domingo, 15 de setembro de 2024

Fim do Esqueletão: de centro comercial a ameaça de desabamento no centro de Porto Alegre

 Prédio de 1950 abrigou por décadas a Galeria XV de Novembro e foi morada para famílias

Prédio de 1950 abrigou por décadas a Galeria XV de Novembro e foi morada para famílias 

O Esqueletão tem 19 andares e pode ser visto de diversos pontos da cidade. Tido por muitos como ponto de referência, o prédio está localizado na rua Marechal Floriano Peixoto, próximo a espaços importantes de Porto Alegre: do Mercado Público, da estação de trem, do Paço Municipal e da charmosa avenida Borges de Medeiros. No térreo da construção funcionava a Galeria XV de Novembro, vizinha da Galeria do Rosário, ambos centros comerciais construídos na década de 50.

O prédio com características de potencial arranha-céu, à época, carrega, na verdade, uma estrutura inacabada e esquelética. Além dos estabelecimentos comerciais do térreo, chegou até mesmo a ser morada improvisada de famílias nos três andares acima. Os projetos de transformar a parte superior em hotel nunca foram concluídos – ou por falência ou por falecimento dos investidores.

Contou com diversos proprietários – mais de 30, por último –, alguns deles que nunca viram seus apartamentos construídos. Esse número é ainda maior, visto que a prefeitura de Porto Alegre não conseguiu identificar alguns deles.

Galeria XV de Novembro em 1998 Galeria XV de Novembro em 1998 | Foto: João Carlos Rangel / CP Memória

Depois de 36 anos de tramitações jurídicas, o Esqueletão começou a ser demolido em agosto deste ano. O plano de trabalho prevê etapas, entre manuais e a implosão final. A previsão é que a construção desapareça da paisagem do Centro até o fim do ano.

Ao longo do tempo, o prédio passou por três interdições: 1988, 1990 e 2019. Entre elas, laudos, audiências, mandados de desocupação, e um período de paralisação por conta da pandemia. Os débitos de impostos, que gira na casa de bilhões, estão sendo cobrados pela Prefeitura na Justiça.

A desocupação total só ocorreu em setembro de 2021. Não houve indenização financeira pra quem teve que sair de surpresa. As duas portas de acesso ao Esqueletão hoje estão cobertas por cartazes que informam o paradeiro dos antigos comerciantes, a maioria ainda no centrão. Com sorte, os clientes vão atrás.

O futuro do terreno é uma incógnita.

As duas portas de acesso ao Esqueletão estão cobertas por cartazes As duas portas de acesso ao Esqueletão estão cobertas por cartazes | Foto: Mauro Schaefer

“A mãe viu minha casa e me abençoou”

Com um grande manto estendido no chão, de costas para as ruínas da antiga casa, Índio vende roupas e acessórios usados Histórias de moradores e comerciantes do Esqueletão | Foto: Mauro Schaefer

A mãe de Índio viajou cerca de 630 quilômetros, de Uruguaiana a Porto Alegre, para conferir com os próprios olhos a vida que o filho levava. O CEP era da Galeria XV de Novembro, o popular ‘Esqueletão’. O domicílio em si era um quarto, estilo JK, no 6º andar. “A mãe viu minha casa e me abençoou”.

Malton Marlon Batista Duarte, o “Índio”, conta com orgulho da época que tinha uma morada e um trabalho de que se achava merecedor. Tudo começou em um dia comum que passava em frente ao Esqueletão à procura de emprego. Não precisou nem entrar na galeria. Encontrou os irmãos Marcos e Sônia, da família Figueiredo, em frente ao prédio. Eles eram proprietários de uma expressiva parte do empreendimento comercial, construído em 1950.

“Perguntei se tinha algum trabalho. Ela disse ‘vá lá na esquina e pegue um cigarro pra mim’. Saí correndo, feliz da vida”, lembra, mostrando o caminho que fez com o dedo indicador. O ambiente do Esqueletão, hoje em processo judicial de demolição, e da loja da esquina, que de ‘boteco’ virou um comércio de roupas, ainda faz parte da vida de Índio. Só que de um jeito bem diferente. Com um grande manto estendido no chão, de costas para as ruínas da antiga casa, vende roupas e acessórios usados. Divide a vida de camelô e o aluguel num hotel simples da região com a namorada.

Índio não lembra das datas e tampouco de quantos anos levou a vida que “era boa”. Guarda com carinho as memórias do prédio, que era lar para outras 20 famílias, e a amigável convivência entre moradores e comerciantes do térreo.

