domingo, 9 de junho de 2024

Enchentes no RS colocam em xeque o futuro do setor primário

 Cheias desmantelam sistemas de produção agropecuários



Imerso em uma crise nos últimos anos por estiagens contínuas e condições de mercado desfavoráveis, o setor agropecuário do Rio Grande do Sul agora enfrenta um drama ainda maior. Produtores rurais estão descapitalizados, sem crédito, atônitos com o colapso da infraestrutura em propriedades, estradas e cidades e em dúvidas sobre a continuidade de seus sistemas de produção.

“Mais uma vez o setor primário vai pagar uma conta bastante pesada. Há também grande risco de um desânimo generalizado para muita gente, embora a vida desses produtores seja produzir e trabalhar no setor agropecuário”, comenta o doutor em Economia Argemiro Brum, professor da Unijuí.
Ninguém sabe ainda o tamanho exato do estrago no campo. A Emater/RS-Ascar divulgou na última semana um levantamento de danos que aponta para perdas em 206 mil propriedades e mais de 40 mil produtores de grãos atingidos, entre outros prejuízos. Estima-se que 3,2 milhões de hectares de solos precisarão de intervenção para voltarem a ser produtivos, tamanha a devastação causada pelo excesso de chuvas, que levou nutrientes e matéria orgânica de extensas áreas agricultáveis.

Levantamento preliminar indica R$ 3 bilhões de perdas somente nas áreas de grãos inundadas. São outras dezenas de milhões de reais em grãos que estavam armazenados em silos e armazéns atingidos, mortandade na pecuária, avarias em chiqueiros, aviários, tambos, hortas, estufas e agroindústrias. “Até onde consegui captar, de tudo o que está acontecendo e de toda a discussão que ocorre no setor primário gaúcho, a informação que mais circula é de que pelo menos todo o setor do agronegócio atingido pelas cheias precisaria de, no mínimo, R$ 20 bilhões, unicamente para reconstrução”, afirma Brum.

A contabilidade dos estragos está longe de ser concluída. “Isso sem falar nas vidas humanas que perdemos”, lembra o professor. Também ainda devem entram na conta os efeitos adversos no sistema logístico, com estradas do interior destruídas, e de infraestrutura rural. Soma-se a isso o fato que as cheias de maio colocam pressão e incerteza sobre as culturas de inverno. “O plantio de trigo está totalmente atrasado devido às intempéries e se perdeu muito porque muitos produtores já haviam adubado e preparado a terra para o plantio do trigo. Isso tudo foi embora com a chuva”, relata.

Além do aniquilamento do que estava nas propriedades, a contabilidade deverá incluir o que deixou de ser produzido nas últimas semanas. “Aqui na região Noroeste onde não tivemos grandes enchentes propriamente ditas, mas as chuvas intensas e contínuas e vendavais acabaram levando grande parte dessa infraestrutura de produção dos agricultores familiares, sobretudo”, informa. Ante a quebradeira geral, os produtores gaúchos terão desafios em série, desde a volta às atividades até retomar o mesmo patamar de produção pré-dilúvio, com qualidade e competência, aplicando tecnologias e tendo retorno financeiro.
“Em termos gerais, no Rio Grande do Sul, para além do setor primário, os prejuízos vão superar R$ 100 bilhões, não há dúvidas, pelos cálculos já feitos por muitas entidades e por aquilo que a gente conversa e observa com o setor produtivo em geral”, diz Brum. Conforme o acadêmico, outro agravante é que parte dos produtores não têm seguro suficiente para recuperar as atividades. “A maioria já não tem recursos próprios. Temos de lembrar que, nos últimos cinco a seis anos, o setor primário gaúcho enfrentou catástrofes e crises uma em cima da outra”, alerta. Nos últimos quatro anos, o Estado passou por três anos seguidos de seca, impondo severas perdas nas culturas de verão. No ano passado, o excesso de chuva gerado pelo El Niño afetou as culturas de inverno, especialmente o trigo.

Esse agricultor já vivenciava um roteiro de agruras desde os tempos da pandemia de Covid-19, com custos de insumos indo à estratosfera, enquanto os preços agrícolas foram depreciados. “A margem de ganho final diminuiu consideravelmente para praticamente a totalidade dos produtores em praticamente todas as áreas de produção. Isso a gente não recupera da noite para o dia”, atesta Brum. Se em condições normais estava difícil para o produtor dar a volta por cima, a crise climática coloca em xeque o futuro.

