Presos renderam funcionários do presídio e iniciaram o motim, que seguiu tomando as ruas de Porto Alegre
Há exatos 30 anos, a Seleção Brasileira se preparava para entrar em campo para as quartas de final da Copa do Mundo dos EUA. A equipe, que mais tarde viria a conquistar o tetra da competição, enfrentaria, no sábado (9 de julho), a Holanda. Ao mesmo tempo, a população ainda se adaptava aos impactos da mudança da moeda. No primeiro dia daquele mês, entrava em circulação o real. Somado a isso tudo, os dias mais frios de um rigoroso inverno castigavam, ao mesmo tempo que atraíam as atenções da população gaúcha.
Em meio a esse cenário, o mais famoso motim penitenciário do RS tomava as ruas de Porto Alegre até terminar com cinematográfica invasão do hall do hotel Plaza São Rafael. O caso deixou o saldo de cinco mortos, sendo quatro criminosos e um policial civil, além de 11 feridos e a marca de 48 horas que não sairão das mentes dos envolvidos, em uma cidade que parou para acompanhar os desdobramentos. Tudo começou dias antes. Com supostos problemas de saúde, alguns presos pediram para serem levados ao Hospital Penitenciário do Presídio Central – hoje Cadeia Pública de Porto Alegre. Entretanto, as enfermidades não passavam de um plano para que fosse dado o pontapé inicial para a rebelião.
Pedro Ronaldo Inácio, vulgo Bugigão, que dizia ter problemas pulmonares. Em uma quinta-feira, 7 de julho, no setor de atendimento especializado, ele conseguiu imobilizar um dos funcionários. Ao mesmo tempo, Vladimir Santana da Silva, o Sarará da Vovó, rendeu o então diretor do Hospital Penitenciário, Claudinei dos Santos. Armados com armas de fogo, além de Bugigão e Sarará, os detentos Francisco dos Reis Cavalheiro (o Chico Cavalheiro), Nairo Ferreira Soares (o Boró) e José Carlos Pureza (o Pureza), também se amotinaram. Os criminosos eram liderados pelo também preso Fernando Rodolfo Dias, o Fernandinho, e mantiveram, ao todo, 27 reféns dentro da unidade.
O grupo exigia a presença de autoridades ligadas aos Direitos Humanos. Por isso, o deputado estadual Marcos Rolim e o juiz da Vara de Execuções Criminais, Marco Scapini, foram enviados ao Central, assim como a Brigada Militar e a Polícia Civil. Em viagem à Brasília, o então governador Alceu Collares também retornou ao Estado e determinou a criação de uma comissão para que tivesse início a negociação, que contou ainda com a participação de membros do Executivo e do Judiciário.
Durante o processo inicial de negociação, os amotinados exigiram que fossem trazidos de outro pavilhão os presos Luiz Paulo Schardozin Pereira, o Chardozinho, e Carlos Jeferson Souza dos Santos, o Bicudo, que assumiu a liderança e manteve o motim ao longo de todo o dia seguinte. Já na noite de sexta-feira, dia 8, após nova exigência dos criminosos, ocorreu a transferência de Dilonei Melara e Celestino dos Santos Linn, que estavam na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc). Nas horas seguintes, os presos exigiram veículos Ômega para que pudessem fugir do presídio. Com medo de que algo mais grave pudesse ocorrer, Brigada Militar e Polícia Civil foram voto vencido na decisão das autoridades de liberar os amotinados. Foram enviados três carros, todos modelo Gol e alterados para que tivessem pane logo após sair do Central. Tão logo iniciada a fuga, também começou a perseguição policial.
Em um dos três carros embarcaram Melara, Fernandinho, Bicudo e Linn. No segundo automóvel ficaram Chardozinho, Chico Cavalheiro e Bugigão, enquanto no terceiro estavam Pureza, Boró e Sarará da Vovó. Cada veículo rumou para uma direção diferente e, em todos, havia reféns. Contrariados pela liberação dos presos, os policiais civis iniciaram uma caçada pelas ruas da Capital.
