Somente em Porto Alegre, maio registra 63% a mais de possíveis casos notificados do que todo o ano de 2023
Bairro Humaitá, na zona Norte de Porto Alegre, foi um dos locais que mais sofreu com os alagamentosA dona de casa Ana Letícia Rodrigues Ribeiro, moradora de Eldorado do Sul, na região metropolitana, viveu “dias horríveis” com a leptospirose, segundo conta ela própria. Com um filho de três anos diagnosticado com transtorno do espectro autista (TEA), ela sofreu com as enchentes, assim como milhares de moradores, e ainda sofreu as dores da doença transmitida pela bactéria Leptospira, e cujos casos vêm crescendo em um ritmo alarmante no Rio Grande do Sul. “Nunca tinha entrado água na minha casa, e na manhã do dia 3 de maio, ela invadiu. Procurei tirar meu filho, minha mãe, minha irmã e meus animais, e quando saí, a água estava na altura da perna. Quando voltei, estava na altura do joelho”, contou ela.
Como forma de prevenção, Ana vestiu botas de borracha, só que, com a subida repentina do curso, a água ingressou no calçado, e assim ela permaneceu por horas, carregando o filho no colo. Dali, eles conseguiram ser retirados, mas Ana conta que a família foi levada para um prédio abandonado, e lá ficou por dois dias sem água ou comida. No terceiro dia, já alimentada, teve diarreia. Após receber soro caseiro da sogra, sua saúde melhorou um pouco, porém ela relatou dores nos pés, que incharam, e panturrilhas, e, após, bolinhas de pus. “Primeiro, achei que fosse de algo que eu havia comido, depois, que fosse da água mesmo.” Contou que se sentia cansada e passou a urinar sangue.
Resgatada no sexto dia, Ana foi encaminhada para Porto Alegre pelo meio do Guaíba, e quando chegou à Capital, estava novamente com as botas repletas de água. Foi para a casa de conhecidos no bairro Partenon e, ainda relatando dores, vomitando e com palidez, foi a um posto de saúde. Encaminhada com urgência à uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), Ana no começo optou por não ir, mas, depois, foi ao local, fez exame e recebeu o diagnóstico de leptospirose. Recebeu novamente soro e, se sentindo melhor, ganhou receita de antibiótico e foi para casa.
Dias depois, voltou à UPA se sentindo mal e ficou dois dias internada. Fez novo exame, que não acusou piora na condição. “Graças a Deus, fui para casa continuar o tratamento de sete dias. Depois, melhorei”, contou ela, que está em casa novamente ao lado do filho. A história de Ana é um exemplo da profusão de casos de leptospirose visto nos últimos dias no Rio Grande do Sul, e que, de acordo com especialistas, deve seguir subindo, à medida que começa a limpeza dos locais antes atingidos pela água contaminada, e que agora contêm lama, onde o vetor também permanece.
"Não podemos deixar passar casos suspeitos”
Dados da Secretaria Estadual da Saúde (SES) da última segunda-feira mostram que o estado tem, somente em maio, cinco mortes pela doença, outras nove em investigação, e 1.588 casos notificados, dos quais 124, ou pouco mais de 7%, foram confirmados. Em sete dias, as notificações semanais subiram 126%, e em 21 dias, mais de 4.000%, de 20 na primeira semana do mês para 839. Porto Alegre lidera as notificações, com 685, nove vezes mais do que Canoas, segundo colocado, com 76. Em todo o ano passado, comenta a médica responsável pela vigilância da leptospirose na Equipe de Vigilância de Doenças Transmissíveis da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre (EVDT/SMS), Rosa Teixeira Gomes, a Capital teve 418 notificações da doença, sendo 283 em moradores da cidade e 135 de fora do município. Ou seja, em menos de um mês em 2024, já há 63% a mais do que todo 2023.
