O desabrochar só
crescimento material na China
Os três
séculos em que os Song dominaram a China atestam uma curiosa
anomalia. Essa época foi, por uma lado, extremamente criativa, e a
China avançou então mais do que o resto do mundo em termos de
invenções tecnológicas, produção material, filosofia política,
governo e cultura de elite.
Livros
impressos, pinturas, o sistema de exames para o serviço civil são
exemplos de preeminência da China. Por outro lado, foi justamente
durante esse período da expansão chinesa que invasores tribais,
oriundos da Ásia Interior, começaram gradualmente a assumir o
controle administrativo e militar do Estado e do povo chinês.
Estariam as realizações culturais da China na época dos Song
relacionadas à dominação não-chinesa? Essa é um questão
central, embora complexa.
Em 960,
o comandante da guarda do palácio da última das Cinco Dinastias do
Nore da China foi aclamado por suas tropas com o novo imperador.
Assim levado ao poder, Zhao Kuangyin fundou a dinastia Song. Ele e
seu sucessor, prudentes e hábeis, aposentaram os generais,
substituíram os governadores militares por funcionários civis,
concentraram as tropas de elite no exército palaciano, construíram
uma burocracia composta de diplomados por meio de exames e
centralizaram a receita. O controle dos militares e o estabelecimento
de um novo poder civil foi exemplarmente realizado. O século e meio
durante o qual os Song do Norte ocuparam o poder (960-1126) foi um
dos períodos mais criativo da China, de certo modo semelhante à
Renascença, que começaria na Europa dois séculos mais tarde.
A
avaliação do lugar estratégico ocupado pelo Song na história da
China requer a adoção de diferentes abordagens. A primeira seria
sob o plano do crescimento material demográfico, urbano e referente
à produção, à tecnologia e ao comércio interno e externo.
A
população da China atingiu cerca de sessenta milhões de habitantes
em meados do período Han (por volta de 2 d.C.). Depois de conhecer
um provável declínio na era da desunião, ela aparece ter chegado
de novo entre cinquenta e sessenta milhões de habitantes no ápice
da dinastia Tang, no início dos anos 700. Ela voltou a crescer para
cerca de cem milhões no início da dinastia Song, permanecendo
estável por volta de 120 milhões até o fim do século XII: podemos
dizer que 45 milhões se concentravam ao norte do rio Huai e 75
milhões ao longo do Yangzi e em direção ao sul.
O
crescimento da população acarretou um desenvolvimento da vida
urbana que na capital se tornou espetacular Kaifeng, centro político
e administrativo dos Song do Norte, mantinha uma grande concentração
de funcionários e de pessoal de serviço, tropas e parasitas
atraídos pela corte. Essa cidade tinha apenas quatro quintos da
superfície da capital Tang, Chang'an, mas era três vezes maior do a
Roma antiga. Em 1021, sua população intramuros era de cerca de um
milhão. Em 1100, os registros totalizaram 1,05 milhão de pessoas e,
se adicionarmos o exército, cerca de 1,4 milhão.
Tal
concentração urbana só podia ser alimentada na medida em que
Kaifeng se encontrava próxima à junção do primeiro Grande Canal
com o rio Amarelo, que comandava o transporte fluvial por barcaças
desde o celeiro de grãos do baixo Yangzi.
O
comércio interno e inter-regional chinês era facilitado por
transportes baratos através do Grande Canal, do Yangzi, seus
afluentes e lagos e de outros rio e sistemas de canais. Essas vias
aquáticas estendiam-se por cerca de 48 mil quilômetros, criando a
mais populosa área de comércio do mundo. O comércio exterior
sempre foi uma derivação desse grande comércio interno da China.
A
indústria cresceu em Kaifeng, em primeiro lugar para atender às
necessidades do governo. Por exemplo, o Norte da China tinha então
extensos depósitos de carvão e ferro, que podiam ser transportados
a baixo custo por via aquática para a capital. A exaustão dos
recursos florestais por volta de 1.000 d.C. Obrigou as fundições de
ferro a usarem carvão mineral em vez de carvão vegetal nos altos
fornos de coque. Além disso, o ferro fundido assim produzido
permitiu que os trabalhadores do ferro da dinastia Song
desenvolvessem uma técnica de eliminação do carbono para a
produção do aço. Por volta de 1078, o Norte da China estava
produzindo anualmente mais de 114 mil toneladas de ferro-gusa
(setecentos anos mais tarde, a Inglaterra produzia apenas a metade
dessa quantidade).
Essa
atividade forneceu cotas de malhas e armas feitas de aço à
indústria da guerra. Antes disso, usava-se uma proto artilharia sob
a forma de catapultas para as guerras de sítio, e a pólvora foi
originalmente empregada em lanças incendiárias, granadas e
bombardas. Se os cercos primitivos conseguiam manter-se, era porque
os estoques de suprimentos de uma cidade sitiada lhes permitia, com
frequência, resistir a seus sitiadores, obrigados a pilhar campos
estéreis. AS novas armas dos Song podiam agora demolir muralhas e
portões, explodir minas de pólvora e provocar incêndios no
interior das muralhas.
