável na história da Espanha. Os reis católicos Fernando e Isabel não só conquistaram a Alhambra, o último reduto dos mouros em Granada, como Cristóvão Colombo, a serviço deles, alcançou o Novo Mundo. Por igual foi a ocasião em que a rainha Isabel “senhora natural de Espanha e das ilhas do nosso mar”, recebeu uma histórica carta vinda de Salamanca, com a data de 17 de agosto de 1492.
Remetera-a um famoso gramático castelhano, o humanista Antônio Cola Xarana, conhecido como Antônio de Nebrija, um andaluz dotadíssimo para o estudo das letras. Cansado de ver o belo idioma de Castela destratado e mal escrito, cada súdito inventando uma maneira própria de escrever , decidira-se pôr um fim naquela anarquia ortográfica. Para tanto, passara alguns bons anos da sua vida de acadêmico da prestigiosa Universidade de Salamanca, a Sorbonne dos espanhóis (fundada em 1218), a redigir um compêndio gramatical que fizesse cessar os danos ao idioma. A intenção era fixar normas e dar ao castelhano consistência para facilitar o aprendizado do latim.
Chegara a hora da edição, num só tomo, dos seus cinco livros e 55 capítulos. Era isso que ele comunicava à rainha, a quem ele consagrava a sua Gramática de la Lengua Castellana. Algo tão grandioso como as velhas catedrais da Espanha.
Naquela época, as línguas neolatinas conhecidas na Ibéria eram genericamente derivadas do que entendiam ser o romance: uma evolução do latim vulgar. Historiando para a soberana a crônica dos idiomas, Nebrija observou que é no apogeu do poder imperial que eles se firmam. É no esplendor de um trono que a fala se fortifica.
Nunca o hebraico fora tão vigoroso como com Moisés, o mesmo dando-se com o grego depois da Guerra de Troia e com o latim nos tempos de César e Augusto, ocasião em que Cícero, Lucrécio, Virgílio, Horácio, Ovídio e Tito Lívio. Exercitaram-no em prosa e verso.
Todavia a chegada das palavras escritas à Ibéria, lembrou ele à soberana, não deveu-se nem a gregos muito menos aos cartaginenses, mas sim às legões romanas. O duro linguajar dos acampamentos, alterando-se aos poucos, ganhou direito de ir assentar-se nas vilas e nos lares da Espanha. Nem as invasões dos godos (a partir de 410), nem a longa ocupação dos mouros (711-1492) conseguiram remover dos iberos o idioma que haviam adotado como seu.
O momento que ele escolhera para lançar sua obra não poderia ser melhor. Exatamente quando a Espanha dava um passo final para sua unidade política, o humanista oferecia à Coroa um poderoso instrumento de integração cultural: uma gramática.
Nebrija expôs que a missão que ele escolhera não só oferecer aos espanhóis instruídos uma leitura para suas horas de ócio, mas sim um tratado de gramática “que se estendesse por toda a duração dos tempos que ainda estão por vir”. A ambição dele era fazer com que o castelhano perdurasse pelos tempos afora do mesmo modo que o grego e o latim. Idiomas que, por mais que os séculos corressem, mantinham um padrão quase inalterado.
Palavras proféticas. Desde então, refinado pelo cultivo dos poetas e dos literatos do México, da Colômbia, do Chile, da Argentina, e de tantas outras partes da América Hispânica, definido como belo, forte e varonil, o idioma de Cervantes cresceu para todos os lados. A língua que Nebrija celebrou no presente é falada por 350 milhões de pessoas em vários cantos do mundo. É a mais dinâmica e irreverente das que descendem do antigo Lácio.