“Não podemos deixar passar casos suspeitos. Procuramos trabalhar muito com a conscientização das rede de saúde para que não deixe de notificar os pacientes suspeitos, incluindo na rede privada”, comenta Rosa, acrescentando que, quanto mais precocemente a doença for tratada, melhor. “Colocar uma barreira entre o corpo e o que pode estar contaminado é uma boa maneira de iniciar, especialmente se você vai limpar uma residência onde há muita concentração de lama”, afirmou ela. A EVDT emitiu nota técnica no começo do mês, afirmando que é preciso ter atenção aos pacientes que relataram terem manipulado água ou esgoto contaminado 30 dias antes da data de início dos sintomas, com a doença geralmente sendo detectada por exames por volta de sete dias após este contato.
Reforço na testagem no estado
Na segunda-feira, a SES também anunciou um reforço na testagem, hoje feito utilizando dois métodos: o teste de biologia molecular (RT-PCR) e o diagnóstico sorológico. A leptospirose é uma doença não-crônica e endêmica, e dada a situação de calamidade atual, houve alterações na forma de lidar com ela, o que também pode ter contribuído com o aumento de notificações. "Todos os profissionais de saúde não devem aguardar uma confirmação diagnóstica, e em se enquadrando na possibilidade de ser um caso de leptospirose, tratar como se fosse”, afirma a diretora do Centro Estadual de Vigilância em Saúde (CEVS), Tani Ranieri.
“Fizemos também uma força-tarefa para poder rodar o total de amostras que chegam até ao Laboratório Central do Estado (Lacen), e buscando descentralizar esta técnica sorológica para laboratórios regionais, para que possamos dar mais agilidade neste diagnóstico e conhecer melhor este evento”, acrescenta. Com os sistemas do estado fora do ar nos primeiros dias da enchente, a Saúde recorreu a formulários alternativos, preenchidos pelos municípios, a fim de saber com mais precisão a extensão do problema.
A coordenadora do Centro de Controle de Infecções Hospitalares do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (CCIH/HCPA), a médica Caroline Deutschendorf, afirma que, nesta semana, havia cinco pacientes internados com a suspeita da doença no local, algo que raramente ocorre. Conforme ela, ao contrário do que preconiza o senso comum, de que todos os casos da leptospirose evoluem para internações, na realidade o número é de apenas 15%, e Rosa comenta que, destes, 10% morrem.
“A internação quase sempre ocorre quando há a chamada síndrome de Weil, quando a pessoa fica com a pele amarelada, tem comprometimento do rim e há hemorragia no pulmão. A melhor forma de prevenir é mesmo o uso de botas de plástico, luvas grossas e evitar o contato da lama diretamente com a pele, especialmente se houver ferimentos”, afirma Caroline. O perigo, de acordo com ela, ocorre não apenas nas zonas urbanas, mas também na área rural. “O rato, o grande vetor da doença, pode estar invisível em qualquer ambiente”, acrescenta a médica do HCPA. A eficácia da prevenção com antibióticos ainda está sendo estudada, porém, durante o tratamento da doença, ele é indicado imediatamente assim que houver suspeita.
Área central de Porto Alegre suscetível à contaminação
Diante deste aumento, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) conduziu estudos com a água da enchente para analisar sua qualidade e obter informações sobre em quais locais a população estava mais exposta aos riscos de doenças como leptospirose, cólera, esquistossomose, febre tifoide, toxoplasmose e até Covid-19. “Com base nisso, buscamos alertar a população local a ter cuidados com sintomas iniciais e procurarem de imediato um serviço de saúde a fim de evitar surtos de doenças. Fizemos nova coleta semana passada e faremos mais nas próximas semanas para saber se a contaminação diminuiu, se foi diluída ou levada para a Lagoa dos Patos, ou continua lá”, afirma o professor Salatiel Wohlmuth da Silva, do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH). Os resultados, obtidos em parceria com o Instituto de Ciências Básicas da Saúde (ICBS) da universidade, mostram que onde a inundação alcançou na região central de Porto Alegre, em áreas como em ruas do Centro Histórico, Cidade Baixa, Azenha e Menino Deus, apresentaram um alto índice de contaminação.
Correio do Povo
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