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domingo, 5 de julho de 2015

A Vida de Eça de Queiroz

José Maria Eça de Queirós nasceu aos 25 de novembro de 1845, em Póvoa de Varzim, filho natural (e depois legitimado) de José Maria de Almeira Teixeira de Queiroz e de Dona Carolina Augusta Pereira de Eça de Queiroz. Em dezembro do mesmo ano, foi levado para a Vila do Conde e batizado na Igreja Matriz pelo padre Pedro Antônio da Silva Coelho. O pequeno Eça ficou entregue aos cuidados de uma modesta família de Vila do Conde, Ana Joaquina Leal de Barros e Antônio Fernandes do Carmo. Recebia a visita dos pais frequentemente. Sua legitimação como filho se deu com o casamento dos pais, em Viana do Castelo, em 1849. Algum tempo depois, deixou o Minho e foi levado para Verdemilho, para a casa dos avós paternos, Dona Teodora Joaquina de Almeida e Joaquim José de Queiroz e Almeida. Aos 10 anos, após a morte dos avós, os pais internaram. Eça no Colégio da Lapa, no Porto. Em julho de 1858, fez exame de instrução primária. Entre 1858 e 1861, fez uma série de exames que o habilitaram a frequentar a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (1861), onde se formou humana e literariamente dentro da filosofia positivista e materialista da época. Durante o tempo em que esteve em Coimbra, Eça de Queiroz travou relações com Teófilo Braga e Antero de Quental, que viria a ser o líder dos componentes da geração chamada realista. Desta fase da sua vida afirma Feliciano Ramos: “Sob o ponto de vista escolar, foi Queiroz um estudante apagado. Da Universidade e dos professores não lhe ficaram recordações lisonjeiras. Sua passagem por Coimbra nada tem de espetacular e é quase silenciosa”.
Em 1866, Eça enviou ao Teatro D. Maria I a tradução da peça de José Bouchardy, Philidor. Nesse mesmo ano, em 23 de março, saiu, na Gazeta de Portugal, o seu primeiro escrito conhecido, intitulado Notas Marginais. Formado em Direito (1866), partiu para Lisboa, instalando-se na casa paterna. Pendendo sempre para as letras, publicou até fins de 1866 uma dezena de folhetins. Em 1867, vamos encontrá-lo em Évora como fundador e diretor do jornal da operação Distrito de Évora, cujo primeiro número saiu no dia 6 de janeiro. Regressou, no mesmo ano, a Lisboa e recomeçou a sua colaboração na Gazeta de Portugal, publicando o seu décimo segundo folhetim, O Milhafre. Nessa ocasião, começou a formar-se o grupo do Cenáculo, Centro de Convívio intelectual, na Travessa do Guarda-Mor, em Lisboa. Participavam só grupo Salomão Saraga, Santos Valente, Jaime Batalha Reis, Antero de Quental e Eça de Queiroz partiu em companhia do Conde de Resende para o Oriente, a fim de assistir à inauguração do Canal de Suez. Dessa viagem resultou o livro O Egito, relato de suas experiências como repórter. Em 1870, publicou uma série de folhetins sob o título De Port Said a Suez. Foi nomeado administrador do Conselho de Leiria. Entre 24 de junho e 27 de setembro de 1870, saiu em folhetins o Mistério da Estrada de Sintra, no Diário de Notícias. Com a intenção de seguir carreira diplomática, entrou em concurso para cônsul de 1ª classe, na Sala de Corpo Diplomático do Ministério dos Estrangeiros, tendo sido classificado em primeiro lugar. O ano de 1871 marcou uma série de acontecimentos importantes: realizaram-se as famosas “Conferências Democráticas do Casino Lisbonense”, sendo Eça de Queiroz o quarto conferencista com a dissertação “Realismo como Nova Expressão da Arte”. Foi exonerado do cargo de administração em Leiria. Em 1872, dois anos após o concurso, partiu para Havana, nomeado cônsul de 1ª Classe nas Antilhas Espanholas. No ano seguinte conheceu os Estados Unidos em missão oficial. Transferiu-se, em novembro de 1874, para New Castle, na Inglaterra. Comçou a elaborar os primeiros romances naturalistas: O Crime do Padre Amaro, colocado a venda em volume em julho de 1876, e O Primo Basílio.
Nos anos de 1877 e 1878 colaborou no Jornal A Atualidade, do Porto, com as Cartas de Londres. Sua atividade intelectual e diplomática era intensa: transferiu-se para o consulado de Bristol (1878), colaborou no jornal Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro e publicou, em folhetins, o romance O Mandarim, no Diário de Portugal (1880). No início de 1880, viajou a Portugal, em férias, ali permanecendo até junho. Três anos após foi eleito sócio correspondente da Academia Real das Ciências. Em uma de suas viagens, estando em Paris em 1885, entrou em contato com Emile Zola, o mestre do naturalismo francês. Entretanto, apesar da intensa atividade como cônsul e literato, Eça de Queiroz sentia-se só. Tinha conhecido, no verão de 1884,, na praia da Granja, em Portugal, D. Emília Resende.
Mantinha com ela um romance, alimentado por farta correspondência. Resolveu, então, se casar. Em fevereiro de 1886, no oratório particular da Quinta de Santo Ovídio, contraiu matrimônio com D. Emília. O seu casamento e, dois anos depois, a sua nomeação como cônsul de Portugal em Paris mudaram radicalmente de vida. Instalou definitivamente sua casa em Neuilly, Paris, e passou a viver como burguês, dedicando-se ao lar, a família e aos seus escritos. Fez nova viagem a Portugal. Dirigiu a Revista de Portugal. Em 1889, agregou-se ao grupo dos Vencidos da Vida, de que faziam parte Guerra Junqueira, Oliveira Martins e Ramalho Ortigão, dentre outros. Em 1897, começou a publicar, na Revista Moderna, o romance A Ilustre Casa de Ramires. Doente já há algum tempo, Eça de queiroz deixou Paris, na companhia de Ramalho Ortigão, indo para a Suíça, “onde vai procurar alívio para os males de que padece há muito e nos últimos tempos se agravaram”. Seu estado de saúde piora. Regressa a Paris e falece aos 16 de agosto de 1900, em sua casa, as quatro e meia da tarde. No dia seguinte, foi transportado a bordo do navio “África”, para ser enterrado no Cemitério do Alto São João.

