Depois da tragédia climática, pequenos produtores, como Roberto da Silva, de General Câmara, buscam novos caminhos
Roberto buscou emprego em outra fazenda, enquanto reorganiza a vidaFilho e neto de agricultores, o produtor rural Roberto Luiz da Silva, 46 anos, passará o Dia do Agricultor, data nacional celebrada neste sábado, em meio a uma encruzilhada de sentimentos. Os traumas remanescentes da grande enchente de maio se fundem com dúvidas sobre a continuidade de sua trilha na atividade agropecuária. “É incerteza com o futuro. Não tem outra coisa para esperar”, diz Silva. Seu estado de espírito reflete um sentimento que tem assolado agricultores gaúchos, espremidos entre dívidas contraídas em safras que se perderam por secas e cheias e no aguardo de respostas das autoridades de Brasília.
Silva nasceu e foi criado em uma propriedade rural na localidade de Volta dos Freitas, em General Câmara, onde também labutaram os pais e os avós. Em maio, o produtor testemunhou o desaparecimento nas águas lamacentas de tudo que construiu e narrou a tragédia para o Correio do Povo. Ele e a família abandonaram a área apenas com a roupa do corpo, deixando para trás a terra devastada pelas águas lamacentas do Rio Taquari, que arrastou o rebanho de vacas leiteiras e destruiu sua estrutura produtiva.
Ele começou ainda guri a trabalhar em lavouras de tabaco na terra da família. Com 20 anos, ficou por conta própria e somou 15 anos de dedicação ao plantio e colheita de fumo antes de decidir se dedicar à bovinocultura de leite. Ele enfrentou momentos difíceis em tempos recentes pela desvalorização do leite e pela penosidade de tirar leite em um sistema arcaico. “A família reclamava, eu também já sentia dores nas costas e nos joelhos”, conta.
Silva ouviu conselhos de que precisava melhorar a estrutura de produção.
“Pensei, estou há 13 anos tirando leite com ordenhadeira balde ao pé, está dando, a família junta, acho que dá, vou arriscar a investir, mesmo estando ruim o leite. Até para motivar a gente também”, recorda.
O produtor construiu um galpão de 20mx10m com madeira extraída na propriedade, comprou ordenhadeira canalizada e ferramentas. “Fiz sala de alimentação, com canzil galvanizado, contenção galvanizada, tudo no capricho para trabalhar”, narra. O investimento foi acima do inicialmente projetado e feito cerca de um ano antes da tragédia climática.
“Bem ou mal, estava conseguindo pagar as contas dos financiamentos das primeiras vaquinhas que comprei, da ordenha, trator e ferramentas, e sustentar a família”, lembra. Silva administrou o negócio reservando recursos que eventualmente sobravam ao fim do mês. “Já sabia que ali na frente poderia faltar”, ensina. “Um mês dava uma apertadinha na ração, dava mais silagem para as vacas. No mês que o pasto estava bom, dava mais silagem, para sobrar ração ali na frente.”
A propriedade contava com 20 vacas leiteiras, 15 novilhas leiteira e um touro, além de terneiro de corte que fazia para carne ou vender. “Tiramos leite um ano e pouco, veio a água e levou tudo embora. Não ficou nenhum animal para contar a história dos outros”, lamenta. A inundação também arrasou 120 carretões de silagem que tinha feito e estocado. Dois hectares de milho pronto para colher para silagem também sucumbiram. “Saímos só com a roupa do corpo. Foi muito triste”, resume.
A família conseguiu abrigo e passou 30 dias fora de propriedade. No retorno, estava tudo fora de lugar, com móveis destruídos, parede vertendo e teto pingando água. Não havia mais o mugido das vacas nem do terneiro que recém havia nascido. A rotina de acordar 5h e 5h30min, tomar chimarrão e ouvir rádio antes das lidas do leite por enquanto ficou no passado. “Aquilo me aborreceu. Estava com vontade de sumir de lá. Pensava, olhava para cima, para a altura que a água chegou no galpão, nos animais que criei com tanto zelo e apurando cada vez mais a genética da raça para ter uns bichos e qualidade”, relata. Silva reflete sobre a situação toda e não tem ânimo para encarar tudo de novo.
Ele conseguiu um emprego assalariado de caseiro em uma propriedade rural, onde cuida de ovelhas e cavalos e roça o pátio para conservar a propriedade. ”Me sinto melhor aqui hoje do que lá em casa. Não tem como voltar lá e me iludir de novo”, avalia. Em sua mente ainda são vivas as imagens dele e da família com água na altura do peito e abandonando a terra de barco depois de passar uma noite no telhado do galpão, assistindo à luta dos animais contra a correnteza e sendo arrastados para o fim.
“Foi uma coisa muito triste que não vou esquecer até morrer de velho”, assevera.
Silva confessa que chora até hoje ao lembrar da catástrofe. Ele olha fotos e vídeos da propriedade do tempo em que estava tudo certo. “Eu gostava daquilo lá. Não vou dizer que peguei nojo do lugar, mas não gosto mais. Vou lá, paro um pouquinho e não vejo a hora de voltar pra onde estou trabalhando agora”, relata. Amigos falam que o Rio Grande do Sul teve grandes enchentes em 1941 e 2024 e que vai levar décadas para algo similar se repetir, por enquanto ele não se anima a repetir os esforços sob risco de perder tudo por um novo cataclisma. “Aí vou estar lá, embalado e daqui cinco, 10 anos acontece de novo. Vou enlouquecer, não tem como.”
Além do efeito psicológico das perdas, Silva ainda teria de investir na reconstrução de estruturas e rebanho e conserto dos equipamentos. Só para repor as 20 vacas leiteiras, seriam em torno de R$ 140 mil. “Vou ter que ir ao banco onde já tenho dívida e me endividar mais”, diz. O produtor tem em mente colocar a propriedade à venda e procurar outro lugar para morar e produzir.
“Se vender hoje ninguém quer. Então, tem que dar tempo ao tempo, nem que seja para vender dois hectares e comprar um, em um lugar em que a enchente não chegue”, fala.
A enxurrada também levou três violões no qual Silva “arranhava” modas caipiras para espairecer. Um dos instrumentos era presente do pai quando ainda era guri, e os outros foram dados por amigos. Sem tocar há três meses e afastado dos amigos por conta do novo trabalho, o agricultor diz que a jornada no leite se encerrou com as águas de maio. Casado com Erecê e pai de Bruna e Raissa, Silva tornou-se avô há cerca de duas semanas, quando Bruna deu à luz um menino. Ao ver a vida se renovar na família, Silva aguarda novos tempos também para a agricultura, consciente de que o clima tem se mostrado severo e desafiando ainda mais os agricultores.
Correio do Povo
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