Chardozinho, Chico Cavalheiro e Bugigão colidiram o carro nas proximidades do Shopping Iguatemi, abandonaram o Gol e invadiram uma festa no Country Club. Chardozinho foi capturado durante as buscas e os outros dois conseguiram fugir em outro carro roubado. Na Lomba do Pinheiro, Pureza, Boró e Sarará da Vovó morreram em confronto com a polícia. Um dos reféns, o filho do diretor do Hospital Penitenciário, ficou ferido.
No terceiro carro, Melara, Bicudo, Fernandinho e Linn levavam o diretor do Hospital Penitenciário, Claudinei dos Santos, e as estagiárias de psicologia Simone Munareto e Luciana dos Santos. O veículo sofreu uma pane na rua Ivo Corsseiul, bairro Petrópolis, e Claudinei foi baleado durante a troca de tiros entre os bandidos e a polícia. Ferido pelo tiro que viria a deixá-lo paraplégico, ele foi colocado para o lado de fora do carro, em uma cena que também ficou marcada na história. O tiroteio também resultou na morte de um policial civil.
Com os reféns, os criminosos exigiram um novo carro para a fuga e receberam uma Parati de uma emissora de televisão. Na avenida João Pessoa, saíram de veículo e embarcaram em um táxi, seguindo até invadir o hall Hotel Plaza São Rafael, na avenida Alberto Bins, onde era realizado um congresso de psiquiatria.
Linn correu para o local do evento, onde fez alguns reféns e foi baleado. Hospitalizado, ele morreu dias depois. Melara e Fernandinho ficaram no hotel com as estagiárias e uma funcionária até o momento da rendição, já no sábado, horas antes de a Seleção superar a Holanda por 3 a 2, no jogo marcado pelo histórico gol de falta do lateral esquerdo Branco.
Cobertura da imprensa foi ‘adrenalina pura'
A imprensa acompanhou de perto toda a situação do motim, com repórteres correndo riscos ao lado das forças de segurança e, em alguns casos, sendo usados como reféns e escudos humanos pelos criminosos. Entre eles estava Luciamem Winck. Hoje coordenadora de Produção, prestes a completar um ano de empresa, ela reportou todo o caso para o Correio do Povo.
Luciamem destaca que foram três dias e duas noites que pareciam intermináveis. “Lembro que saí de casa para trabalhar e só retornei três dias depois. Adrenalina pura em meio a uma Copa do Mundo. Naquela época não tínhamos celulares, apenas rádios transmissores que funcionavam com baterias”, relembra a jornalista. “No momento da fuga, havia muitos jornalistas na frente do Presídio Central e poucos carros de imprensa. Foi um momento em que todos pareciam pertencer ao mesmo time. Os carros de imprensa partiam lotados atrás das viaturas e dos veículos que levavam os fugitivos”, acrescenta.
Durante a fuga, ela se viu em meio à guerra estabelecida entre a polícia e os amotinados. “Entre a casa prisional e a chegada ao Plaza São Rafael, foram vários confrontos. O primeiro foi no Jardim Botânico. A ‘bala pegando’ e me vi na linha de tiro. Escapei ao avistar um muro baixo e me lancei para dentro do terreno. E literalmente despenquei, uma vez que o terreno era muito mais baixo do que o nível da calçada. Tentava me reerguer quando avistei dois furiosos cães correndo na minha direção. Saí correndo, subi as escadas e saltei para fora, escalando o portão”, recorda.
A jornalista precisou pegar carona em um carro de outra equipe de imprensa para continuar a cobertura. “Para sair dali peguei carona no carro da concorrência. Nas imediações do acesso à Reitoria da Ufrgs, novo confronto. Corri na direção da avenida João Pessoa e uma mulher parou o veículo e me ofereceu ajuda. Embarquei e não percebi que ela me levava para o lado oposto ao conflito. Desembarquei, peguei um táxi e segui atrás da caçada aos fugitivos que, a estas alturas, seguiam na direção do Palácio Piratini, também em um táxi”, observa.
O ponto culminante foi a invasão do Plaza São Rafael. “Eis que invadiram o Plaza, colocando abaixo as portas de vidro e lá permaneceram amotinados. Permaneci no hotel até a rendição, em um sábado, na hora em que Brasil e Holanda disputavam uma partida de futebol. Transformamos a recepção do Plaza em vários ambientes. Em momentos, era estúdio de rádio e TV e redação de jornais. Fazíamos os textos em manuscritos e ditávamos para os colegas que estavam na redação através de ligações telefônicas a cobrar, em orelhões”, detalha Luciamem.
