Mesmo com os próprios lares alagados, voluntários da comunidade atuam sozinhos na organização de abrigos e doações, até mesmo na vigilância das casas contra saques
Os moradores da zona norte de Porto Alegre precisaram se unir para acolher uns aos outros após o transbordamento do dique do Arroio Feijó, que causou alagamentos em diversas regiões a partir da madrugada de sábado, dia 4, atingindo bairros como Sarandi, Rubem Berta e Santa Rosa de Lima.
A casa onde Hallana da Rosa Vitoria morava com a mãe e o padrasto ficou com água até o teto. Ela conta que o resgate do padrasto, no sábado de manhã, foi angustiante. Ela e a mãe, Maria Heloísa da Rosa, já haviam deixado a casa na quinta-feira à noite e estavam abrigadas na biblioteca comunitária Aninha Peixoto, onde Maria Heloísa é coordenadora.
“No sábado de manhã a gente ligava de hora em hora para saber como ele estava. Das 6h até às 8h, ele estava com água na cintura. Quando chegou a ajuda, ele estava com água no pescoço. Ele teve que sair nadando de casa, literalmente. Daí ele ficou muito preocupado que ele não tinha conseguido fechar o portão. E eu não tinha entendido assim, como que ele não conseguiu fechar o portão, né? Só que depois eu entendi que a água tinha passado por cima do nosso portão, ele teve que sair nadando pelo portão”, contou Hallana, que é publicitária e mestranda na Unisinos.
O Sarandi foi o bairro mais atingido por alagamentos na Capital, atrás apenas do Menino Deus e da vila Farrapos. Somente no Sarandi, foram 26.042 pessoas afetadas. Além de terem sido avisados somente no domingo à tarde para deixarem suas casas, após a água já ter tomado conta de diversas ruas e casas, os moradores contam que seguem desassistidos após a enchente.
Saques se tornaram comuns nas casas alagadas. Por conta disso, os moradores têm se organizado para vigiar as próprias casas. Segundo eles, não há rondas noturnas nas regiões alagadas.
Durante o cenário de crise, muitos desabrigados dos bairros Sarandi e Rubem Berta foram para abrigos comunitários criados às pressas no bairro Santa Rosa de Lima, ou para casas de famílias. Por lá, a articulação de voluntários da associação de moradores está sendo fundamental para garantir assistência básica às pessoas desalojadas.
Rede solidária surge com o trabalho dos próprios moradores
Maria Angélica Machado, presidente da Associação de Moradores do bairro Santa Rosa de Lima, conta com aflição e lágrimas que muitos moradores chegam pedindo o básico, como roupas e comida. Segundo ela, quem está fazendo a diferença no trabalho voluntário são os próprios moradores.
“Chego em casa, não tenho nem como tomar banho direito. No outro dia, às vezes nem troco de roupa e já venho para cá continuar ajudando”, disse Machado.
“Não está certo nós estarmos aqui trabalhando sendo que nossa casa está lá com água pelo teto. Nós também somos atingidos. Deveríamos estar sendo protegidos pelo poder público e não trabalhando”, criticou Hallana da Rosa Vitoria, publicitária e mestranda na Unisinos.
Para aplacar a necessidade das centenas de desabrigados, a biblioteca comunitária Aninha Peixoto foi transformada em um centro de recebimento e distribuição de marmitas e outros materiais de primeira necessidade, chegando a distribuir 700 refeições por dia.
A associação de moradores abre o local todo dia das 9h às 00h para atender a comunidade e segue recebendo voluntários e doações.
Segundo o secretário de Governança Local e Coordenação Política do município, Cássio Trogildo, a prefeitura de Porto Alegre está buscando atender todas as regiões do município com distribuição de cestas básicas e doações para os abrigos temporários cadastrados na prefeitura. Somente na última quarta-feira, 7 mil cestas básicas foram doadas na cidade. De acordo com a prefeitura, região norte foi contemplada com doações na última segunda-feira, 10, e estaria na rota de doações para os próximos dias.
