domingo, 21 de julho de 2024

Caminho Pomerano é retrato da presença germânica no sul gaúcho

 Roteiro turístico rural em São Lourenço do Sul, repleto de cultura e gastronomia, apresenta história dos colonizadores vindos há cerca de 160 anos



Em meio às vastas planícies ao redor da Lagoa dos Patos, o Caminho Pomerano, em São Lourenço do Sul, é um importante registro histórico e cultural da imigração germânica no sul gaúcho. São cerca de uma dezena de atrativos pontilhados ao longo da rodovia ERS 265 e estradas do interior do município, como nas localidades de Quevedos, Boqueirão, entre outras, reunindo edifícios históricos, gastronomia típica, agroindústrias e paisagens naturais de tirar o fôlego.

Ele é mantido pela Associação Caminhos dos Pomeranos, que conta com 45 sócios. “O caminho busca resgatar a história dos imigrantes, alemães e pomeranos, que chegaram aqui há 160 anos, trazendo sua história e cultura. Nosso trabalho, além de preservar estes aspectos, busca também gerar renda através dos produtos que são vendidos pelos agricultores integrantes do roteiro de turismo rural”, conta o escritor e guia condutor do caminho Rodrigo Seefeldt.

Em janeiro de 1858, 88 imigrantes se assentaram na então Colônia de São Lourenço, considerada uma das mais meridionais e isoladas das colônias alemãs no sul do Brasil, e dois anos depois, passaram a morar na chamada Coxilha do Barão, casa erguida pelo então administrador Jacob Rheingantz para ser o centro administrativo colonial. O entorno abriga também a primeira igreja luterana na metade sul gaúcha, bem como uma estátua que homenageia este pioneiro.

A Coxilha, plenamente preservada, é o ponto final do caminho histórico, aberto inicialmente pelos pomeranos, naturais do litoral do Mar Báltico, entre a Polônia e a Alemanha, e que trouxeram para cá consigo suas memórias e cultura particulares. Antes das enchentes, a reportagem foi conduzida pelos principais pontos do caminho com Seefeldt e o também escritor Jairo Scholl Costa, autor de livros sobre a imigração na região e bisneto do sucessor de Rheingantz na administração do local, João Baptista Scholl.

Portanto, para Costa, esta também é uma história de preservação familiar. A comunidade onde o prédio está situado chama-se São João da Reserva, porque, de acordo com ele, era um lugar reservado para os imigrantes, que trabalhavam em mutirão para construir suas vidas. Mas os pioneiros eram naturais de zonas urbanas na Alemanha, ou seja, não eram habituados ao campo, e, portanto, não se fixaram ali em um primeiro momento.

“Um em cada três imigrantes que veio para São Lourenço não ficou aqui. Alguns, que eram da região do (rio) Reno, eram lapidadores de pedras, e não havia trabalho para eles nesta região. Assim, eles foram para os lados de Soledade”, afirma o escritor. Só depois que os colonos da Pomerânia, região do então reino da Prússia, foram desembarcados nas terras meridionais, acostumados que eram ao plantio da batata inglesa. Porém, desta vez, a ação deu certo.

“O Brasil recebeu 33 mil imigrantes pomeranos, em São Lourenço, Pomerode (SC) e Domingos Martins (ES). Os Estados Unidos receberam 390 mil. Mas os norte-americanos não permitiam colônias, queriam a integração com os habitantes locais. Começaram mal com os irlandeses e judeus, que formaram guetos. Os alemães começaram a se espalhar, e hoje, um a cada quatro americanos descendem deles ou só pelo pai, ou só pela mãe. E hoje, lá, há cidades com os nomes de Berlim e Bismarck (capital da Dakota do Norte), típicos alemães, por exemplo”.

Os descendentes mantêm as tradições no sul gaúcho em roupas, na culinária, como a autêntica cuca pomerana e costumes, a exemplo das noivas de vestidos pretos em casamentos. Tal traje é justificado, conforme o livro Noivas de Preto, escrito por Costa, em nome de um antigo sonho de liberdade, pois “o vestido preto foi um instrumento de protesto, rebeldia e semente de uma revolução feminina de libertação no silencioso e claustrofóbico mundo europeu da Idade Média”, tanto quando o povo em si, que “sobreviveu às mais duras provações que se conhece”, e cuja história heroica, prossegue o escritor em sua obra, é “uma verdadeira epopeia”, com batalhas e claro, emigrações.

