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domingo, 1 de setembro de 2024

Como conviver na geração canguru: jovens do Brasil moram cada vez mais tempo com os pais

 Especialistas indicam sinais para identificar se a convivência entre pais e filhos é saudável



Os cangurus costumam manter os filhotes dentro da “bolsa” da mãe por bastante tempo, mesmo que eles já não sejam tão pequenos e frágeis. Os pais ficam ao redor do filho, fornecendo alimento e zelando pelo seu bem-estar e segurança, ainda que ele já seja capaz de se virar minimamente sozinho. E embora sejamos seres humanos, esse comportamento é cada vez mais frequente na nossa espécie.

De acordo com dados do Ibope, até 2012, um em cada cinco jovens entre 24 e 34 anos permanecia morando com os pais. Em 2022, esse número subiu. Agora são dois em cada cinco que seguem residindo com os progenitores, ainda que em muitos casos já tenham condições financeiras para sair.

Uma série de fatores econômicos, sociais, relacionais e geracionais influencia nesse padrão. Esse fenômeno, chamado de “geração canguru”, não é uma particularidade brasileira. Outros países, como Estados Unidos e Inglaterra, experimentam cenários similares.

Para muitos, sair não é uma opção

Autora do livro “Geração Canguru, Ninho Cheio: O filho adulto morando na casa dos pais”, a Dra. Mariana Del Monte pesquisa esse tema há mais de uma década. Para ela, são muitos os fatores internos e externos que contribuem para que o jovem permaneça mais tempo na casa dos pais. Entre os aspectos internos, ela menciona os limites da “adultescência”, que estão mais elásticos.

“Na geração dos nossos pais, aos 30 anos eles já estavam casados e tinham família constituída. Muitos deles passaram por privações e dificuldades e agora não querem ver seus filhos trilhando o mesmo caminho. Por isso, dão a esses filhos o conforto e as possibilidades que eles não tiveram. Isso não é ruim, mas ajuda a mantê-los perto por mais tempo”, ressalta.

Para muitos jovens nessa faixa etária, estudar e trabalhar ao mesmo tempo também tem sido um desafio. A precarização dos postos de trabalho contribui para que as vagas de estágio ou de emprego formal tenham remunerações baixas que impedem a independência financeira. Com os valores recebidos, muitos não conseguem dar conta de despesas como aluguel, alimentação e transporte. Continuar na casa dos pais se torna também uma necessidade, já que não é possível arcar com os custos de vida.

O professor e coordenador do curso de Psicologia da PUCRS, Cristiano Dal Forno, aponta que esse é, sem dúvidas, um dos fatores que têm mantido os jovens mais tempo na casa dos pais. “Esses jovens muitas vezes têm ganhos financeiros inferiores aos que seus pais tinham, nessa mesma faixa etária. Muitos permanecem junto de seus genitores porque é economicamente inviável sair e ter o mesmo padrão de vida ao qual estão habituados”, reforça.

Além da dificuldade de ingressar no mercado de trabalho e de receber uma remuneração que seja capaz de sustentá-los, Dal Forno também pontua que os jovens dessa geração têm buscado muitas qualificações que não se refletem nos salários ofertados. “Vejo isso entre meus pacientes e estudantes. Grande parte tem mestrado, doutorado, uma série de especializações, mas estão em subempregos, com remunerações muito aquém daquilo que esperavam para a quantidade de diplomas que acumulam”, comentou.

Peso emocional

A dificuldade de sair da casa dos pais não se restringe apenas à esfera financeira. Para a escritora Mariana, em alguns contextos familiares, a relação que se estabelece entre pais e filhos pode limitar ou dificultar a independência e autonomia desse jovem adulto. “Diversos estudos mostram que a autoestima de um adulto é construída também a partir do momento em que esse filho se vê capaz de cortar o cordão umbilical emocional. Quando ele consegue construir projetos de vida que são independentes dos seus pais.”

Além disso, existem dinâmicas familiares que podem fazer com que esse filho sinta uma dificuldade ainda maior de deixar a casa dos pais. Alguns pais podem experimentar um sofrimento emocional causado pela saída do filho, que é o que a Dra. Mariana coloca como a “síndrome do ninho vazio”.

O sentimento de solidão ou de abandono que pais e mães podem sentir quando o filho sai de casa, em certos casos, é usado para fazer com que esse jovem sinta culpa. “Esse tipo de atitude, muitas vezes nem é consciente. Mas é importante que esse filho se questione se ele está permanecendo junto de seus pais porque quer ou porque sente algum tipo de culpa em deixá-los”, ressalta.