Durante a reportagem do Correio do Povo, um caminhão da prefeitura chegou ao abrigo com doações de 50 cobertores. Segundo o agente municipal, a equipe estava fazendo uma ronda para averiguar a situação das zonas norte e sul da cidade.
"Na sexta-feira a gente pegou uma região mais ao norte, tentou fazer cada dia uma região, então não ficou nunca concentrado numa região só. A palavra que eu tenho é que as pessoas continuem ajudando com doações de alimentos não perecíveis e materiais de primeira necessidade”, disse Trogildo.
Pessoas que não estão em abrigos e desejam receber donativos terão que fazer um cadastro enviando mensagem para o número de WhatsApp (51) 3433-0156 e escolher opção 3.
“Santa Rosa é a última da zona norte e eu tenho 100 mil moradores aqui em volta. A rua em frente encheu? O Sarandi encheu? O pessoal subiu para cá. O colégio Santa Rosa está com o pessoal desabrigado, a igreja Santa Rosa também, e quem está cuidando de nós é nós, é a comunidade”, contextualiza Machado.
Muitas doações começaram a chegar graças ao esforço dos voluntários da própria comunidade.
“Eu comecei a divulgar no meu Instagram e daí meus amigos começaram a compartilhar e mandar mensagem e a se articular. E daí começou o movimento. Agora a gente tá desse tamanho graças à minha rede de contatos, principalmente, mas muito também da população em geral que vem se engajando e nos ajudando também”, contou Hallana.
“Estamos sem água há mais de uma semana, potável. O caminhão-pipa vem nos oferecer, mas eu não tenho onde botar. Não tenho logística para eles botarem. O colégio recebeu, mas nós não. A luz tem faltado muito, né? Gás de cozinha, botijão, sumiu das revendedoras. A água teve dois dias que nem os mercados para comprar não tinha água, por isso a gente começou a pedir”, contou Maria Angélica Machado.
Escola estadual vira abrigo temporário e tem até enfermaria improvisada
A Escola Estadual de Ensino Médio Santa Rosa foi transformada em um grande abrigo comunitário, com direito a enfermaria, cozinha, centro de triagem de doações e um canil no ginásio coberto do colégio. No prédio de dois pisos estão abrigadas 110 pessoas, além de 43 cachorros e cerca de 10 gatos. As pessoas se revezam para tomar banho nos vestiários da escola.
Até mesmo uma enfermaria improvisada, com medicações doadas ou compradas com receita pelos próprios voluntários, foi montada no local. Voluntários da saúde, como psicólogos, médicos e enfermeiros, ajudam a atender os abrigados. De acordo com a voluntária Tayana Oliveira, que é médica internista e mora no bairro Petrópolis, a maior parte dos casos que a pequena enfermaria está tratando são pessoas com diarreia.
O abrigo também tem diabéticos, hipertensos, asmáticos e pessoas com questões psiquiátricas que vem sendo atendidos pelos voluntários da saúde. No momento, a maior necessidade é de voluntários da área da psiquiatria para atender casos isolados.
“Da área da saúde agora, todos os funcionários são voluntários independentes, a gente não é funcionário público, nem da função primária, nem nada disso. Cada um é de um lugar, a gente trabalha em um hospital, eu sou internista, a gente tem uma cirurgiã ali, a gente já teve anestesista aqui atendendo, o pessoal todo arregaça a manga pra vir aqui pra ajudar”, contou Oliveira.
Segundo Fátima Cardoso, membro da associação de moradores e coordenadora do abrigo, a escola tem capacidade para receber 140 pessoas. Outras 39 pessoas estão alojadas em uma igreja próxima.
“Todas as doações recolhidas na escola atendem não só os abrigos do bairro, mas também a lista de moradores atingidos pelas enchentes e casas que recebem pessoas desabrigadas. Tem casas com 10, 15 pessoas”, contou Fátima Cardoso.
“Os órgãos públicos eles vêm aqui e querem relatório. E o que mais está vindo aqui são movimentos, ONGs”, ressaltou Cardoso.
Correio do Povo
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