Total de profissionais deveria ser de 331, segundo resolução do Conselho Nacional de Nutrição; sem refeitório ou cozinha apropriada, escola da capital não consegue fornecer refeições aos cerca de mil estudantes
Prestes a completar 70 anos, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) enfrenta problemas em sua execução no Rio Grande do Sul. A falta de estrutura adequada nas escolas e o déficit no quadro de nutricionistas preocupam gestores e estudantes.
Atualmente, a rede estadual de ensino conta com três nutricionistas – 0,9% do total necessário para atender adequadamente às 2,3 mil escolas públicas estaduais. Segundo recente resolução do Conselho Federal de Nutrição (CFN), o número de profissionais, considerando o total de escolas e de Coordenadorias Regionais de Educação (CREs, vinculadas à Secretaria da Educação do RS), deveria ser 331 – montante que o governo estadual terá de alcançar em até cinco anos. Dos três nutricionistas atualmente empregados na rede, apenas um é concursado, tem vínculo com um município e foi cedido à administração estadual. Os outros dois ocupam cargos comissionados, também chamados de “cargos de confiança”.
No escopo do programa federal, os nutricionistas são responsáveis, principalmente, por elaborar os cardápios das escolas – com base nas recomendações do Guia Alimentar para a População Brasileira do Ministério da Saúde e atendendo às particularidades de cada região e comunidade escolar – e promover a educação nutricional dos estudantes junto à equipe pedagógica das instituições. “Porém, com uma equipe tão enxuta, não há como executar plenamente as determinações do Pnae e garantir alimentação saudável e adequada para os alunos”, explica Ana Luiza Scarparo, conselheira do CFN. Berenice da Costa, presidente do Conselho Estadual de Alimentação Escolar do Rio Grande do Sul, corrobora a opinião de Ana Luiza, e considera que o número reduzido de nutricionistas é um dos principais problemas do Pnae no estado. Em verdade, o cenário não se limita ao Rio Grande do Sul: o déficit no quadro de nutricionistas do Pnae também é observado em âmbito nacional. Em todo o país, a rede tem, atualmente, 3.626 profissionais, cerca de 60% do total determinado.
Além dos nutricionistas, os técnicos em nutrição e dietética também participam da execução do Pnae. São os encarregados, entre outras incumbências, pelo treinamento das equipes de cozinha e supervisão de compra, armazenamento e preparo dos alimentos nas escolas. Hoje, 22 técnicos compõem a rede estadual de ensino. Segundo Ana Luiza, porque a profissão foi recentemente regulamentada, em julho de 2024, ainda não há parâmetros para definir uma quantidade adequada de técnicos para cada rede estadual do país. De todo modo, a atuação desses profissionais depende do acompanhamento de nutricionistas que, em número de três na Secretaria da Educação do RS (Seduc), não são suficientes para a demanda de serviço.
Sem feijão e arroz
No Colégio Estadual Protásio Alves, em Porto Alegre, a ausência de refeitório e a impossibilidade de preparar refeições completas na cozinha impede que os 1.198 estudantes tenham almoço ou jantar no local. Com isso, as cinco funcionárias da cozinha ocupam-se unicamente em entregar aos estudantes o chamado “lanche alternativo”, composto de combinações como maçã e iogurte ou biscoitos e bananas.
Em razão da situação provisória, o colégio precisa elaborar licitações anuais para a compra dos alimentos, o que torna o processo mais caro e demorado, de acordo com a diretora Mariett Luiza Cabral. Quando a cozinha estiver regularizada, ela diz que a instituição poderá adquirir os insumos de forma autônoma, por meio de um cartão entregue a cada escola pela Seduc.
“É assim desde que cheguei aqui, há 13 anos”, relata a diretora. “Galinha, carne e arroz com feijão alimentam mais. Só lanche não sustenta os alunos. Eles são adolescentes, têm fome. É o refeitório a solução”, assinala. A cozinha do colégio não se enquadra às regras de segurança requeridas pela Secretaria da Educação, como as que dizem respeito ao uso do fogão. Por isso, apesar de estar equipado com novos utensílios, o espaço não pode ser totalmente utilizado.