*Historiador


Fonte: Zero Hora, 15 de agosto de 2004.

sábado, 6 de junho de 2015

O apóstolo das cores, por Voltaire Schilling*

Minha mais íntima prioridade, a primeira, é que o espírito do meu avô renasça em mim e que me faça ser um cristão, um servidor de Cristo.
Vicent van Gogh, 1879-80

Não se sabe ao certo qando Théo van Gogh percebeu que por detrás das doidices e bizarrias do seu irmão Vicent, quatro anos mais velho do que ele, ocultava-se um gênio das artes. Talvez quando começaram a sua intensa correspondência, ao redor de 1872. Filhos de um pastor da igrejja holandesa reformada, nascidos nos grotões da Holanda, praticamente eram irmãos siameses: a dor de um era o sofrimento do outro. Vicent tentara de tudo na vida: de atendente de livraria a pregador evangélico. Um fracasso completo. Depois de um dos tantos desencantos amorosos que sofreu, teve um crise mística que o fez deixar Londres e embrenhar-se em Borinage, na zona carbonífera belga, para ir levar a palavra divina aos mineiros.
Lá imaginou-se Jesus, dormindo sobre palhas e mastigando pão duro, levando uma existência sofrida o mais próximo possível de uma expiação. Seus superiores acharam que aquilo era demais e o dissuadiram da carreira ministerial. Nesta ocasião, ele fez o esboço dos Comedores de Batatas (depois célebre retrato que se firmará como uma espécie de Santa Ceia dos Trabalhadores). Sim, porque em todas as ocasiões, como se fosse um possuído, ele não parava de desenhar.
Théo, por sua vez, empregado na Galeria Goupil em Paris, desde 1880 passou a sustentá-lo. Ao redor dos 30 anos, a aparência de Vicent era medonha. Seus cabelos vermelhos curtos, seus dentes estragados e suas roupas de mendigo compunham um visual de dar medo, assustador. A isso somava-se o seu temperamento esquisito. Van Gogh era um ouriço. Irritava-se com tudo e com todos, sofrendo surtos pavorosos de demência (supõe-se que resultante da sífilis e do alcoolismo), o que condenou à solidão, a expressar-se cada vez mais pelas gravuras.
Entrementes, nos campos da França assistia-se a uma revolução. Não pelas armas pelas paletas e tintas. Chamados jocosamente de !impressionistas”, uma nova geração de artistas, rompidos com a arte acadêmica, tomou as aldeias e vilarejos de assalto. Pintavam o que viam. As plantações, as flores e árvores, as nuvens, as pontes, as choupanas do povo miúdo, os camponeses empilhando o feno ou arando as terras etc. As cores, fortes ou fracas, eram dadas diretamente pela intensidade do sol ou pela ausência dele. Viviam na necessidade, alguns beiravam a miséria.
Não demorou para que Van Gogh, abandonando em 1887, o apartamento do irmão na Rua Lépic, nº54, em Montmartre, em Paris, se juntasse a esses apóstolos das cores, indo para Arles no sul da França, região onde o sol era intenso. Arrastou consigo Paul Gauguin, que antes havia se fixado em Port-Aven na Bretanha, liderando uma tribo de uns 20 artistas impressionistas. Foi então que deu-se a explosão da sua paixão pelo amarelo, cor do ouro, do trigo, a cor de Apolo.
Théo, entrementes, com pouco sucesso, fazia de tudo para vender as telas daqueles pobres loucos. Vicent transformara a pintura numa missão. Nada mais cristão para ele do que retratar os humildes e só simples em suas funções e a natureza fulgurante, viva e móvel que os cercava. Surgiu como se investido, como se um profeta pintor produzisse um Sermão da Montanha com pincel e tintas.
Anos depois do suicídio dele, ocorrido em Auvers-sur-Oise, em 29 de julho de 1890, quando pôs fima a sua vida dolorosa, seu sobrinho registrou que sua mãe, Jo Van Gogh-Bonger, a viúva de Théo (que morreu seis meses depois do irmão), tinha numa casa em que alugara em Bussum, no interior da Holanda, as paredes repletas com as obras-primas de Vicent. Hoje, somente quatro delas estariam avaliadas entre US$ 250 milhões e US$ 300 milhões! A ela é que se deve a primeira exposição de 473 obras de Van Gogh no Museu Municipal de Amsterdã, realizada em 1905. Fará um século em julho do ano vindouro. Duas mil pessoas acorreram para vê-las. Ainda riram das telas dele.

*Historiador


Fonte: Zero Hora, página 17 de 18 de julho de 2015.