Ao lado, de vigília

Luiz Carlos dos Santos em frente ao Esqueletão  Luiz Carlos dos Santos em frente ao Esqueletão | Foto: Mauro Schaefer

Nem em seus piores pesadelos Luiz Carlos dos Santos pensou que aquele seria o futuro do Esqueletão. Foram mais de 40 anos abrindo e fechando, de segunda a sábado, o bazar de produtos para caça e pesca no andar térreo da galeria. Na primeira vez tinha 17 anos apenas. Mais tarde, em 1998, virou proprietário do negócio.

Na década de 1990, os Figueiredos compraram a parte de cima do prédio com a proposta de arrumar o imóvel e destinar aquele espaço à moradia. “A entrada do Esqueletão foi parcialmente fechada para início das obras. Chegavam caminhões de areia”, conta Luiz. Toda a movimentação, no entanto, não era visível por transeuntes, que seguiam com a imagem do prédio inacabado. “Em vez de arrumarem a parte de fora, foram passar reboco na parte de dentro. O proprietário de um cartório de Viamão aumentou o valor do investimento, mas também não arrumaram o lado de fora do prédio.” Com o falecimento dos proprietários, o projeto de moradia nos três andares acima ficou abandonado.

A aparência da galeria, com os tijolos à mostra e andares faltando os pedaços, sempre destoou na paisagem do centro comercial da região. Essa característica, inclusive, fez com que o preço de aluguel das lojas girassem em torno de R$2,5 mil por mês – muito abaixo do praticado no bairro. O bazar de pesca e caça agora ocupa a primeira loja da galeria Rosário, a de melhor localização, e banca o custo mensal de R$8 mil. O despejo do Esqueletão também reverteu nenhuma indenização ou ajuda financeira, alegam os comerciantes entrevistados.

Para além de sua loja, Luiz ocupava a função de presidente da Associação dos Proprietários e Inquilinos do Andar Térreo da Galeria XV de Novembro, com a adesão das 20 lojas.

Conta que acompanhou todas as audiências na Justiça em relação à demolição do prédio. No decorrer do trâmite chegou a pagar um laudo sobre as condições da construção. “Aquele prédio não cai. Podem cair todos os prédios de Porto Alegre, mas aquele não cai”, afirma. O que o preocupa mesmo é o impacto da demolição em prédios encostados, com a possibilidade de rachaduras, por exemplo.

Em agosto de 2022, um estudo minucioso feito pelo Laboratório de Ensaios e Modelos Estruturais da UFRGS (Leme) apontou que o Esqueletão tem chances de ruir, e que nada pode ser feito para evitar. O documento, a pedido da Prefeitura, foi entregue ao juiz responsável pelo caso. Concreto esfarelando, desgastes na estrutura de ferro e infiltrações foram os principais motivos sinalizados no estudo. Para atender aos critérios do Plano de Prevenção e Proteção contra Incêndios (PPCI), as escadas do interior precisam ser alargadas também, o que implica em uma obra complexa.

A mudança

Cezar Fraga guarda boas relações que fez com os colegas comerciantes e moradores dos andares superiores Cezar Fraga guarda boas relações que fez com os colegas do Esqueletão | Foto: Mauro Schaefer

A poucos metros de distância do Esqueletão fica a Galeria do Rosário, construída na mesma época, em 1955. Diferente do prédio inacabado, ela logo de cara ganhou a relevância de um dos principais centros comerciais.

“Era o shopping da cidade, como se fosse o Shopping Iguatemi de hoje. Muitas pessoas chegavam do Interior para comprar mercadoria. Iam direto na Rosário. Relojoeiros chegavam na Casa das Pilhas e saiam com caixas e caixas de pilhas”, conta Cezar Fraga, ex -comerciante do Esqueletão.

Há dois anos, se antecipando à decisão judicial, ele transferiu a loja de óculos que ocupava um espaço alugado no térreo do Esqueletão para uma confortável sala no 6º andar de um prédio de apartamentos comerciais, com portaria em tempo integral, silêncio e ar condicionado. “Fiquei com medo de deixar um ponto que era de calçada, onde as pessoas passavam, por um lugar ‘escondido’.” Mas nem deu tempo do sofrimento e os clientes do Cezar já estavam visitando o estabelecimento repaginado. Hoje goza da boa troca e trabalha na reabertura da segunda unidade do negócio, em outro bairro.

Do Esqueletão guarda boas relações que fez com os colegas comerciantes e moradores dos andares superiores. Sempre guarda um tempo para visitar a loja de caça e pesca do Luiz e deixar um aceno para o Índio.

Correio do Povo

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