A obra de Eça de Queiroz

Eça de Queiroz escreveu romances e contos dedicando-se, ainda, à literatura de viagens e ao jornalismo. Romances. O Mistério da Estada de Sintra (1871, em colaboração com Ramalho Ortigão), O Crime do Padre Amaro (1875), O Primo Basílio (1878), O Mandarim (1880), A Relíquia (1887), Os Maias (1888), A Ilustre Casa de Ramires (1900), A Correspondência de Fradique Mendes (1900), A Cidade e as Serras (1901), A Capital (1925), O Conde de Abranhos (1925), Alves & Cia (1925).
Possui um exemplar Contos (1902). Sua obra como jornalista, relator de viagens e hagiógrafo estende-se nos seguintes livros: Uma Campanha Alegre (1890-1891), Cartas de Inglaterra (1903), Prosas Bárbaras (1905), Ecos de Paris (1905), Cartas Familiares e Bilhetes de Paris (1907), Notas Contemporâneas (1909), Últimas Páginas (1912), Correspondência (1926), O Egito (1926), Crônicas de Londres (1944), Cartas de Lisboa (1944), Cartas (1945) etc.
Embora Eça de Queiroz tenha sido crítico literário, epistológrafo, polemista e hagiógrafo, cronista e jornalista, foi como cotista e romancista que se destacou como o maior escritor português do século XIX e um dos maiores escritores da língua portuguesa. A crítica literária costuma dividir a obra queiroziana em três fases distintas: a primeira, de 1866 a 1875, denominada “romântica”; a segunda, de 1875 a 1888, chamada “realista”, a terceira, de 1888 a 1900, fase “social nacionalista”.
A primeira fase inicia-se com as primeiras publicações de artigos e crônicas na Gazeta de Portugal, trabalhos coligidos mais tarde por Jaime Batalha Reis no volume Prosas Bárbaras, e termina com a publicação de O Crime do Padre Amaro, em 1875, em sua primeira versão na Revista Ocidental. Caracteriza-se por ser fase de iniciação, de indecisão e por apresentar Eça de Queiroz múltipla influência do satanismo de Baudelaire, do lirismo de Heine, do macabrismo de Poe e Hoffmann. As obras desta fase demonstram um gosto pela linguagem nebulosa, um emprego incomum de adjetivos, uma certa tendência pela ordem direta e a criação e a aceitação de grande número de neologismos. As prosas Bárbaras são narrativas – uma espécie de conto – com a temática sinistra, macabra, situada em ambiente s exóticos, em geral, nos países nórdicos. Pertencem ainda a esta primeira fase O Mistério da Estrada de Sinistra, escrito em colaboração com Ramalho Ortigão, e Uma Campanha Alegre, produto do material publicado por Eça de Queiroz em As Farpas, jornal Satírico dirigido por Ortigão. O primeiro é um tipo de romance policial, cujo assunto se desenrolou a partir da agressão praticada por um grupo de mascarados na pessoa de um médico que regressava, com alguns amigos, de Sintra a Lisboa. Alguns veem na obra uma intenção em satirizar o romantismo de Camilo Castelo Branco, cujas obras estão repletas de atentados desse gênero. Eça de Queiroz reuniu em Uma Campanha Alegre, em dois volumes, toda a sua colaboração em As Farpas, matéria satírica e humorística, “Crônica mensal da política, das letras e dos costumes”.
A segunda fase tem início com a publicação de O Crime do Padre Amaro, e termina com a publicação de Os Maias. É uma fase em que, “aderindo as teorias do Realismo iconoclasta a partir de 1871, Eça coloca-se sob a bandeira da República e da Revolução, e passa a escrever, em coerência com as ideias aceitas, obras de combate as instituições vigentes (Monarquia, Igreja, Burguesia) e de ação e reforma social”, afirma Massaud Moisés. O Crime do Padre Amaro, o Primo Basílio, O Mandarim, A Relíquia e os Maias são o que há de melhor nesta fase. O Mandarim, de todos talvez o menos realista, é um volume de fantasias em que Eça de Queiroz pretendeu demonstrar que o dinheiro ganho honestamente, com o suor do trabalho, é o único que pode trazer satisfação e felicidade ao homem. O Crime do Padre Amaro, inspirado em La Faute de L'Abbé Mouret, de Zola, e no Monsieur de Boisdhyver, de Champfleury, é um romance de costumes, romance de “atualidade”, cuja ação decorre em Leiria. Era de Queiroz, com esse romance, pretendeu apontar a corrupção existente no meio eclesiástico da época. Constitui-se O Crime do Padre Amaro num retrato fiel e minucioso da sociedade leiriense, muito influenciada pelos membros do clero, como é comum, aliás, entre a gente dos pequenos aglomerados da província. O enredo de O Primo Basílio situa-se na cidade de Lisboa e é verossímil.
