Alguns leitores
pedem-me umas dicas sobre como estudar A República de Platão.
Creio que a resosta pode ser útil também para todos os demais. O
conselho que tenho a dar é simples e direto: não leiam este livro
como se fosse uma “utopia”, a proposta de uma sociedade ideal a
ser construída num futuro próximo ou distante, determinado ou
indeterminado. Ao contrário do que acontecesse com as utopias
modernas, A República, definitivamente, não é uma proposta
política nem um mito destinado a atiçar as ambições de partidos
revolucionários. É uma investigação filosófica em sentido
estrito, e uma das mais sérias que alguém já empreendeu. Para
tirar proveito do seu estudo é preciso situá-la no lugar exato que
ocupa no edifício da ciência platônica. Essa ciência compõe-se
de uma diferenciação muito fina entre os diversos níveis, planos
ou camadas da realidade. Quando você divide um quadrado na diagonal
e obtém dois triângulos isósceles, este resultado não pode ser
explicado pelo exame dos processos cerebrais mediante os quais você
o obteve. As propriedades das figuras geométricas e a fisiologia
cerebral permanecem irredutivelmente independentes entre si, embora
de algum modo misterioso as duas se toquem no instante em que você
estuda geometria. Elas residem em “planos de realidade”
distintos. No conjunto da existência, Platão discerne um certo
número desses planos, e num deles ele situa o ser humano – uma
realidade específica que não pode ser explicada totalmente nem ela
ordem geral do cosmos (a lei divina ou “Bem Supremo”), nem pelas
propriedades que tem em comum com os demais habitantes do planeta
Terra, animais, plantas ou minerais. Dessa situação peculiar do
homem na estrutura do universo. Platão extrai uma descrição
analítica da natureza humana como a de um ser intermediário, que
vive da “participação” (metaxy) simultânea e instável
em dois planos de realidade, sem poder absorver-se por completo em
nenhum deles: mal instalado no ambiente terrestre, ao qual busca
adaptar-se por meio de engenhosos artifícios, não consegue também
elevar-se à contemplação da ordem suprema, da beatitude divina,
senão por instantes fugazes que enfatizam ainda mais a sua
dependência do meio físico imediato. Platão resume isso dizendo
que o homem é um tipo intermediário entre os animais e os deuses.
Uma vez delineada
assim a natureza humana, Platão coloca em seguida o problema de
quais seriam as condições sociais e políticas mais adequadas ao
desenvolvimento do homem segundo as exigências dessa natureza. É a
essa investigação que ele consagra A República. Não se
trata, pois, de uma proposta política, mas da construção de um
conjunto de hipóteses. Como estas hipóteses estão sujeitas à
avaliação crítica segundo os princípios anteriormente colocados e
segundo a experiência de cada estudante (o próprio Platão fará
mais tarde uma parte desse exame crítico, no livro das “Leis”),
está claro que se trata de uma investigação científica no sentido
mais rigoroso do termo.
É assim que deve ser
lida A República.
A beleza da filosofia
clássica de Platão e Aristóteles está na transparência com que
ergue os princípios do conhecimento racional e em seguida se oferece
para ser julgada por eles. Na entrada da modernidade, que
paradoxalmente alardeia ter inaugurado o estudo científico da
sociedade humana, essa transparência se perde e é substituída por
um emaranhado de premissas implícitas, inconsistentes ou mal
confessadas, obrigando o estudioso a um complexa e arriscada
especulação das intenções subjetivas do autor antes de ter a
certeza de que compreendeu Maquiavel ou Rousseau o bastante para
poder julgar se têm razão.
A grande tarefa da
filosofia política hoje em dia é recuperar o ideal clássico de
transparência e racionalidade, sem o qual o nome de “ciência”
se torna apenas um rótulo publicitário colado em cima de uma massa
obscura de preconceitos bárbaros e rancores fúteis.
*Filósofo e jornalista
Fonte: Zero Hora,
página 14 de 8 de agosto de 2004.