Problemas semelhantes ao do Protásio Alves são comuns na rede estadual de ensino. Segundo o Observatório da Educação Pública do Rio Grande do Sul, das 483 escolas monitoradas pela Comissão de Educação da Assembleia Legislativa, 40,8% apresentaram demanda por reforma ou construção de cozinhas ou refeitórios.
No caso do Colégio Protásio Alves, o término da reforma de um espaço, externo ao prédio principal, é aguardado há cinco anos. No local será implementada uma nova cozinha e um refeitório. A diretora revela que parte da obra já concluída precisou ser recuperada após as enchentes de maio de 2024, que inundaram, em aproximadamente um metro, o pátio e as salas térreas do prédio.
As refeições no Colégio Protásio Alves, segundo a diretora Mariett Cabral, melhorariam a saúde nutricional dos estudantes, “evitando que um almoço ou jantar fossem substituídos por miojo ou salgadinho – o que a gente mais vê por aqui”. Além disso, a medida impactaria a situação de insegurança alimentar por que passam muitos dos alunos.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), uma família está em situação de insegurança alimentar quando tem acesso irregular e restrito a alimentos de qualidade e em quantidade insuficiente ou quando a obtenção desses insumos compromete outras despesas essenciais. No Rio Grande do Sul, 839 mil famílias vivem em situação de insegurança alimentar, o que equivale a 18,7% dos lares do Estado, com base em dados de 2024 do IBGE.
“Quando o final do ano se aproxima, vários alunos param de aparecer nas aulas, porque encontraram trabalhos temporários para ajudar a família ou porque não têm dinheiro para as passagens. ‘Ah, professora, eu não vou vir, porque se eu vier é muita passagem e depois a gente não tem dinheiro para comer em casa’. Às vezes é o almoço ou a passagem”, declara a diretora. “Se eles pudessem ter uma refeição aqui, muitos não abandonariam as aulas.”
O que é o Pnae
- O Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) é responsável pela promoção da alimentação escolar e educação alimentar e nutricional nas escolas de todo o país.
- O programa é gerenciado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), autarquia vinculada ao Ministério da Educação (MEC). O FNDE repassa, em até dez parcelas anuais, recursos aos estados e municípios, que podem, ou não, complementar o montante.
- Os valores do Pnae são calculados a partir do número de estudantes e dias letivos, variando de acordo com a etapa e a modalidade de ensino.
- Desde 2009, 30% do valor repassado pelo Pnae aos entes federativos deve ser aplicado na compra direta de produtos da agricultura familiar local.
- Por etapa e modalidade, o valor/aluno/dia recebido é: Creche – R$ 1,37; Pré-Escola – R$ 0,72; Escolas indígenas e quilombolas – R$ 0,86; ensinos Fundamental e Médio – R$ 0,50; Educação de Jovens e Adultos (EJA) – R$ 0,41; Ensino Integral – R$ 1,37; Programa de Fomento às Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral – R$ 2,56; e estudantes que frequentam Atendimento Educacional Especializado no contraturno – R$ 0,68.
- Os cardápios das instituições de ensino no país são elaborados anualmente por nutricionistas. Uma resolução de 2020 do FNDE estabelece que 75% dos recursos destinados pelo Pnae devem ser aplicados na compra de alimentos in natura. Alimentos processados e ultraprocessados não podem corresponder a mais de 20% do orçamento. Com isso, o MEC busca promover a saúde nutricional dos estudantes e combater os crescentes índices de sobrepeso e obesidade.
Orçamento defasado
Entre os desafios para a implementação do Pnae, um dos mais discutidos é o orçamentário. O Observatório da Alimentação Escolar (OAE) indica que para manter o poder de compra do início de 2023, quando do último reajuste, o orçamento do programa para 2025 precisaria ter um acréscimo mínimo de R$ 300 milhões. Como o Congresso Nacional não incluiu o Pnae na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) deste ano, o programa nacional não contará com uma atualização, permanecendo com o montante anual de R$ 5,5 bilhões.
Entidades como a OAE defendem o reajuste automático dos valores do Pnae baseado na inflação de alimentos medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). A proposição, tema de um projeto de lei em tramitação no Senado, poderia sanar o problema financeiro do programa que, apesar de ter orçamento 39% maior comparado a 2010, perdeu 42% do poder de compra desde então.
Correio do Povo
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