“Houve de tudo ontem. Tiros,
gritos, vaias, interrupção de trânsito, estabelecimentos e casas
de espetáculos fechadas, bondes assaltados e bondes queimados,
lampiões quebrados a pedrada, árvores derrubadas , edifícios
públicos e particulares deteriorados.” - Gazeta
de Notícias, 14 de novembro de 1904
Se bem que o Rio de Janeiro daqueles
tempos não tivesse nenhum buraco negro como em Calcutá, um
semidouro abrasante de homens brancos, a capital do império em
termos de higiene e saúde pública era um pavor. A paisagem sim,
belíssima, de extasiar, mas as condições de vida para quem vinha
da Europa eram de assustar. O Conde Gobineau, embaixador francês no
Brasil e amigo do imperador dom Pedro II, mal desembarcou em 1869,
foi derrubado por uma febre que o prostrou por seis meses. Deixou
direto que o Rio de Janeiro era um “deserto povoado por malandros”
e passou boa parte do tempo alarmado em contrair algo mortal. Podia
ter sido eleito por qualquer das desgraças tropicais: a peste
bubônica, a febre amarela ou a varíola, entre tantas mais, visto
que a cidade acolhia todas as pandemias existentes. O Rio era um
hospital a céu aberto.
Salvando-se o aprazível bairro do
Botafogo, morada do Conselheiro Aires de Machado de Assis, e o
Flamengo, o centro da cidade era medonho. Ali, da beira do cais
estendendo-se até os morros da Saúde e da Providência,
concentrava-se a república dos cortiços. Um mar de casebres,
colados uns aos outros, que parecia não ter fim. Com a abolição de
1888, a situação urbana piora. Milhares de ex-escravos, largados
sem nada do eito, deram com os costados por lá. Viviam ao deus-dará.
O ponto determinante que levou as
autoridades republicanas a pôr um fim naquilo, naquele matadouro
invisível, foi a morte em massa de marinheiros italianos. Em 1895,
240 tripulantes da fragata Lombardia, em visita à cidade, caíram
atacados pela febre amarela. Em uma semana, 144 deles morreram,
inclusive o comandante. Como atrair imigrantes para virem para o
Brasil com aquilo? Precisou-se esperar pela Presidência de Rodrigues
Alves, o “soneca”, que, negando o apelido, resolveu detonar.
Em 1903, ele deu carta branca ao
engenheiro Pereira Passos para desmantelar os pardieiros e construir
uma Paris tropical no lugar deles, ao tempo em que indicou o doutor
Oswaldo Cruz, vindo do Instituto
Pasteur, da França, para acabar com os “microassassinos”,
geradores das doenças (não era o calor, nem a maresia que provocava
as febres e pestes, mas sim os insetos e os ratos).
Com a picareta e a dinamite do
“bota-abaixo”, somadas à fumaça contra os pernilongos,
esperava-se que a cidade deixasse de ser o que Olavo Bilac chamou de
“cemitério dos vivos”.. Naturalmente que a população pobre,
aquela imensa plebe sem eira nem beira que habitava o miolo da
capital, não gostou nada daquilo. Explodiram quando deu-se a
aprovação da obrigatoriedade da vacina contra a varíola, em 31 de
outubro de 1904.
Os ajuntamentos e os tumultos se
multiplicaram a partir do dia 10 de novembro. Multidões furiosas
reuniram-se no Largo São Francisco para protestar. A
obrigatoriedade, entendiam eles, era uma monstruosidade. Uniram-se a
eles os poucos positivistas, denunciando o “despotismo sanitário”
do doutor Oswaldo. Num zás os bondes começaram a ser atacados. As
lojas do centro foram varridas a pedradas. Nas ruas, colchões ardiam
em meio a latas viradas. Escaramuças de desordeiros contra a polícia
se multiplicavam por todos os lados. Barricadas surgiram do nada. O
grito de guerra deles era “Abaixo a vacina!”
Outras
vítimas foram os lampiões. Do desembarcadouro da cidade até
Copacabana (despovoada na época), não sobrou nenhum para alumiar as
noites. Cada parte da turbamulta entrou na batalha a seu modo e
gosto. Os trabalhadores alegaram que defendiam suas famílias da
intromissão indecorosa dos vacinadores, a choldra queixava-se do
abandono e dos maus tratos, e os estudantes por amor à baderna. Até
a rapaziada do Colégio Militar, então na Praia Vermelha, pegou em
armas contra o governo. Por cinco dias, do dia 10 ao dia 15 de
novembro, deu-se um pandemônio no Rio de Janeiro.
O governo reagiu trazendo tropas de
fora, de Niterói e até de São João del Rei, regimentos aptos a
disparar nas turbas. Obuses foram lançados sobre o morro da Gamboa
e da Saúde (sinta-se a ironia do nome). Somou-se quase mil presos,
30 mortos e uns 200 feridos. Assim, ao troar das canhonadas, a
“metrópole dos desocupados”, em mãos da “matula desenfreada”,
como Bilac chamou a cidade revoltada, voltou à calma no dia 15 de
novembro de 1904, justo quando a república completava 15 anos.
Revogou-se a obrigatoriedade no dia seguinte. Todavia, a vacinação
“pegou”. Oswaldo Cruz, que fora moralmente linchado, apelidado de
o “Czar dos mosquitos”, terminou por ser reconhecido e Pereira
Passos, o “bota-abaixo”, levou adiante seu sonho de estender
bulevares parisienses em meio à miséria carioca. Viabilizaram o Rio
de Janeiro de hoje.
*Historiador
Fonte: Zero Hora, página 17 de 21 de
novembro de 2004.