Um ano após as enchentes no RS, mais de 84% retomaram o ritmo, mas até 16% ainda registram nível de atividade baixo
Um ano após as enchentes históricas que devastaram o Rio Grande do Sul entre abril e maio de 2024, a maioria das empresas do Estado voltou a operar normalmente. De acordo com o 14º Boletim Econômico-Tributário da Receita Estadual, 86% dos estabelecimentos do regime geral e 84% dos do Simples Nacional já estão com atividade superior a 70% do nível anterior à crise. Esse cenário revela uma capacidade de resposta importante frente à gravidade do evento, conforme a coordenadora da Central de Inteligência Econômico-tributária (Ciet), Kátia Gisele Souza. “Apesar disso, vale destacar que as projeções econômicas feitas no final de 2023 apontavam para um crescimento mais expressivo do que o que efetivamente se concretizou após as enchentes. Ou seja, a recuperação foi rápida, mas não suficiente para recuperar o ritmo originalmente esperado”, destaca.
O boletim foi elaborado com base na análise de notas fiscais eletrônicas emitidas entre março de 2024 e março de 2025. Reflete tanto os efeitos diretos das enchentes quanto outras condições econômicas e sazonais.
Entre os dados mais surpreendentes, está que 81% dos estabelecimentos do regime geral localizados em áreas inundadas já operam dentro da normalidade. “Um índice muito próximo ao de regiões não afetadas diretamente, o que não era amplamente esperado. Por outro lado, 14% apresentaram nível de atividade baixo - ou seja, volume de vendas inferior a 30% da média normal registrada antes das enchentes, o que merece atenção e monitoramento constante”, diz. Entre as empresas do Simples Nacional — que têm cobrança tributária simplificada e, em geral, são pequenas ou microempresas —, 16% dos 5.106 estabelecimentos localizados em áreas inundadas operaram com nível baixo, o que indica, segundo a coordenadora da Ciet, que a retomada segue em andamento, mas ainda “inspira atenção para que a recuperação seja plena”.
O fato de que regiões inundadas apresentaram percentuais semelhantes de normalidade em relação ao restante do Estado revela, na avaliação de Souza, que os impactos das enchentes ultrapassaram os limites das áreas diretamente alagadas.
“Regiões não atingidas fisicamente também enfrentaram consequências, como interrupções logísticas, queda na demanda e desorganização nas cadeias de suprimentos. Assim, os percentuais semelhantes de normalidade podem ‘mascarar’ desigualdades mais profundas: enquanto algumas regiões lutaram para reconstruir sua infraestrutura, outras sofreram impactos indiretos, gerando uma aparente uniformidade nos dados que, na prática, esconde diferentes graus de prejuízo e recuperação”, salienta Kátia Gisele Souza.
Sinais dos impactos da catástrofe
O desempenho da economia gaúcha ainda mostra sinais dos impactos da catástrofe e de fatores econômicos gerais. Em março de 2025, o volume de vendas das empresas do Estado mostrou uma queda de 0,8% em relação ao mesmo mês do ano anterior. Setores como papel (-12,2%), metalmecânico (-8,5%) e móveis (-7,6%) foram os mais afetados.
Por outro lado, alguns segmentos vêm mostrando crescimento, como alimentos (+9,7%), eletroeletrônicos (+9,0%) e insumos agropecuários (+25,5%). No recorte regional, enquanto regiões fortemente atingidas, como o Vale do Caí (-19,9%) e o Vale do Jaguari (-18,5%), registraram retração no volume de vendas, outras apresentaram expressiva recuperação, como Celeiro (+45,9%) e Jacuí Centro (+44,5%).
Alerta para desaceleração
O chefe do setor econômico da Fiergs, Giovani Baggio, ressalta que a recuperação da economia e da indústria gaúcha após as enchentes foi mais rápida do que o inicialmente previsto. Segundo ele, apesar da gravidade dos estragos, os esforços e recursos mobilizados logo após o desastre aceleraram o retorno da atividade.
“Tivemos muitos recursos e esforços logo depois dos problemas, o que fez a atividade voltar”, explica Baggio. Ele salienta, no entanto, que a volta se deu principalmente em termos de fluxo econômico, já que o estoque de capital — tanto público quanto privado — ainda não foi totalmente recomposto. “Ainda temos a infraestrutura e estradas em situação precária, e muitas empresas ainda não estão operando a pleno”, pontua.
O movimento de reconstrução, conforme Baggio, impulsionou principalmente setores como o de materiais de construção, móveis, eletrônicos e supermercados. “Tudo isso foi muito demandado e ajudou na recuperação da atividade e do próprio comércio varejista, principalmente na área de bens duráveis”, afirma.