Nassau, arquiteto da cultura, por Voltaire Schilling*

Andava o Príncipe Conde de Nassau tão ocupado em fabricar a sua cidade, que para afevorar os moradores a fazerem a casa, ele mesmo, com muita curiosidade lhe andava deitando medidas, e endireitando as ruas, para ficar a povoação mais vistosa, e lhe trouxe a entrar por meio dela, por um clique, ou levada, a água do Rio Capiberibe...”

Frei Manoel Calado Salvador – Valeroso Lucideno e Triunfo da Liberdade, 1648...

Pois não é que até os moradores do vilarejo de Recife, ocupado pelos holandeses desde 1630, deram para colaborar voluntariamente com o Conde de Nassau. Espantados e intrigados, nunca haviam visto um fidalgo tão envolvido com o lugarejo. Encontravam-no pelas vielas pelas vielas empunhando uma trena posto a medir a largura das ruas e a dimensão das casas e palácios que se pusera a constituir. Espontaneamente, vendo que aquele alemão não deseja apenas extorqui-los, começaram a trazer-lhe madeira, telhas, tijolos e pedras, a título de colaboração.
Apesar de ter seus costados amparados no Nassau-Siegen, uma família de aristocratas germânicos que tinham raízes fincadas no Sacro Império Romano-Germando, o Conde José Maurício atendia a todos com muita simplicidade.
Desembarcando no nordeste do Brasil com uma equipe de arquitetos e engenheiros, o conde foi fundo na construção da Mauristaad, a cidade de Maurício. Célebres por aplacar tiranias do Mar do Norte, os técnicos de José Maurício “arquitetos da cultura”, devem ter achado bem mais fácil domar o Rio Capiberibe e secar mangues e os pântanos circunvizinhos à minúscula Recife de então,.
A intenção dele era fazê-la estupenda, a capital do império holandês das Américas (composto então por uma cadeia de fortalezas que iam do Forte Schoonenbourg, no Ceará, até o Forte Maurits, na embocadura do São Francisco, ao sul de Alagoas, uns 1,5 mil quilômetros mais ao sul). Controlado diretamente o açúcar de uma lado do oceano e o tráfico negreiro do outro, o “ouro doce”ficava inteiramente nas mãos da WIC (West Indische Compagnie), a grande empresa holandesa daqueles tempos, a qual ele representava como general-governeur (de 1637 a 1644).
Enquanto na Europa monarcas católicos e protestantes se enfezavam na terrível Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), João Maurício criou em Pernambuco o único espaço em que se praticou a liberdade religiosa, autorizando o funcionamento das igrejas católicas e da sinagoga judaica (aberta em 1642, a primeira da América do Sul), num raro convívio harmônico com os templos calvinistas.
Ao embarcar para Nieuw Holland, a Nova Holanda (o nordeste do Brasil), em outubro de 1636, na frota não trouxe apenas soldados, por por igual uma plêiade de naturalistas e pintores. Enquanto Frans Poste Albert Eckhout imprimiam em telas memoráveis as paisagens e os “exóticos” habitantes da província açucareira, usando na composição delas o que havia de melhor e mais avançado dos equipamentos de observação da época (são os únicos testemunhos pictóricos do Brasil do século 17), dois outros homens de ciência, o médico Wilhelm Piso e o naturalista alemão Georg Marggraf, lançaram-se ao estudo da farmacopeia local, das doenças tropicais, da fauna e da flora de um modo geral.
A expedição científica de Nassau, que se encerrou com a volta dele para a Holanda em 1644, depois de ele desentender-se com a Companhia, foi a única que o Brasil até então conhecera. Outra igual importância somente deu-se nos tempos de dom João VI, 175 anos depois!
Residindo por fim em Haia, José Maurício, que no seu diário deixou páginas de embevecimento com os anos que passou no Brasil, tornou o palácio de Stadhouder, do governo holandês, no Mauritshuis, uma galeria de arte. Há pouco, no 17 de junho passado, três cidades celebraram 400 anos do nascimento dele, ocorrido em 1604: Dillenbourg, na Alemanha, sua cidade natal; Recife, no Brasil, que ele transformou; e Haia, na Holanda, onde ele administrou. Para muitos “o parêntesis luminoso” de Nassau foi um dos poucos governos sérios que o Brasil teve nos seus primeiros três séculos.

*Historiador


Fonte: Zero Hora, página 8 de agosto de 2008, página 13.