domingo, 18 de agosto de 2024

O luxuoso cassino na Porto Alegre da década de 30

 Uma grande casa de jogos e espetáculos artísticos foi construída no Parque da Redenção durante a Exposição do Centenário Farroupilha, em 1935

Além dos jogos, cassino recebeu luxuosos jantares e shows 

“O jazz começou a tocar um fox. Êle arrastou Anneliese para o meio da multidão. Chamou-a docemente para si, enlaçou-lhe a cintura e arrastou-a ao compasso da música, sentindo contra o peito o seio dela e contra o ombro aquela cabeça loura, que recendia a alfazema. Voltaram para a mesa e continuaram a beber. Anneliese pediu mais champanha. Foram depois para a sala de jôgo. Anneliese comprou algumas fichas. Jogaram todas no 14. A bola correu: 16!” (Um Lugar ao Sol, Érico Veríssimo)

O guia que nos conduz a flanar pelo ambiente que representava o suprassumo do luxo e da modernidade da Porto Alegre de 1935 é Vasco, personagem do livro “Um Lugar ao Sol”, de Érico Veríssimo, lançado em 1936. O ambiente era o vultuoso cassino instalado no Parque Farroupilha – conhecido como Parque Redenção –, que recebia grande atenção da elite e da imprensa na época.

“É a primeira vez que em Porto Alegre se installa um Casino na verdadeira acepção da palavra. Será elle, portanto, o centro de reunião elegante da sociedade porto-alegrense e de todos os forasteiros que aqui se encontram”, publicou o Correio do Povo às vésperas da abertura.

A enorme construção em Art Déco, que lembrava um navio, integrava a Exposição do Centenário Farroupilha, ocorrida em 1935. A estrutura ficava localizada junto ao lago, próximo à Fonte Luminosa - na atual configuração do parque, próximo ao “Refúgio do Lago”.

Com o evento, o Rio Grande do Sul queria mostrar ao mundo o que tinha de mais moderno. Em seus pavilhões, a mostra trazia ainda pavilhões de quase todos os estados brasileiros e de países vizinhos, destacando o desenvolvimento industrial. A área foi iluminada com mais lâmpadas do que dispunha a cidade inteira, à época, com cerca de 300 mil habitantes. Mais de um milhão de pessoas visitaram o evento, de acordo com relatório publicado pela prefeitura.

O momento político era marcado pela disputa entre Getúlio Vargas, então presidente da República, e Flores da Cunha, governador do Rio Grande do Sul, e opositor político de Getúlio.


De “Campo da Redenção” para “Parque Farroupinha”

Era a época das grandes feiras internacionais. Inspirada na feira de Chicago, de 1932, a exposição teve 56 mil entradas vendidas até o dia da inauguração - 20 de setembro de 1935. Os jornais noticiavam uma movimentação inédita de 15 mil “forasteiros”, vindos de diversos estados brasileiros, da Argentina e do Uruguai.

A preparação começou dois anos antes, em 1933, com o plano de embelezamento da área da antiga várzea. A exposição marcou também a mudança do nome oficial da área, que deixou de se chamar Campo da Redenção para tornar-se o Parque Farroupilha.

O cassino era o grande atrativo do evento. Em alguns registros de jornais da época e textos publicados posteriormente, o local é chamado de ‘Casino Farroupilha’, no entanto, na fachada, o letreiro referia apenas ‘casino’.

Além do espaço voltado aos jogos de azar, o estabelecimento contava com um amplo salão, que recebia jantares e espetáculos artísticos. Ali cantou Carmen Miranda, além de outras das grandes atrações dos teatros e das principais “broadcastings” do país de São Paulo e Rio de Janeiro.

Ambiente para a elite bem vestida

Historiador e professor da PUC, Charles Monteiro ressalta que se tratava de um ambiente luxuoso, voltado principalmente às elites, onde era imperativo estar bem vestido. Como um paralelo com as casas de jogos atuais, Monteiro cita os cassinos de Punta del Este, no Uruguai.

“O cassino era dirigido principalmente à elite. Elite política, comercial e industrial. Grandes proprietários de terra, de gado, comerciantes, industriais. E também às camadas média e média alta. Um espaço para as pessoas da elite estarem confortáveis entre os seus, muito bem trajados”, descreve.

O historiador destaca que, na época, Porto Alegre possuía diversos estabelecimentos voltados a jogos, espetáculos e, em muitos casos, prostituição. Os mais elitizados ocupavam a região do Centro e, espalhando-se para os lados da Voluntários, ficavam outros, mais populares. Mas o cassino da exposição se diferenciava dos demais.

“Não era como o Club dos Caçadores [na rua Andrade Neves], mais voltado à diversão masculina, com prostituição. Era socialmente mais bem visto. Havia uma conotação positiva em se frequentar esse ambiente”, explica Monteiro. O Cassino Farroupilha, por exemplo, era frequentado também por mulheres, casais e famílias.

A Exposição do Centenário Farroupilha durou cerca de quatro meses, sendo encerrada em 15 de janeiro de 1936.

Programação repleta de atrações nacionais

“Os cassinos eram também espaços de espetáculos. A Carmen Miranda fez uma apresentação, assim como ela cantava no Cassino da Urca, no Rio de Janeiro”, exemplifica Monteiro.