Por outro lado, o professor Dal Forno pontua que muitos jovens têm dificuldades em lidar com as frustrações trazidas pela vida adulta. Esse fator contribui para que se sintam menos capazes de abandonar a casa dos pais. “Existe uma cultura que leva essa geração a uma maior fragilidade psíquica. Não é à toa que há um grande índice de ansiedade e depressão nessa faixa etária”, enfatizou.

Ainda de acordo com ele, o mundo em permanente transformação que estamos vivendo, com escassez de certezas no âmbito da carreira e da vida pessoal, contribui para quadros de dependência emocional. Por isso, a casa dos pais é o porto seguro de muitos filhos, que acabam permanecendo mais tempo junto deles.

Quando sair é o melhor caminho

Para alguns filhos, a boa convivência com os pais chega a um limite. Conflitos e discussões fazem parte da rotina e viver sob o mesmo teto torna-se complexo. “Durante a minha adolescência, eu e minha mãe brigávamos muito. Um dia, ela disse que me ajudaria a encontrar um lugar e me auxiliaria a pagar por ele durante um tempo. Saí de casa há oito anos e com a distância, nossa relação melhorou”, conta Gisele Scheunnemann, 27, que é arquiteta e hoje mora e estuda na Alemanha.

Segundo ela, o tempo ajudou a fazer com que compreendesse as questões da mãe e fosse mais empática. Com a saída de casa, os conflitos cessaram e as visitas ocorrem anualmente. “Temos uma relação de suporte e amizade atualmente. Minha mãe me respeita como mulher adulta”, completa. Em uma eventual necessidade de retornar a morar com a mãe, a arquiteta afirma afirma que fica feliz em saber que tem um lugar para onde voltar e que, independente da situação, seria bem acolhida.

"Amo meus pais, mas se tivesse que voltar, me sentiria um fracasso”

Esse cenário não se repete para outros filhos. A estagiária Luiza Schenkel, de 22 anos, deixou a casa dos pais em 2021. “Nossa relação não era ruim, mas temos opiniões muito diferentes sobre muitas coisas. E com a convivência, essas divergências vinham à tona, causando brigas entre nós”, relatou.

Luiza conta também que sair da casa dos pais ampliou seus horizontes e que agora, quando ela os encontra, não há tempo suficiente para os conflitos. No entanto, a estudante precisou retornar para o antigo lar no período das enchentes, e a convivência forçada por muitos dias seguidos fez as divergências surgirem novamente. “Amo meus pais, mas se tivesse que voltar para a casa deles, me sentiria um fracasso. Seria como retroceder. Quero manter a liberdade, autonomia e independência que conquistei”, conclui.

Sair da casa dos pais pode também sinalizar um marco de crescimento. De acordo com a Dra. Mariana, ter seu próprio espaço e ser o único responsável por si e pelas suas coisas ajuda esse jovem a adquirir autoconhecimento. “Aprendemos aspectos, forças e habilidades que muitas vezes não conseguimos na casa dos pais”, pontua. Nessa mesma linha, o professor Dal Forno também ressalta que morar sozinho permite que esse filho aprenda a estar só. “É muito importante que qualquer pessoa se permita estar em sua própria companhia, ocupando-se dos seus próprios desejos e refletindo sobre suas questões”, explica.

Quando ficar é uma escolha feliz

Enquanto alguns filhos viram a relação com os pais melhorar com a distância e sentem a necessidade de estar longe, outros escolhem ficar. Lidiane Bischoff, 35, é educadora física e filha única. “Minha família é pequena e manter uma boa relação com os meus pais sempre foi importante para mim. Ficar na casa deles me permitiu focar e pagar pelos meus estudos, viajar, comprar um carro melhor.”

A proximidade, segundo Lidiane, possibilita também que ela os ajude financeiramente e cuide deles. “É uma troca, fomos construindo tudo junto”. Ela afirma que não se arrepende da escolha de continuar junto de seus pais e que pretende sair da casa deles para constituir sua família, mas até lá, não vê motivos para morar sozinha.

Escolher morar com os pais, mesmo já tendo condições financeiras para sair, não é um problema, desde que a relação entre pais e filhos seja harmoniosa e respeitosa. “Se eu, como filho, me sinto respeitado, se consigo ter o meu espaço e me sinto verdadeiramente acolhido, não preciso ter pressa para me mudar. Não existe um relógio que nós tenhamos que obedecer. Todos temos nosso próprio tempo, nossas subjetividades. Se me sinto bem e se me sinto validado por ser quem sou junto dos meus pais, sob o mesmo teto, não há necessidade de mudança de ambiente”, finaliza Cristiano Dal Forno.

Correio do Povo

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