Infelizmente
para a dinastia dos Song do Norte, essa tecnologia de guerra foi
rapidamente adotada pelos invasores Ruzhen, que estabeleceram sua
dinastia Jin no Norte da China, depois de capturar Kaifeng, em 1126.
Uma nova capital Song foi então criada no Sul, em Hangzhou.
Em seu
apogeu, no início de 1200, a grande capital dos Song do Sul
estendeu-se por mais de 32 quilômetros, ao longo do estuário do rio
Quantang. Ela ia desde os subúrbios do Sul, com mais de quatrocentos
mil habitantes, passando pela cidade imperial murada, com meio milhão
de habitantes, até os subúrbios do Norte, com cerca de duzentas mil
pessoas. Como notou Marco Polo, Hangzhou possuía algumas
características similares às de Veneza. Água corrente oriunda do
grande lago do oeste fluía pela cidade, por uma vintena ou mais de
canais que também serviam para carregar os dejetos em direção ao
leste, para as marés do estuário do rio.
No
interior de suas muralhas, a cidade tinha cerca de dezoito
quilômetros quadrados, cortados ao meio pela larga Via Imperial, que
corria do sul ao norte. Antes da conquista mongol, em 1279, Hangzhou
possuía uma população de mais de um milhão de habitantes (algumas
estimativas chegam a dois milhões e meio), o que a tornava a maior
cidade do mundo. A Veneza de Marco Polo teria talvez cinquenta mil
habitantes: é fácil entender por que a vida urbana da China
fascinou tanto.
Durante
a dinastia Song do Sul, o comércio exterior fornecia a maior parte
da receita do governo – única vez em que isto ocorreu antes do
século XIX. A demanda de artigos de luxo em Hangzhou, especialmente
de especiarias importadas pela Rota das Especiarias – que ia da
Índia Ocidental até a China e que se estendia até a Europa –
está na base da rápida expansão do comércio exterior na época
Song. A demanda era tão elevada que as famosas exportações
chinesas de sedas e porcelanas, assim como de moedas de cobre, não
eram assim como de moedas de cobre, não eram suficientes para
contrabalançá-las. A diáspora islâmica – que chegou a Espanha e
influenciou profundamente a Europa – provocou também, na época
dos Song, uma grande expansão do Comércio marítimo nos portos
chineses de Gunazhou (Cantão), Quanzhou (Zayton), Xiamen (Anoy),
Fuzhou e Hangzhou. Embarcações chinesas desciam pela costa da Ásia
Oriental até as Índias e, dobrando a Índia chegavam até mesmo à
África Oriental, mas o comércio exterior dos Song do Sul
encontrava-se ainda fortemente concentrado nas mãos dos árabes. Os
impostos que recaíam sobre eles permitiam que os Song do Sul se
apoiassem mais no sal e nas taxas comerciais do que no tradicional
esteio da vida imperial, ou seja, os impostos sobre a terra. Um dos
efeitos desse aumento do comércio foi ter revivido o uso do
papel-moeda, inaugurado pelos Tang, que começou com notas de
pagamento do governo para a transferência de fundos, notas
promissórias e outros papéis de poder de negociação limitado,
chegando até a emissão, pelo governo, de papel-moeda em todo o
território nacional. Tal como o carvão, o papel-moeda também
fascinou Marco Polo.
A
tecnologia náutica chinesa era a melhor do mundo nesse período. Os
grandes navios compartimentados da China (com até quatro converses,
quatro ou seis mastros e doze velas), dirigidos por um leme de popa e
pelo uso de mapas e da bússola, podiam embarcar até quinhentos
homens. Essa tecnologia era bem mais avançado do que a que estava em
vigor na Ásia Ocidental e na Europa, onde as galeras mediterrâneas
ainda utilizavam força muscular e um ineficiente sistema de
população a remo.
Essas
facetas são penas alguns exemplos das realizações dos Song.
Qualquer expansionista dotado de uma mente moderna, ao voltar o olhar
para todo esse crescimento e criatividade, pode imaginar como a China
dos Song, poderia ter dominado o mundo marítimo e alterado o curso
da história, invadindo e colonizado a Europa a partir da Ásia.
Aparentemente, a única coisa que faltava era motivação e
incentivo. É evidente que isso é apenas uma fantasia pouco
convencional, mas ela permite que nos perguntemos sobre o que impediu
um maior desenvolvimento da “revolução econômica medieval” da
China, nas palavras de Mark Elvin (1973). É fácil apontar os
invasores bárbaros e culpar a conquista mongol por ter bombardeado o
navio do Estado Song em sua rota tão promissora em direção aos
tempos modernos. Essa interpretação apresenta a fascinação
própria a toda teoria centrada em uma causa única, porém, como
veremos a seguir, elas foram muitas.
As
seções seguintes mostrarão como o sistema de exames tornou-se uma
fonte importante de fornecimento de burocratas para o serviço civil:
como a menor possibilidade de obter um cargo no serviço civil
encorajou a classe dos eruditos (shi) a retornar ao seu
envolvimento nos assuntos locais como líderes da aristocracia rural;
e como a filosofia neoconfunciana ajudou essa mudança de foco.
Fonte:
China – Uma Nova História, páginas 95 a 100.