Na edição de 20 de setembro de 1935, o Correio do Povo noticiava a inauguração oficial da Exposição, marcada para iniciar às 22h, detalhando as atrações da noite:

“Alzirinha Camargo, ‘o rouxinol da Paulicéia’, admirável intérprete de canções e marchas brasileiras; Fernando Vital - ‘Nho Totico’, excellente parodista, cantor e humorista de real valor; Alvarenga e Ranchinho, dupla caipira insuperável; M.G. Barreto, o príncipe da embaixada nortista e fino condottieri artístico, apresentador da pista; Pedro Gil, Barítono notável, intérprete de músicas clássicas e canções regionaes ;Ida Alencar, Afamada soprano ligeiro, consagrada creadora da canção brasileira; Ardamy, figura de grande brilho em São Paulo e nos cassinos do Rio de Janeiro, o mais completo cantor de tangos.”

A programação contava ainda com “numerosa orchestra sob a competente regência do maestro Ascendino Lisboa, brilhantemente secundada por outra orchestra typica de tangos, dirigida por Clovis Mamede.”

Monopólio da jogatina

Em 1935, as casas de jogos da cidade foram fechadas para que uma brilhasse sozinha. A abertura de um cassino levou o governo estadual a decidir pelo fechamento do restante da jogatina na cidade. A ideia era não passar ao forasteiro a ideia de que a população da cidade era mais dada aos prazeres que ao trabalho, como citou Raul Pilla em artigo publicado pelo Correio do Povo, no dia 12 de setembro.

“Deliberou o governo fechar todas as tavolagens, só permitindo o jogo no casino da Exposição”, dizia. Para Pilla, o evento poderia servir como um período de transição para a “extirpação radical” do jogo, que definia como “um cancro social”.

Bem como previstos nas atuais discussões sobre a possível volta dos cassinos à legalidade no Brasil, a diversão das roletas e dos panos verdes era atividade exclusiva, reservada a alguns poucos endinheirados.


Reação do comércio do Centro

O plano de interditar a jogatina da região central da cidade encontrou resistência por parte do comércio local. Em uma carta assinada “por mais de 200 firmas”, comerciantes pediam ao governador, o general Flores da Cunha que reconsiderasse a ideia.

Os signatários reconheciam que a medida anunciada por Flores da Cunha demonstrava o “alto carinho” do governador no preparo dos festejos, mas alertavam para o risco de a medida assumia “uma importância excessiva” do governante.

Na carta, eles argumentavam que o fechamento das casas de jogos afetaria o comércio em geral, gerando “prejuízos vultuosos” e causando demissões. Outro argumento apresentado era de que o “forasteiro” em visita à capital buscaria conhecer “a maior soma de diversões”.

Por fim, os signatários apelavam a Flores da Cunha por um gesto “de bondade humana, e de proveitosas consequencias economicas para o commercio e para a industria desta capital.”

As queixas do leitor

O jornal A Federação, concorrente do Correio do Povo e que tinha sua sede na mesma esquina, em prédio que hoje abriga o Museu da Comunicação Hipólito José da Costa, criticava os preços “escorchantes” cobrados pela empresa paulista que operava o equipamento, cuja ganância superava “todos os limites concebíveis”.

“Estão explorando o público vergonhosamente, cobrando no serviço de bar e restaurante preços que só podem ser pagos por milionários”, publicava o jornal no dia 23 de setembro.

As reclamações da população estampavam também as páginas do Correio do Povo. Entre os apontamentos estavam os altos preços do evento e ao abandono da área que ficava do lado de fora dos gradis.

Em longa carta enviada à redação, uma leitora criticava a Casa do Gaúcho e a “exhibição grotesca” do povo do Rio Grande do Sul feita no evento.

“Os verdadeiros gaúchos não podem ser representados por um ‘jéca’, nem por um ‘rancho’ que nada exprime”, citava a seção “As queixas do público”. A leitora concluía que “nem mesmo o clássico ‘Martin Hierro’ poderia concordar com aquella palhaçada.”

Um passeio pela exposição pelas palavras de Érico Veríssimo

O livro “Um Lugar ao Sol”, de Érico Veríssimoretoma personagens de obras anteriores do autor, como “Clarissa” e “Música ao Longe”.

Na trama, a jovem professora Clarissa se muda para Porto Alegre, junto da mãe e do primo Vasco, depois que seu pai é assassinado em Jacarecanga. Enquanto a família busca se adaptar à vida na cidade grande, Vasco se envolve com a boêmia local. Na obra, o autor descreve ainda outras cenas vividas por Vasco no cassino.

“O jazz não cessava de berrar. Andava no ar uma mistura excitante: éter, perfume de carne de mulher, poeira de confete, bafio de álcool. O furor dos pares crescia. Explodiam gritos. A onda colorida se agitava. Uma bruma pairava no ar, tingida de mil perfumes e mil desejos.”


Origem do Parque Farroupilha

O evento marcou também o plano de melhoramento e ajardinamento da área - antes uma várzea alagadiça. À época da exposição, a área ainda não era um parque.

Pelas imagens da exposição é possível ver que a imensa área hoje arborizada na época tinha poucas árvores. Apenas a face voltada à avenida João Pessoa era ajardinada, com árvores e bancos, uma espécie de passeio.

São raras as estruturas da exposição que permanecem de pé. Entre elas, a Fonte Luminosa, o Espelho D’água e o antigo embarcadouro do lago, que mais tarde ficou conhecido pelo “Café do Lago”.

A principal construção remanescente é o recém restaurado prédio do Instituto de Educação Flores da Cunha. O prédio, que abrigou o pavilhão cultural da exposição, tornou-se endereço da Escola Normal da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, como era chamado IE até 1939. A edificação foi concebida pelo escultor e arquiteto espanhol Fernando Corona, radicado em Porto Alegre e construída em cerca de um ano.

Correio do Povo

Nenhum comentário:

Postar um comentário