domingo, 27 de abril de 2025

Solidariedade que floresceu da tragédia da enchente nos campos do Estado

Evento climático de maio do ano passado causou perdas incontáveis aos agricultores e pecuaristas no RS, mas também gerou uma rede de apoio

Paulo Ricardo Castoldi, em Encantado, no Vale do Taquari, sofreu prejuízos severos, forçando a paralisação completa das atividades do aviário na enchente histórica de maio de 2024 | Foto: Paulo Ricardo Castoldi / Arquivo Pessoal / CP

 

Um cenário jamais visto no Rio Grande do Sul está prestes a completar um ano. A catástrofe climática não escolheu região para inundar com o excesso de chuva, levando ao caos boa parte de Porto Alegre e muitas áreas do interior do Estado, inclusive aquelas dedicadas à agropecuária.

Em meio à destruição sem precedente histórico, a solidariedade também não encontrou limites e um movimento espontâneo emergiu para levar doações e esperança para produtores rurais isolados.

Com sede situada na zona Rural de Morro do Ferro, distrito de Oliveira, em Minas Gerais, o sócio-proprietário do Laticínios Bom Destino, João Batista de Sousa, foi um dos doadores de recursos para criadores de búfalos atingidos pela tragédia no Rio Grande do Sul.

“As imagens eram todas muito tristes, foi muito assustador”, recordou.

A empresa se uniu a outros 94 produtores para ajudar pessoas que estavam passando dificuldades. “Foi uma comoção muito grande e do valor reunido 60% foi providenciado pelo laticínio e o restante realizando um movimento para arrecadação”, explicou.

O vice-presidente Financeiro da Associação dos Criadores de Gado Holandês do Rio Grande do Sul (Gadolando), Nacir Cristiano Penz, produtor de leite no município de Humaitá, recorda que estava em Santa Catarina quando as primeiras informações da tragédia começaram a ser divulgadas.

“Eu voltava de viagem e comecei a imaginar algo similar à enchente de setembro (de 2023, no Vale do Taquari) e pensando que só faltava esse pessoal sofrer de novo, mas logo começaram a chegar relatos de que a situação tinha sido mais ampla e em mais vales”, disse.

Assim que os fatos foram sendo compreendidos mais amplamente, integrantes da diretoria da entidade, técnicos e colaboradores começaram a se mobilizar para oferecer socorro aos atingidos já no primeiro final de semana daquele mês de maio.

Dos 497 municípios do Estado, 431 sofreram com as inundações. O desafio era do tamanho da catástrofe.

“Algumas pessoas de outros estados começaram a entrar em contato querendo ajudar, mas sem saber como enviar os caminhões com as doações por causa das estradas interditadas”, contou Penz.

Ele recorda o auxílio enviado por produtores de leite em Santa Catarina e Paraná e, inclusive, de algumas regiões menos atingidas do próprio Rio Grande do Sul.

“Foi um trabalho bem minucioso. Criamos alguns pontos de distribuição das cargas em Santa Cruz, Lajeado, Teutônia e Estrela. Ajudamos a organizar o recebimento, direta e indiretamente, de aproximadamente 370 cargas para 60 municípios”, afirmou.

Segundo o dirigente, o trabalho de logística teve o apoio da Emater/RS-Ascar, colaboradores de empresas privadas e profissionais do setor agropecuário.

Nacir Penz sublinha que muitos donativos foram entregues a não-sócios da entidade, pois o critério para recebimento era a necessidade. “O caráter era atender os atingidos e o nosso papel foi de atender o pedido dos doadores”, detalhou, acrescentando que apenas 2% a 3% dos produtores rurais que receberam ajuda eram associados da Gadolando.

Penz lembrou que as situações que trouxeram prejuízos imediatos aos produtores rurais podiam ser classificadas em diferentes graus de severidade no Estado: aqueles que sofreram com as enxurradas que “lavaram” tudo, os que foram impactados pelos alagamentos uma vez que suas propriedades estavam localizadas em locais baixos e os que ficaram isolados em virtude de quedas de barreiras.

“O leite, que é perecível, por exemplo, não podia ser escoado e não chegava alimento para os animais. Mas isso não afetou a vontade das pessoas ajudarem e fazerem suas doações. Sequer consideramos que estávamos tendo problemas em níveis de comparação”, exclamou.

Questionado sobre o sentimento atual, passado um ano da tragédia, no que tange a agropecuária, o dirigente salientou que não tem como os produtores se prepararem a curto prazo para situação semelhante à enchente de maio de 2024.

“O que pode e deve ser feito, e essa discussão não evoluiu, é algumas propriedades rurais se reorganizarem para pontos mais protegidos, menos suscetíveis a alagamentos e enxurradas. Uma outra alternativa seria rever algumas formas de produção para que não sejam também tão suscetíveis às intempéries (climáticas). Tudo isso passa por investimentos. Mas desde outubro os recursos equalizados do governo não existem mais”, alertou.

Para o membro da direção da Gadolando, as ajudas anunciadas não acompanharam as necessidades reais dos produtores. “Eu continuo muito em contato com pessoas atingidas, pois todos os meses vou nas regiões (atingidas) e não encontrei alguém contemplado com esses programas. Talvez por azar não tenha encontrado. É desolador porque é muito grave termos que voltar a pagar, daqui a pouco, por R$ 8,00 o litro do leite ou uma fortuna em um quilo de frango”, desabafou.

Penz considera que as decisões tomadas até aqui não resolvem o problema e, combinadas com os juros altos, incentivam a evasão do campo para a cidade.