Se em O Crime do Padre Amaro as personagens pecam porque são muito fáceis e reagem sem grande oposição interior (o próprio Amaro não demonstrava esforço pra resistir as tentações), em O Primo Basílio as personagens vivem, são autênticas, Basílio é um conquistador vulgar e a sua prima Luísa, vítima do ambiente social que a retém fechada em casa, alheia a tudo o que acontece no mundo, e vítima ainda da leitura de obras românticas, torna-se adúltera. Eça de Queiroz pretendeu provar que uma educação em bases românticas é falha. O romance A Relíquia pode ser enquadrado como realista devido aos seus propósitos de crítica social. Tentou demonstrar a inutilidade da hipocrisia e fê-lo com tom irônico e caricatural. Finalmente, em Os Maias temos um caso de incesto, o amor físico entre dois irmãos, que se desvenda no final do romance. Eça de Queiroz retrata e critica a alta sociedade lisboeta do último quartel do século XIX. Antônio José Barreiros escreve: “Quis pintar nele a sociedade portuguesa tal qual a fez o Constitucionalismo de 1830, como expressamente disse em carta a Teófilo Braga. Porque teria de abranger todas as infraestruturas dessa sociedade, política e finanças, religião e moral, literatura e jornalismo, festas e jogos e espetáculos, amizades e relações entre famílias, a obra resultou muito complexa.”
A terceira fase limita-se pela publicação de Os Maias e vai até a morte do romancista. Eça de Queiroz, abandonando a sátira aos vícios da sociedade, começa a desenvolver temas de caráter social e nacionalista. Adquire mais interesse pelos problemas intelectuais, estéticos e históricos. Vendo que pouco ou nada adiantava com a sátira ao vício, abandona-a e ergue uma obra de sentido construtivo, contactando com o outro lado do mundo que ainda não estava podre. É uma fase em que atinge a maturidade intelectual. Representam-na, principalmente, três obras: A Ilustre Casa de Ramires, A Correspondência de Fradique Mendes e A Cidade e as Serras. A ação do romance A Ilustre Casa de Ramires decorre entre Douro e Minho e nele Eça de Queiroz realiza, levemente, a decadência de Portugal do século XIX, pondo-o em confronto com a Portugal da Idade Média. Gonçalo Mendes Ramires é a personagem principal. Descende de nobre linhagem, mas vive burguesamente dos seus rendimentos. A correspondência de Fradique Mendes consta duas partes: a primeira em que Eça se preocupa com a criação da personalidade de Fradique Mendes; a outra em que apresenta a correspondência trocada entre o protagonista e conhecidas figuras do tempo. (Oliveira Martins, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro e outros). Embora ainda aqui apareça um pouco da crítica social empreendida nos romances da segunda fase, o autor aproveita-se das cartas para expor suas ideias sobre literatura, filosofia, religião, arte e política. A Cidade e as Serras é considerada a obra-prima desta fase. Publicado em 1901, teve grande parte da sua revisão feita por Ramalho Ortigão. Eça de Queiroz, seu autor, tinha sido surpreendido pela morte. Eça desenvolveu no romance o assunto que já esboçará nos contos Civilização Suave Milagre e Adão e Eva no Paraíso. Em A Cidade e as Serras, Eça de Queiroz defende a tese de que o homem só pode encontrar a verdadeira felicidade longe da civilização, na vida simples do campo, em contato com a natureza.
“Enquanto escritor, pelo poder de transmitir pela palavra a carga de sentimentos e de cores cuja expressão constitui problema para o comum de seus confrades e dos homens não-escritores, ocupa lugar de topo, legando um rol de soluções expressivas de largo e profundo curso no século XX. Por esse lado, Eça mantém-se extraordinariamente vivo e atuante no espírito de grande massa de leitores ainda hoje”, diz Massaud Moisés, em “A Literatura Portuguesa”.
Pesquisa do Professor Carlos Alberto Iannone, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília.

