Projeto audiovisual realizado pelo Vakinha e pelo estúdio Camba Filmes vai percorrer circuito de festivais nacionais
A tarde deste domingo foi marcada pela exibição de duas sessões do documentário “800 milímetros: histórias que resistiram à chuva” na Orla do Gasômetro, em Porto Alegre. O filme, exibido em um telão para as pessoas que passeavam no local, traz imagens de resgates durante as enchentes de maio e aborda as histórias de gaúchos que tiveram as casas alagadas. Os organizadores do filme e alguns dos personagens entrevistados no documentário também estiveram presentes durante a mostra na Orla do Guaíba.
A produção audiovisual é uma iniciativa do Vakinha em parceria com a produtora de vídeo Camba Filmes. O projeto Vakinha, plataforma online de doações, esteve engajado na arrecadação e distribuição de mantimentos e materiais de primeira necessidade pelo estado durante a catástrofe climática de maio. Segundo o sócio fundador da plataforma, Luiz Felipe Gheller, as imagens começaram a ser documentadas no dia 9 de maio de 2024.
“A ideia inicial era fazer uma prestação de contas das doações que estávamos entregando. Chamamos uma equipe de resgate de São Paulo e mandamos a equipe da produtora Camba Filmes a campo para fazer vídeo. Durante o processo vimos que dava um documentário. Pensamos que essa história acabaria se perdendo. Para aquelas pessoas, estava tudo tão corrido que elas não tinham noção de que alguém estava olhando para elas. Deixar isso registrado era importante não só para quem passou por isso, mas para quem não é daqui poder entender a dimensão do que se passou aqui no estado”, conta Gheller.
Segundo o diretor do documentário e proprietário da Camba Filmes, Thiago Lázeri, a intenção é percorrer o circuito de festivais nacionais, mas o filme também será disponibilizado nas plataformas digitais durante o primeiro semestre de 2025. Segundo ele, foram gravados 35 depoimentos durante as ações de resgate e distribuição de mantimentos, mas apenas 10 dessas histórias entraram no filme.
“São histórias que simbolizam várias outras, acho que conseguimos um recorte bem amplo e diverso do que aconteceu aqui no estado”, explicou Lázeri. Segundo o diretor da produção, foram 2 meses e meio de captação, 2 meses de montagem e 2 meses de pós-produção. “Tempo recorde de produção de filmes no Brasil”, comenta Lázeri.
“No meio do processo vi que muitos personagens estavam me convidando para entrar dentro da casa deles para compartilhar o que tinha acontecido ali, como se precisassem que uma câmera mostrasse para que a gente acreditasse junto com eles. Isso foi se repetindo em cada lugar e aos poucos fui vendo e disse para o pessoal do Vakinha: ‘Olha, isso dá um filme’”, conta Lázeri.
“Nesse filme foi muito importante o trabalho de escuta. Tanto quanto alimentos e coisas básicas que as pessoas estavam precisando, também elas estavam precisando que alguém abrisse espaço de escuta. Gravamos em locais de cenário de guerra, tínhamos que lidar com uma estranheza nossa e ao mesmo tempo tínhamos que ser objetivos. No filme fazemos poucas perguntas, fizemos uma escuta aberta do que eles queriam mostrar. Sempre os personagens que nos convidam para entrar dentro das casas, a gente nunca pede para entrar. Quando voltava para casa estava sempre num estado meio pós-traumático, mas tínhamos convicção que o processo estava nos dando algo forte” — Thiago Lázeri.
Moradores retratados no documentário assistem à exibição
Kleber, 42 anos, é morador e líder comunitário na Vila dos Pescadores, bairro em que a família vive há quatro gerações. Ele teve a casa alagada até o joelho e viu os vizinhos perderem tudo na enchente. “Nunca tínhamos visto isso, nunca se ouvia. A enchente de setembro assustou muita gente, mas foi uma quantia de 45 a 50 residências. Agora em maio atingiu 90% da comunidade", ressalta Kleber.
O morador da Zona Sul de Porto Alegre relembra o cenário de desamparo e confusão emocional que a população da Vila dos Pescadores viveu durante o período das chuvas. Lembra também da rede de solidariedade que se criou em meio às perdas. “Eram mais de 200 pessoas ajudando, levando marmita e cuidando um do outro. Fizemos um acordo com uma escola, era uma cozinha da prefeitura, as doações de cestas básicas levamos para eles e eles faziam as marmitas para nós por 25 dias. As doações não foram só para quem perdeu a casa, mas porque o pessoal ficou desempregado, Porto Alegre parou”, relata o morador.
“Depois que a água começou a baixar, teve um segundo inferno, por assim dizer, quando tu volta para a tua casa e tem gente que não tem nem mais as paredes, a cama tá na cozinha, o fogão está no lugar da cama”, conta o morador. Kleber também agradece as doações do Vakinha, que fez chegar materiais de limpeza e lava-jatos até o bairro.
“Quando chove agora ou tem um vento, pessoal já pensa que o rio vai subir e vai acontecer tudo de novo, até hoje”, comenta Kleber.
Lucilene Bonetti é outra moradora que aparece no documentário. Ela é de Muçum, uma das cidades mais destruídas pela enchente. Ela, agente comunitária de saúde, e o marido, ferreiro, perderam tudo na cheia do Rio Taquari por duas vezes, em setembro de 2023 e, novamente, em maio de 2024.
“Perdi duas casas, um carro e uma moto, com tudo que tinha dentro. Meu marido perdeu a garagem com ferramentas de trabalho”, conta Bonetti, que estava morando em uma casa de aluguel social na época da enchente de maio, após ter perdido sua residência seis meses atrás.
Ela conta que durante a cheia de maio, não estava em casa, pois tinha ido a São Borja visitar o pai. De volta após dois dias fora, não conseguiu mais entrar no município. “No dia 1º de maio, dia do trabalho, o Rio Taquari realmente começou a subir. Só que quando chegamos de volta não tinha como passar”.
Apenas depois de passar seis dias em um abrigo, Bonetti conseguiu acessar novamente a casa. “Os móveis que tínhamos ganhado de uma empresa, de cozinha e banheiro, pegou água e inchou”, conta. Ao assistir o documentário “800 milímetros: histórias que resistiram à chuva”, Lucilene fica imediatamente emocionada.
“Emocionante. Quando estou dando uma entrevista estou sabendo o que estou falando, mas não estou assistindo a mim mesma falando. Então depois que eu falei tudo que eu estava pensando, mostrei para ele, no momento que eu vi o documentário lá no Praia de Belas, na pré-estreia, eu chorei muito. E aqui, conversando com uma menina, que a gente deduziu que somos sobreviventes, novamente a emoção veio à tona” — Lucilene Bonetti.
Correio do Povo
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