“O ano que o Rio Grande do Sul mais deveria ter recursos é o que menos temos para a reestruturação e investimentos”, analisou. Ele finaliza destacando que efeitos secundários da enchente histórica estão latentes e prosseguem, exemplificando que laticínios encerraram suas atividades, criadores deixaram de receber pagamentos e produtores não tiveram condições de plantar.

Donativos enviados para a Gadolando, provenientes de pecuaristas da bovinocultura de leite de Santa Catarina e Paraná,  para criadores do Rio Grande do Sul na enchente de maio de 2024. Donativos enviados para a Gadolando, provenientes de pecuaristas da bovinocultura de leite de Santa Catarina e Paraná, para criadores do Rio Grande do Sul na enchente de maio de 2024. | Foto: Gadolando / Divulgação / CP

Quando o rio vira ameaça e a roça fica na memória

Família Castoldi, de Encantado, tem propriedade a 700 metros do Rio Taquari e insiste em plantar onde o clima passou a castigar

Paulo Ricardo Castoldi, em Encantado, no Vale do Taquari, sofreu prejuízos severos, forçando a paralisação completa das atividades do aviário na enchente histórica de maio de 2024 Paulo Ricardo Castoldi, em Encantado, no Vale do Taquari, sofreu prejuízos severos, forçando a paralisação completa das atividades do aviário na enchente histórica de maio de 2024 | Foto: Paulo Ricardo Castoldi / Arquivo Pessoal / CP

A distância entre a propriedade de Paulo Ricardo Castoldi, localizada em Encantado, e o Rio Taquari é de 700 metros. Gerações da família residem no local há 100 anos, mas a cronologia de prejuízos severos em virtude de extremos climáticos começou em 2023, especificamente em setembro e novembro daquele ano.

Em maio do ano passado, pela terceira vez, com pouca diferença de meses, a família Castoldi se viu obrigada a sair de casa. Paulo Ricardo conta que o encontro das águas do Rio Taquari com o Arroio Jacaré, que fica a três quilômetros da propriedade, causaram a situação extraordinária em maio do ano passado.

“Pela primeira vez, a água invadiu e cobriu a casa. Nunca pensei”, desabafou o agricultor, que perdeu a lavoura de milho, os peixes, as abelhas e o aviário com 20 mil frangos.

O produtor recorda que os filhos foram resgatados pelos bombeiros e que ele refugiou-se nas instalações de tratamento da Corsan, em um terreno mais alto, mas com localização que lhe permitia avistar sem dificuldades a sua propriedade. Ele conta que o local havia servido para abrigo nas enchentes de 2023 que avançaram sobre a propriedade, sem a água atingir a casa da família.

“Na primeira vez, eu fiquei sem água e sem comida por dias. Foi feio. Dessa vez, levamos comida”, relembra. Castoldi só conseguiu retornar para casa após quatro dias. Até o momento não teve condições de fazer os consertos necessários.

“Vou para onde? Tenho 58 anos. Tenho que ficar aqui e enfrentar a vida. Estou ensinando aos meus filhos também. Não é o rio (Taquari) que é o culpado”, afirma.

Em virtude de meio metro de lodo que restou sobre a terra da propriedade depois da enchente de maio, o agricultor teve que fazer o plantio do milho em período mais tardio.

“Na roça são quatro anos que não colhemos nada. Esse ano veio a estiagem”, desabafou. Segundo ele, as atividades do aviário estão sendo retomadas após o auxílio do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar-RS) para colocar a estrutura em funcionamento de forma segura.

“Ficamos 10 meses parados”, detalhou.

O coordenador de Desenvolvimento e Inovação do Senar-RS, Henrique Kuhn Massot Padilha, relata que a instituição estruturou duas frentes de ação por conta da catástrofe climática de maio de 2024. A primeira foi o Programa Agro Solidário, come o objetivo de suprir necessidades básicas imediatas das pessoas atingidas pela tragédia, fornecendo colchões, travesseiros, jogos de cama, cobertores, fogões, geladeiras, material de higiene pessoal e de limpeza doméstica, além de caixas d'água.

Lançado oficialmente no dia 17 do mesmo mês da tragédia climática, seu investimento inicial foi de R$ 4 milhões. Um projeto complementar foi assinado dias depois para a aquisição de cestas básicas, adicionando mais R$ 1 milhão.

A segunda iniciativa do Senar foi o SuperAção Agro RS, com foco na recuperação técnica das propriedades rurais. Tinha em seu escopo, por exemplo, atender demandas envolvendo alimentação animal e operação de máquinas para auxiliar na limpeza de entulhos e na reestruturação e reorganização de muitas das propriedades atingidas.

Conforme Padilha, ambas as ações beneficiaram mais de 3,5 mil famílias rurais em 111 municípios do Rio Grande do Sul.

“Eu acredito que o que a gente viveu realmente foi algo sem precedentes, foi algo muito impactante no Rio Grande do Sul, do ponto de vista climático. Fato é que muitos produtores estão com dívidas grandes a serem honradas e não é à toa que também o Sistema Farsul está trabalhando a questão da renegociação das dívidas”, afirmou.

O Senar-RS também implementou ações voltadas para a recuperação da capacidade produtiva do solo de forma sustentável, em parceria com o Laboratório de Química e Fertilidade do Solo da Universidade de Caxias do Sul (UCS), que fez a coleta e a análise de solo nas propriedades de 1,8 mil produtores afetados pelas enchentes. 

Correio do Povo

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