Cronologia

1845 – Aos 25 de novembro nasce em Póvoa de Varzim, José Maria Eça de Queiroz. É batizado em dezembro.
1849 – Casam-se em Viana de Castelo seus pais, José Maria de Almeida Teixeira de Queiroz e Carolina Augusta Pereira de Eça de Queiroz.
1855 – Eça de Queiroz, com 10 anos de idade, é internado no Colégio da Lapa, na cidade do Porto.
1861 – Ingressa na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
1866 – Forma-se advogado. Sai na Gazeta de Portugal, o primeiro folhetim de Eça de Queiroz, Notas Marginais.
1867 – dirige em Évora o jornal da oposição, Distrito de Évora. Em julho regressa a Lisboa e colabora na Gazeta de Portugal. Participa do grupo do Cenáculo.
1869 – Eça de Queiroz parte como o Conde de Resende para o Egito, onde assiste à inauguração do Canal de Suez. Dessa viagem nasceria O Egito, publicado em 1926.
1870 – Publica, em folhetins, no Diário de Notícias, o romance O Mistério da Estrada de Sintra. É nomeado administrador do conselho de Leiria. Classifica-se em 1º lugar num concurso para cônsul de 1ª classe.
1871 – Profere a 4ª conferência do Casino, O Realismo como Nova Expressão de Arte. É exonerado do cargo administrativo de Leiria.
1872 – Vai para Havana como cônsul de 1ª classe nas Antilhas Espanholas.
1873 – Embarca para os Estados Unidos, em missão oficial.
1874 – Transfere-se para o consulado de New Castle, na Inglaterra.
1875 – Saem em folhetins, na Revista Ocidental, os primeiros capítulos da 1ª versão de O Crime do Padre Amaro.
1878 – É transferido para o consulado de Bristol. Sai O Primo Basílio.
1880 – Publica, em folhetins, o romance O Mandarim, no Diário de Portugal.
1885 – Vai a Paris e visita Émile Zola.
1886 – Casa-se com Emília de Castro Pamplona Resende, filha dos Condes de Resende.
1887 – A Relíquia
1888 – toma posse oficial do consulado de Paris. Passa a residir em Neuilly. Publica Os Maias.
1889 – Agrega-se ao grupo dos Vencidos da Vida.
1890 – Uma Campanha Alegre.
1897 – Começa a publicar na Revista Moderna, em Paris, a Ilustre Casa de Ramires.
1900 – Vai para a Suíça, em companhia de Ramalho Ortigão. Regressa a Paris e morre aos 16 de agosto, na sua casa de Neuilly.

