A chegada dos colonizadores alemães e sua história é contada em romances ao longo do tempo
Parte da história e da formação de comunidades e culturas no Rio Grande do Sul está relacionada com a literatura. Romances, por exemplo, mesmo sendo obras de ficção, reconstroem momentos como os da chegada dos imigrantes alemães ao Estado. Os primeiros desembarcaram por aqui em 25 de julho de 1824. São publicações mostrando a herança de uma cultura que deixou marcas na agropecuária, na indústria, no artesanato e na culinária, entre outros núcleos.
Percebe essas pecualiaridades quem leu, por exemplo, "A Ferro e Fogo":
"Na Brumosa manhã do dia seguinte, domingo, o seleiro Schneider e os outros trataram de voltar aos casebres da extinta Real Feitoria do Linho Cânhamo, no Faxinal da Courita, onde há mais de três meses aguardavam que o governo cumprisse com o que lhes fora prometido na Alemanha: uma colônia de terras de papel passado, alguma ferramenta, sementes e animais domésticos. Enquanto não vinha o pedaço de chão, tratavam de tirar da terra provisória algo que pudesse ser somado ao charque e às aguadas abóboras de Estância Velha, um reduto onde o gado xucro estava sendo agrupado e as últimas sementes podres viravam adubo". Esse trecho do volume 1 de "A Ferro e Fogo", chamado "Tempo de Solidão", traz para o leitor as experiências vividas pelos primeiros germânicos que aqui se estabeleceram.
“A Ferro e Fogo”, um romance realista, foi escrito por Josué Guimarães durante seu exílio em Portugal em razão do golpe militar que ocorreu no Brasil em 1964. "Tempo de Solidão, o primeiro volume de "A Ferro e Fogo", situa a história entre 1824 e 1835. E o segundo, "Tempo de Guerra", entre 1835 e 1870.
No artigo intitulado "A Ferro e Fogo, o Romance da Imigração e Colonização", a autora Ivânia Campigotto Aquino, professora da Universidade de Passo Fundo (UPF), enfatiza que a obra é amplamente reconhecida pela crítica como algo que constrói "uma verdadeira saga dos alemães que iniciaram o processo de colonização das terras gaúchas". O trabalho foi apresentado no IV Congresso Internacional das Linguagens na URI em Erechim. "Não temos outra narração híbrida – literatura e história – da participação da etnia alemã na formação do Rio Grande do Sul", afirma na publicação a autora, que é professora doutora do Programa de Pós-Graduação em Letras da UPF.
Muitas são as obras sobre imigração alemã no Brasil que a literatura reúne. Algumas delas são "A Divina Pastora", de Caldre e Fião, "Canaã", de Graça Aranha, "A História de Walachai", de João Benno Wendling, e "Luís Bugre: o Indígena Diante dos Imigrantes Alemães", de Fidélis Dalcin Barbosa. Estes são alguns dos títulos lembrados pela professora Zuleica Kraemer, graduada em Letras Português/Alemão pela Universidade Federal do RS (Ufrgs), especialista em Literatura Brasileira, mestre em Literatura Comparada e doutoranda em igual área na mesma universidade. Zuleica também é coordenadora de Língua e Cultura Alemã no Colégio Província de São Pedro em Porto Alegre.
O Brasil dos processos coloniais e imigratórios
"Não é possível refletir e compreender o Brasil de hoje sem levar em consideração todos os processos coloniais e imigratórios que o compõem. Um desses processos, iniciado com força em 1824, em que o País tornava-se independente de Portugal, foi o de imigrantes alemães que se deslocaram principalmente para o Sul do País. A origem desses imigrantes estava do outro lado do oceano, na maior parte das vezes vindos em uma viagem de condições precárias e sem qualquer ideia do que os esperava na terra prometida ou no eldorado. A emigração de alemães era basicamente de famílias, mas havia também solteiros e uniões que se formavam nos navios. Vinham carregando consigo uma religião, uma língua, uma cultura e também saudades. Vinham para outras paisagens, outro clima, outra forma de sobreviver", escreve a professora em um de seus artigos que discutem a importância de "A Ferro e Fogo" na literatura como forma de retratar a colonização alemã.
O trabalho foi publicado na Contingentia, Revista do Setor de Alemão da Ufrgs, no segundo semestre de 2020. "A narrativa ficcional tem se encarregado, de forma exemplar, de ilustrar a forma como se deu e também como se seguiu o processo de imigração e instalação dos alemães na nova terra, no Brasil. Na literatura, a compreensão do processo imigratório alemão torna-se, de certo modo, bastante fidedigno ao que de fato se deu na história desde 1824", assinala a professora.
"No processo imigratório, há um primeiro momento em que nada está preparado, de modo que os imigrantes alemães chegam e necessitam abrir caminho em meio à mata, construir casas, trabalhar arduamente com a terra e viver ou isolados ou sem conseguir usar a comunicação verbal por línguas dessemelhantes", observa, ressaltando que "A Ferro e Fogo" é a obra que "aborda isso muito bem".