Gastronomia típica germânica delicia visitantes

A aposentada Marcilda Bartz administra a Casa das Cucas, especializada desde 2005 na autêntica receita pomerana. Seu aprendizado veio a partir da mãe, Edith Bartz, já falecida. Seu avô veio da Alemanha. Com leveza, ela manipula a massa e prepara unidades para degustação aos turistas, enquanto relata como foi o desenvolvimento do local, enquanto a associação era formada. “Ouvi uma voz que dizia: ‘e as cucas da tua mãe?’ Ela fazia quatro vezes ao ano, só para a família. Disse brincando que faria a Casa das Cucas, e a ideia foi aceita pelo grupo”, relatou Marcilda.

A moradora afirma não ter certeza da época de construção da histórica residência onde vive, já que a mesma foi comprada de outra família no passado, e recebeu reforma em 2000. Quanto às cucas, há poucas diferenças entre as pomeranas e as alemãs, segundo Marcilda, ao passo de que as primeiras são mais “altinhas” do que as segundas. No entanto, os ingredientes básicos em ambas são os mesmos, com algumas adaptações: leite, açúcar, uma pitada de sal, farinha, fermento para pão e raspas de limão, este vindo do pomar atrás da casa.

“A maioria faz com água, eu uso manteiga, ovos e leite de vaca. A mãe não tinha receita. Quando ela queria fazer, fazia em uma bacia enorme, geralmente na Páscoa e Natal. Não sei como era o fermento que utilizava. Várias pessoas já me pediram receita, então eu adaptei uma para poder repassar”, prossegue ela, que tinha dois irmãos, também falecidos, um filho, que hoje trabalha em São Lourenço, e outra de criação, que também não mora no local.

Proprietários do Sabores do Sítio, outro empreendimento integrante do Caminho Pomerano e aberto em 2017, o casal Carla Ruch e Gláucio Gonçalves apresentou à reportagem os carros-chefes do negócio: o Rievelsback, o bolinho de batata alemão, que leva batata ralada, farinha de trigo, sal e um ovo, todos fritos em óleo, e a Maischnaps, também conhecida como “cachaça de maio”, tradicionalíssima entre os pomeranos.

A bebida tem como principal característica a infusão de 31 ervas diferentes a cada dia de maio, por isso o nome, e a quantidade delas depende do dia do mês. No primeiro dia, é colocada uma folha de uma planta em uma aguardente, no dia 2, duas folhas de outra, e assim sucessivamente. A partir do 15º dia, ingressam as ervas mais aromáticas. Após a conclusão do mês, a mistura permanece maturando durante um ano em ambiente longe da luz, quando, aí sim, pode ser consumida. Hoje, o Sabores do Sítio recebe turistas para degustações mediante agendamento.

“Buscamos servir produtos que produzimos na nossa propriedade, como batata, mandioca, feijão, para termos um sabor próprio, simples, mas diretamente da colônia”, comenta Carla, cujo avô havia se estabelecido na Colônia Osório, em Pelotas, ainda mais ao sul, antes de se dirigir a São Lourenço. “Acho que a questão da imigração germânica deveria ser mais valorizada, porque me parece ser pouco comentado, e foi um marco histórico. É algo tão interessante, eles (imigrantes) vindo de navio, com todas aquelas dificuldades, e cada um povoando um determinado local. E com estes gestos, procuramos celebrar sempre as tradições”.

Para Seefeldt, o ensinamento e o conhecimento da saga dos pomeranos é de suma importância. “Daqui, saíram muitos sonhos, famílias, e ainda se celebram as conquistas com a realização de festas. Buscamos trabalhar com os alunos das escolas municipais, mostrando os monumentos, ensinando sobre datas importantes, e este é nosso trabalho, vivenciar a cultura, oferecer a gastronomia e, de alguma maneira, colaborar para que as próximas gerações não se percam nesta história”, salienta ele.

O escritor Jairo Scholl Costa segue a mesma linha. “Somos fruto de inumeráveis etnias, que colaboraram e se harmonizaram na construção de um país. São 200 anos em que os elementos germânicos de uma Alemanha que ainda não tinha nascido vieram para o Brasil e se fizeram brasileiros. Somos, portanto, o resultado destes homens e mulheres, e a cultura alemã faz parte da cultura brasileira. Este é nosso grande diferencial em relação a outros lugares do mundo, que se fecham dentro de uma só etnia e pensamento. Temos esta riqueza na diversidade”, encerra.

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Correio do Povo

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