Mesmo em meio às condições adversas de trabalho, os veículos de imprensa permaneceram no local até a rendição dos participantes. “A recepção também servia de local para o descanso – de olhos abertos – e era onde fazíamos nossas refeições, compradas nos bares do entorno. Loteamos as tomadas da recepção para carregar as baterias dos rádios e ali ficamos”, conclui.
Delegado avalia problemas durante as negociações
Na comissão instalada para acompanhar o motim estava o delegado Alexandre Vieira. Por ser o único delegado de plantão naquele momento e pela experiência adquirida ao longo de anos, foi ele o escolhido pela chefia da Polícia Civil para se dirigir ao Presídio Central. Conforme Vieira, ele tentou tomar as rédeas da negociação, ao lado da Brigada Militar. A situação era tensa e as exigências dos criminosos não seriam atendidas pelas forças policiais. “Eu não negocio com bandido”, garante.
Estratégias táticas eram idealizadas pela polícia, que se tornou voto vencido na comissão, segundo ele. Com o passar do tempo e a gravidade das ameaças dos criminosos, a interferência política teria se tornado um fator determinante no desenrolar do caso. Em determinado momento, um dos amotinados disse que, se o grupo não fosse atendido, uma das vítimas seria degolada e a cabeça seria jogada nos pés dos negociadores, algo que teria assustado alguns dos integrantes da comissão, que decidiram fazer a transferência de Dilonei Melara e Linn, e liberar os carros para a fuga.
A consequência de todo o saldo poderia ter sido distinta, caso a situação tivesse sido conduzida pela Brigada Militar e Polícia Civil, na avaliação do delegado. “Se a negociação tivesse sido conduzida pela polícia, que era a parte técnica do caso, com certeza saberíamos resolver o assunto. Ia ser demorado, ia ser desgastante, mas nós conseguiríamos equacionar e eles não sairiam de dentro do Presídio. O conflito ficaria restrito ao Presídio Central”, afirma o policial.
Vieira também criticou a presença de autoridades não especializadas na operação. “A negociação não caberia a eles, a operação em si não caberia a eles. Eles poderiam até ficar num patamar de negociação apartado. Houve uma falta de preparo emocional. Parte dessas pessoas, e eu não digo isso de crítica, mas de uma questão de cada um enxergar as coisas”, ressalta.
O delegado acrescenta que a polícia é treinada para lidar com esse tipo de situação e que está acostumada a enfrentar os criminosos. “Nós policiais já arriscamos a vida mil vezes. O juiz, o promotor, o defensor público, e muito menos o deputado, não são treinados para isso. A gente conhece esses bandidos, a gente sabia do que eles eram capazes”, conclui.
Motim revela facção criminosa
Além de tudo o que envolveu o caso, o motim também trouxe ao grande público a ascensão da Falange Gaúcha, a primeira grande organização criminosa do Estado. Seguindo o exemplo do crescimento deste tipo de facção em São Paulo e no Rio de Janeiro, ela surgiu como um pontapé inicial de uma organização central responsável por diversos crimes.
Já conhecido como uma liderança dentro do sistema prisional, Melara virou um dos mais conhecidos prisioneiros da história do Rio Grande do Sul e também tomou o protagonismo após o motim. É conhecido, também, por ser o primeiro a fugir da Pasc. Foi ainda o primeiro a escapar do local uma segunda vez.
Nos anos seguintes ao motim, a Falange deu origem à facção “Os Manos”, hoje uma das principais do Estado. Apesar de ser um dos fundadores, Melara não chegou a desfrutar por muito tempo do sucesso futuro que a organização criminosa viria a ter. Da ascensão e do protagonismo, chegou a um fim trágico aos 46 anos.
Em janeiro de 2005, enquanto estava novamente foragido, foi assassinado. Na localidade Colônia Japonesa, entre as cidades de Ivoti e Dois Irmãos, no Vale do Sinos, o corpo do criminoso mais procurado do Estado foi localizado desfigurado pelos diversos tiros recebidos. O caso nunca chegou a ser elucidado.
Correio do Povo
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