A narrativa se passa a partir de 1825, relembra a autora, e “atravessa um momento histórico muito relevante no cenário sul-brasileiro, a Guerra da Cisplatina, a qual aconteceu entre 1825 e 1828 em um lugar conhecido então como Província de São Pedro". A Guerra Cisplatina ocorreu entre o Brasil e as Províncias do Rio da Prata, e a disputa se deu pela posse do que hoje conhecemos como o Uruguai", complementa Zuleica.
A professora ainda afirma que muitos são os pontos que permeiam possíveis análises a partir da leitura. "Existia um diálogo necessário entre os sujeitos germânicos estabelecidos em terras brasileiras, mas em muitos casos o diálogo também era bastante complicado, não somente com os 'brasileiros", mas entre os próprios imigrantes devido às muitas diferenças que traziam de sua terra. A mudança cultural era bastante grande da Europa para o Brasil, passando pela alimentação, vestuário e arquitetura, e muitos deixaram sua terra devido a perseguições e conflitos bélicos. No entanto, aqui muitos já foram convocados e envolvidos em guerras e conflitos, sendo que em, muitos casos, não compreendiam a língua em que as ordens eram dadas", observa. "Esses são apenas alguns elementos que instigam uma investigação”, enfatiza ela.
A força da figura feminina imigrante
Além de publicar artigos sobre imigração, a professora ampliou seu trabalho a partir de uma dissertação de mestrado concluída em 2022 e que tratou sobre o mesmo tema. "Os Imigrantes Alemães, a Política Brasileira e a Mulher nas Obras 'A Ferro e Fogo I. Tempo de Solidão' e 'Bárbaros no Paraíso'", sendo este último título de autoria de Pedro Stiehl. No caso específico da análise da figura feminina, a autora da dissertação dá ênfase à força da mulher imigrante, sua determinação e disciplina na educação dos filhos e na condução da rotina da família, além do enfrentamento às adversidades.
Quanto ao cenário político, detalha a pesquisadora, de 1761 até 1821, ocorreram várias demarcações entre Portugal e Espanha em relação ao território no sul do Brasil. Os lusos-brasileiros já criavam um sentimento de patriotismo local. Do Rio de Janeiro vinha a política expansionista de Dom João VI e este se aproveitou do sitiamento de Artigas em Montevidéu para reincorporar a Província da Cisplatina ao território brasileiro.
Três anos depois destes episódios, chegavam os primeiros alemães a São Leopoldo e em 1825 começava a segunda parte da Guerra Cisplatina, reaberta pelo coronel uruguaio Lavalleja, ajudado pelo governo de Buenos Aires. A professora enfatiza na dissertação que esta guerra é determinante para toda a narrativa de "A Ferro e Fogo I" e que as obras selecionadas para o projeto são consideradas romances históricos por trazerem em suas narrativas fatos e personagens que existiram na vida real, mas com suas histórias narradas posteriormente aos acontecimentos.
Zuleica ainda faz reflexões após estes anos de pesquisa:
"Foi na literatura que tive o maior contato com a história da imigração alemã no Brasil", ressalta. "É na literatura que podemos entender como se deu o estabelecimento dos primeiros imigrantes alemães no Brasil, como foi a relação destes com indígenas e negros, principalmente, como foi a relação deles com a língua, mesmo depois de muitos anos de sua chegada ao Brasil, como foi a relação com a política brasileira, na qual muitas vezes eles eram inseridos sem nem ter conhecimento do que se passava", relata.
A professora lembra também o envolvimento dos imigrantes alemães e seus descendentes em conflitos no Brasil a partir da obra do estudioso Jean Roche, denominada "A Colonização Alemã e o Rio Grande do Sul", que considera de grande relevância. "Uma vez mais concentraram-se no sul do Rio Grande as tropas brasileiras, que compreendiam batalhões de mercenários alemães e mesmo unidades de 'voluntários alemães', recrutados na colônia de São Leopoldo, recentemente fundada. Uma vez mais, o fluxo e o refluxo dos exércitos inimigos varreram o Rio Grande do Sul", destaca Roche, citado pela professora Zuleica em sua dissertação.
Os alemães na Guerra dos Farrapos
A pesquisadora também ressalta que, em "A Ferro e Fogo II. Tempo de Guerra", há o envolvimento dos imigrantes alemães no conflito dos Farrapos. Um dos personagens, Gründling, depois de ter declinado nos negócios, decide se dedicar à luta. Outro personagem é Philipp, filho mais velho de Catarina, ela uma das figuras centrais do livro e que dá destaque ao papel da mulher no cenário da imigração.
"Partindo do preceito de que os imigrantes alemães que saíram da Europa vieram ao Brasil com várias promessas de vida nova, é compreensível que não imaginassem que eventos tão difíceis e decisivos como a participação em uma guerra pudessem fazer parte da nova vida, ainda mais logo no início", analisa Zuleica.
"Nestas palavras, não é desconsiderado o fato de que no seu país de origem a situação daquelas pessoas era bastante ruim. É sempre importante lembrar que muitas pessoas ao longo da história têm se deslocado não por vontade própria, mas sim por obrigação e necessidades decorrentes das mais diversas situações de instabilidade", acrescenta, concluindo: "Em se tratando dos imigrantes alemães vindos ao Brasil desde o século XIX, pode-se compreender como é bastante complexa a assimilação da nova pátria e da nova cultura".
Correio do Povo
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