Nota da 2ª Edição O Crime do Padre Amaro

O Crime do Padre Amaro recebeu no Brasil e em Portugal alguma atenção da crítica, quando publicado anteriormente ao romance intitulado - O Primo Basílio. E no Brasil e em Portugal escreveu-se (sem todavia se aduzir nenhuma prova efetiva) que O Crime do Padre Amaro era uma imitação do romance do senhor E. Zola – La Faute de L'Abbé Mouret, ou que este livro do autor do Assomoir e de outros magistrais estudos sociais sugerira a ideia, os personagens, a intenção do Crime do Padre Amaro.
Eu tenho algumas razões para crer que isto não é correto. O Crime do Padre Amaro foi escrito em 1871, lido a alguns amigos em 1872, e publicado em 1874. O livro do Senhor Zola, La Faute de L'Abbé Mouret (que é o quinto volume da série Rougon Macquart), foi escrito e publicado em 1875.
Mas (ainda que isto pareça sobrenatural) eu considero esta razão apenas como subalterna e insuficiente. Eu podia, enfim, ter penetrado no cérebro, no pensamento do Senhor Zola, e ter avistado, entre as formas ainda indecisas das suas criações futuras, a figura do Abade Mouret, - exatamente como o venerável Anquises no Vale dos Elísios podia ver, entre as sombras das raças vindouras flutuando na névoa luminosa do Letes, aquele que um dia devia ser Marcelo. Tais coisas são possíveis. Nem o homem prudente as deve considerar mais extraordinárias que o carro de fogo que arrebatou Elias aos céus – e outros prodígios provados.
O que, segundo penso, mostra melhor que a acusação carece de exatidão, é a simples comparação dos dois romances. La Faute de L'Abbé Mouret é, no seu episódio central, o quadro alegórico da iniciação do primeiro homem e da primeira mulher no amor. O Abade Mouret (Sérgio), tendo sido atacado de uma febre cerebral, trazida principalmente pela sua exaltação mística no culto da Virgem, na solidão de um vale abrasado da Provença (primeira parte do livro), é levado para convalescer ao Paradou, antigo parque do século XVII a que o abandono refez uma virgindade selvagem, e que é a representação alegórica do Paraíso. Aí, tendo perdido na febre a consciência de si mesmo a ponto de se esquecer do seu sacerdócio e da existência da aldeia, e a consciência do universo a ponto de ter medo do sol e das árvores do Paradou como de monstros estranhos – era, durante meses, pelas profundidades do bosque inculto, com Albina que é o gênio, a Eva desse lugar de legenda; Albina e Sérgio, seminus como no paraíso, procuram sem cessar, por um instinto que os impede, uma árvore misteriosa, da ramada qual cai a influência afrodisíaca da matéria provocadora; sob este símbolo da Árvore da Ciência se possuem, depois de dias angustiosos em que tenham descobrir, na sua inocência paradisíaca, o meio físico de realizar o amor; depois, numa mútua vergonhosa súbita, notando a sua nudez, cobrem-se de folhagens; e daí os expulsa, os arranca o Padre Arcângias, que é a personificação teocrática do antigo Arcanjo. Na última parte do livro O Abade Mouret recupera a consistência de si mesmo, subtrai-se a influência dissolvente da adoração da Virgem, obtém por um esforço da oração e um privilégio da graça a extinção da sua virilidade, torna-se um asceta sem nada de humano, uma sombra caída aos pés da cruz; e, é sem que lhe mude a cor do rosto que asperge a responsa o esquife de Albina, que se asfixiou no Paradou sob um montão de flores de perfumes fortes.
Os críticos inteligentes que acusaram O Crime do Padre Amaro de ser apenas uma imitação de Faute de L'Abbé Mouret, não tinham infelizmente lido o romance maravilhoso do Senhor Zola, que foi talvez a origem de toda a sua glória. A semelhança casual dos dois títulos induziu-os em erro.
Com conhecimento dos dois livros, só a obtusidade córnea ou má-fé cínica poderia assemelhar esta bela alegoria idílica, a que está misturado o patético drama de uma alma mística, ao Crime do Padre Amaro que, como podem ver neste novo trabalho, é apenas, no fundo, uma intriga de clérigos e de beatas tramada e murmurada a sombra de uma velha Sé de província portuguesa.
Aproveito este momento para agradecer a crítica do Brasil e de Portugal a atenção que ela tem dado aos meus trabalhos.

Bristol, 1 de janeiro de 1880.



Eça de Queiroz