Ao comentar o desempenho do PIB do Rio Grande do Sul, que cresceu 4,9% em 2024, Baggio lembra que boa parte foi puxada pelo agronegócio, que, na época da enchente, já havia concluído a colheita da principal safra de verão.
Apesar da recuperação observada em 2024, Baggio salienta que os números mais recentes indicam uma desaceleração. No auge da crise, apenas cerca de 30% das empresas operavam em ritmo normal.
“O último dado que tínhamos em dezembro era de 91%. Ou seja, melhorou muito. No início de abril (de 2025), esse número caiu para 86%, mostrando uma arrefecida, não apenas nas áreas inundadas, mas no Estado como um todo. Nas áreas inundadas, temos 14% das empresas ainda operando abaixo da normalidade, emitindo notas fiscais em número menor. É um percentual considerável", avalia o economista-chefe da Fiergs.
Alguns setores, como o de máquinas agrícolas, ainda não conseguiram reverter as perdas. Por outro lado, segmentos ligados ao agronegócio mostram dados positivos. “A Argentina também está demandando mais. Insumos agropecuários apresentaram alta nos dados de março e ao longo do tempo, muito por conta da enchente. A enxurrada tirou muitos nutrientes do solo, obrigando os produtores a comprar mais fertilizantes”, esclarece.
O segmento de móveis, que teve uma forte demanda logo após a enchente já sente dificuldades. “No início, as famílias haviam demandado muitos móveis. Em novembro e dezembro os resultados já são bem menores”, diz.
Persistência para continuar
A volta ao ritmo, contudo, tem sido aos poucos para muitos empresários, como Daniele Flores de Oliveira, que comanda junto com a família uma fábrica de marcenaria especializada em materiais para festas e decorações em Canoas, uma das cidades mais atingidas pela enchente, essa realidade um pouco diferente. “Na fábrica, a água ultrapassou os quatro metros de altura. Perdemos todo o maquinário, estoque, suprimentos e veículos. Também tivemos a parte elétrica e os painéis de energia solar comprometidos”, contou.
Após 28 dias debaixo d'água, o trabalho de recuperação começou. “Em agosto, já havíamos retomado a produção em 40%. Nossa loja, que fica no mesmo bairro, também foi atingida e nela a água passou do teto. Perdemos absolutamente tudo”, relatou.
A empresa atualmente opera com cerca de 80% da capacidade anterior. “Hoje ainda não estamos no mesmo patamar que estávamos em maio de 2024, mas seguimos em frente. Desistir nunca foi uma opção”, afirmou Daniele. “Quando olhamos para trás e vemos que já se passou quase um ano, temos a certeza de que estamos no caminho certo. Foram tempos difíceis que jamais esqueceremos, mas que nos fizeram crescer muito também.”
A empresa de Sérgio Augusto Scabo, localizada na rua Frederico Mentz, em Porto Alegre, foi severamente atingida, ficando quase 30 dias inacessível por conta da água. “Nesse período, ela ficou com dois metros e dez de água e perdemos absolutamente tudo: matéria-prima, estoque de produtos prontos, máquinas. Não sobrou uma", relatou.
A retomada das atividades foi difícil e incerta. "Depois de quase seis meses tentando retomar e arrumar as coisas, a gente chegou a pensar que iria fechar. Mas fomos voltando aos poucos e hoje a empresa está trabalhando", contou. No entanto, o volume de vendas ainda é bem inferior ao período anterior à tragédia. "Vendemos 50% do que vendíamos. Não voltamos ao ritmo normal. Estamos atendendo, mas muitos clientes nos abandonaram e colocaram outros fornecedores no nosso lugar, inclusive de outros estados", lamentou.
Antes da enchente, a empresa de porte médio contava com 24 funcionários. Atualmente, o quadro foi reduzido para 10, e a tendência é diminuir ainda mais. "Agora mais um sairá e eu não vou colocar outro no lugar", disse Sérgio. O impacto financeiro também foi expressivo. "Nossa empresa faturava 18 milhões por ano, mas este ano deve ser metade ou menos", estimou.
Apesar de todas as dificuldades, a empresa do ramo alimentício que foi pioneira na produção de batata palha se prepara para completar 40 anos de atividade em junho de 2025.
A coordenadora da Ciet observa que um ano depois da tragédia, é possível notar a força da rede econômica local e a capacidade de superação frente à crise. Contudo, para ela, é fundamental que o Estado fique atento e monitore a recuperação das empresas que ainda não voltaram a operar normalmente, de maneira que as políticas públicas de recuperação econômica também atinjam esses negócios.
Correio do Povo
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