O abalo nas temporadas anteriores impactou o bolso do produtor rural. “Ele não consegue nem mais obter o Proagro e nem crédito para fazer as novas lavouras, devido às dificuldades de pagar os empréstimos feitos anteriormente”, detalha. Com o cenário extremamente difícil, o professor não descarta que parte dos produtores de diferentes segmentos não consiga voltar a produzir, por falta de infraestrutura e recursos para retomar o sistema de produção que tinha. “Infelizmente, poderemos ter um êxodo rural para além do que poderia considerar normal em função da situação econômica propriamente dita, do caminhar normal da economia. Ou seja, já estava muito difícil para o setor primário gaúcho nestes últimos anos, e agora a situação ficou extremamente difícil e, infelizmente, irreversível para muitos dos produtores, dependendo da situação financeira de cada um e da região em que vivem e trabalham”, analisa.

Recuperação de cadeias produtivas é complexa

Análise do professor de Economia da Unijuí, Argemiro Brum, aponta para um longo caminho até a retomada dos sistemas de produção animal e vegetal, o qual passa pela criação de mecanismos de crédito melhores que os oferecidos até hoje

Produtor de Tupandi perdeu pocilga e 450 porcos Produtor de Tupandi perdeu pocilga e 450 porcos | Foto: Prefeitura de Tupandi / Divulgação / CP

As cadeias produtivas de produção animal e vegetal estão em choque. “Não é por nada que se fala que estamos diante da maior catástrofe climática, alguns falam do Brasil, outros com certeza do Rio Grande do Sul”, destaca o professor da Unijuí, Argemiro Brum. Uma certeza em meio ao pandemônio das cheias é que os pequenos e médios produtores são os mais atingidos e que a crise econômica que flagela o setor primário tem sido uma constante, partindo da recessão de 2014 e 2016, passando pelos efeitos desastrosos da pandemia de Covid-19, pelo acúmulo de estiagem e, mais recentemente, de enchentes. “As empresas do agronegócio estão com enormes dificuldades. Retomar laticínios, frigoríficos e cooperativas que foram atingidas, com perdas que estamos enfrentando e assistindo, não é simples de ser feito”, diz o economista.

O professor estima que a retomada, se houver uma retomada adequada e não houver percalços com novos problemas e intempéries, poderá se alongar por alguns anos. “Não podemos baixar os braços, mas o quadro é bastante crítico”, ressalta. Brum lembra que a agricultura poderia ter engrossado ainda maus seus prejuízos caso as chuvas tivessem chegado ao Rio Grande do Sul com um mês de antecedência. “Daria para multiplicar por dois os prejuízos no setor primário, principalmente nas áreas dos grãos” observa, ao lembrar que, se assim tivesse sido, o extremo climático pegaria em cheio as lavouras de soja sem ter praticamente colhido quase nada, porque estava atrasada, e em cheio da produção de milho.
O professor Argemiro Brum salienta ainda que, se partir da lógica de que são necessários R$ 20 bilhões para a reconstrução, o poder público, principalmente o federal, terá de criar linhas de crédito especiais e emergenciais muito robustas para atendimento da demanda. “Não adianta só aquelas linhas de créditos tradicionais que estamos acostumados a ouvir”, adverte. “Fala-se muito, mas pratica-se pouco. Por enquanto, tem muito discurso, mas até agora não vi ações concretas suficientes dos governos, principalmente o federal, em favor do setor primário gaúcho”, critica.
Brum afirma que o Estado deve oferecer crédito subsidiado, até a fundo perdido, sob risco de o produtor não ter renda para quitar seus financiamentos, considerando que resultados na produção ainda vão demorar meses após a reconstrução. “Não vi nada que me diga que estamos no caminho adequado. Por isso, tenho uma grande preocupação à medida que muitos desses produtores, se não tiverem crédito público mais subsidiado, eles não vão ter de onde tirar. A maioria não tem mais poupança própria, pelo contrário, tinha dívidas, e vai ter de assumir novas dívidas, mesmo que venham a ser mais favoráveis. Isso vai complicar muito o setor,” analisa.

O Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) anunciou na semana passada a criação de um fundo garantidor para avalizar operações de crédito rural aos produtores gaúchos, mas ainda sem maiores detalhes. O titular da pasta, Carlos Fávaro instalou um gabinete itinerante do Mapa no município de Santa Cruz do Sul, para fazer diagnósticos e conduzir a reconstrução do agronegócio gaúcho.

O ministro recebeu uma pauta construída por 10 entidades do setor no Rio Grande do Sul com reivindicações como a anistia das operações de crédito rural de custeio e investimento do Pronaf e Pronamp com vencimento até dezembro de 2025. Sem nenhum anúncio governamental de impacto, o segmento ainda acompanha a destinação de R$ 7,2 bilhões para subvenção e aquisição de arroz importado, sob argumento de conter especulação de preços no país. O governo federal insiste que a importação de até 1 milhão de toneladas de grãos seria necessária para a regulação de oferta e demanda do alimento, diante das perdas nas lavouras, e para evitar o aumento de preço do produto ao consumidor final.

Correio do Povo

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