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sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Os velhos, os tempos e as cozinheiras..., por Dilso José dos Santos*

 Bom, nunca entendi direito essa coisa de Réveillon. Dizem que a palavra Réveillon é oriunda do verbo révellier, que em francês significa “despertar”. Há quem encare como momento de “refeição”, do tipo que tradicionalmente, fazemos com muita lentilha, promessas e superstições – tudo isso durante a virada do ano, claro!
Não sei bem por que escrevo aqui sobre o tempo ou suas reviravoltas. Talvez o faça por capricho de uma palavra dada a meu pai. Ele disse que gostaria de ler alguma coisa minha mais uma vez ainda neste ano (devo ser péssimo falando). Não entendo esse orgulho maluco pelas letras de um analfabeto do tempo feito eu. Afinal, ele é o que tem mais tempos, ele e minha mãe, a esposa desse sessentão, quase setentão... Ah, que carga pesada ter que temperar o que só as cozinheiras e os velhos sabem fazer! Não sei nada sobre sabedoria, sabor é um elemento que sempre me veio pronto, como disse, feito pelas mãos de minha mãe, a melhor entendedora daquele verbo que quer se conjugar só para amar os outros: cozinhar. Os gregos já conheciam muito bem desse assunto, inclusive, os dividiram em quatro partes: kairós (tempo da oportunidade); íon (tempo da história); crono (tempo de tudo, para nós, os modernos, seria como se obedecêssemos aos ponteiros do relógio); e, finalmente o aion (tempo da explosão). (Não me refiro aqui à sapiência helênica para satisfazer o ego intelectual sobre a inteligência “natural”, mas para acrescentar. “É preciso ser muito bom ara ser simples”, já advertia meu pai, isso ainda não falta).
Sendo assim, como criança que sou (ao menos perto dos sábios e cozinheiros), sempre gostei mais do último, o aion, pois é ele que nos tira dessa medida de separação de antes e depois. Para os pequenos – aqueles que criam, daí vem o termo criança -, os tempos são minas terrestres, uma vez que explodem aos seus pés, bastando uma pisadela de imaginação para estourar. Ou seja, podem dar a volta ao mundo em um barquinho de papel, tudo bem rápido, tal como fazem as estrelas cadentes. Nós, filhos do relógio, apenas vemos o papel, não sabemos mais sobre a cor nem sobre ação. Só velhos e cozinheiras é que sabem voltar a “marujar” pela memória, uns meninos que reaprendem a levar água em peneiras “amanoeladas” e autopoiéticas, tudo por nada, apenas a pretensão de explodirem-se faceiros em uma breve eternidade.
Pai, mãe! Não me peçam mais para escrever sobre o que o mundo o mundo deixou inscrito nas peles de vocês. Sei das letras, leio, mas não tenho as marcas que me fazem um leitor eficaz e belo como vocês. Rugas são linhas cheias de verdades, que ainda não tive tempo para compreender, pois há coisas que devemos apenas sentir, tal como a fala de um velho e a comida caprichada de cozinheira. O ano foi bom, mas só porque ainda os pratos estão sobre a mesa e os livros ainda não queimaram, porque (como quer Mia Couto), quando morre um velho, arde uma biblioteca inteira. Ouvi-los e sentir os sabores que nos saboreiam, sim, isso já me basta. Saber que ainda estão comigo faz do ano um tempo lotado de tempos, uma bomba de Hiroshima que se abre como rosa perfumada, uma bomba do bem. Feliz Ano-Novo!

*Professor


Correio do Povo, edição de 31 de dezembro de 2014, página 2.