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quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Conheça a história de oito grandes inundações em Porto Alegre antes de 1941

 Suplemento do Correio do Povo relembra fatos históricos relacionados às cheias do Guaíba


Por Jonathas Costa

Um dos capítulos mais conhecidos da história de Porto Alegre e, em tempos de cheia do Guaíba, fartamente lembrado, é a grande enchente de 1941. Uma tragédia de proporções históricas e até os dias de hoje jamais repetida. 

O episódio, contudo, não se tratou de fato inédito na memória da capital gaúcha. Registros históricos resgatados pelo Correio do Povo testemunham pelo menos outras oito grandes enchentes que marcaram a história de Porto Alegre, todas anteriores a 1941. 

A primeira delas remonta do século XIX. Em uma época onde a topografia da cidade era completamente diferente, os danos eram potencializados pelo avanço das águas do Arroio Dilúvio, então chamado de Riachinho. Nos relatos da época, também detalhes sobre o drama das cheias no Vale do Taquari. Foi em uma enchente, inclusive, que a histórica ponte da Azenha foi destruída, em julho de 1897.

 Veja também: Entenda como funciona o sistema de diques

Nos anos que se seguiram, a repetição dos episódios acompanhavam outros grandes problemas da cidade. Em 1905, por exemplo, as águas do Guaíba avançaram em direção a uma Porto Alegre já assolada pela epidemia da varíola. Em 1912, as cheias interromperam o trânsito de carroças responsáveis pela limpeza e as águas acabaram levando dejetos fecais para a área central da cidade.

O Correio do Povo resgata a seguir a íntegra do suplemento “As Grandes Enchentes de Porto Alegre”, escrito pelo historiador e jornalista Sérgio da Costa Franco e publicado pelo jornal quatro décadas atrás, em setembro de 1983. Para assegurar o teor fidedigno do que foi editado, os trechos a seguir estão transcritos na íntegra, sem alterações, e preservam a grafia da época. 

Confira a seguir ou clique sobre o título para ir diretamente para o ano desejado:

- 1873: outubro
- 1897: junho
- 1905: agosto
- 1912: de maio a setembro
- 1914: setembro
- 1926: de 25 de setembro a 2 de outubro
- 1928: duas enchentes
- 1936: de 1º a 14 de outubro
- 1941: maio, a maior


Suplemento do Correio do Povo publicado em 17 de setembro de 1983

As Grandes Enchentes de Porto Alegre

Por Sérgio da Costa Franco

A historiografia não usa tratar de calamidades climáticas e, por isso mesmo, as comunidades perdem com muita facilidade a memória dos grandes desastres do passado, pagando por esse esquecimento as vezes um preço alto.

As enchentes do Guaíba e seus arroios tributários são acontecimentos sempre presentes, de tempo em tempo, na evolução da cidade de Porto Alegre. Mesmo assim não se conhece crônica sistemática dessas ocorrências tão danosas.

Já o francês Arsene Isabelle, em seu livro de viagens, alude a uma cheia em fins de 1833, que teria atingido as casas junto ao porto. Em artigo escrito em 1941, a propósito da grande cheia daquele ano, Walter Spalding referiu outras, em 1842, 1847 e 1850, de que achou rastro na documentação municipal.

Na tentativa de evocar as mais calamitosas enchentes que assolaram a capital gaúcha, começaremos pela primeira que se pode ilustrar e documentar com abundância — a de 1873 — prosseguindo, a partir daí, com as que mais se assinalaram pelos reflexos provocados na vida porto-alegrense. E vamos deter-nos em 1941, a maior de todas, porque a partir de então, graças a diversas obras de engenharia (a canalização do Arroio Dilúvio, a construção do dique protetor junto ao Gravataí e ao Guaíba, e o sistema de barragens do Jacuí e Taquari), nunca mais se repetiram as desastrosas inundações do passado. tudo o que nos acontece agora é pagar algum tributo ao entupimento dos esgotos pluviais, por ocasião das fortes chuvaradas.


Primeira garagem e oficina da Carris. Prédio construído em 1873 na esquina da Av. João Pessoa com Sarmento Leite. Imagem obtida no final do século XIX. Não há imagens da enchente, mas fotografia do século XIX mostra o primeiro prédio da Carris, construído em 1873 | Foto: CP Memória

1873 - Outubro

“E não acredite a gente em feitiçarias! Há bons seis meses que o Cristo de Ferrabraz nos anunciava o dilúvio e nós levamos à mangar com o homem que falava com Deus por intermédio de sua santa eva” (De uma  crônica de A Reforma, em 12/10/1873, aludindo aos Mucker do Ferrabraz).

O jornal A Reforma começou a noticiar a inundação a partir de 5 de outubro, um domingo: “Desde sexta-feira que cai copiosíssima chuva, acompanhada de fortes trovoadas”. Já no sábado, a linha de bondes para o Menino Deus fora interrompida, porque a ponte sobre o Riacho estava coberta de água “até a madre do assoalho”. Aquém e além da ponte (trata-se da que existiu na entrada da atual Avenida Getúlio Vargas, dando passagem para o Menino Deus) as casas estavam invadidas de água e abandonadas pelos seus moradores. O presidente da Província mandara escaleres subirem o “Riachinho”, a fim de retirarem as famílias que o  quisessem. A estrada da Azenha estava nas mesmas condições. E o jornal revelava preocupação com a falta de notícias sobre os moradores das ilhas fronteiras: “Quase todos os anos as águas causam nas ilhas muitos estragos; e a enchente deste, que até chegou ao nosso riachinho (...) deve ter ali produzido maior inundação”.

A crer em “A Reforma”. de 8/10, a situação na véspera já seria de pânico: "A inundação toma proporções assustadoras e ameaça consequências funestas. Não há lembrança de enchente tamanha, que ainda não promete cessar, porque continua a chover, e a atmosfera conserva-se bastantemente carregada. (...) A água tem coberto diversos trapiches da rua 7 de Setembro, e diversos negociantes têm-se visto obrigados a mudarem os gêneros de seus armazéns. 

Todas as embocaduras das ruas que vão à praia estão tomadas pelas águas e a passagem se pratica em canoas. Ontem à noitinha, a água beijava os altos dos paredões da Doca, Alfândega, praça da Harmonia, Passagem, enfim todo o Litoral. O Caminho Novo está completamente inundado; do beco do Barbosa à diante, a rua é um lago que se estende pelas chácaras dentro. Os moradores dali estão todos mudando-se para a cidade; e os vapores e escaleres que os iam buscar, atracavam além da rua”. Para quem não sabe, rua da Passagem era a atual General Salustiano, Caminho Novo a Voluntários da Pátria e beco do Barbosa a rua Barros Cassal. 

No mesmo dia 8, pode-se ver pela ata da sessão da Câmara Municipal, sob a presidência do vereador Martins de Lima, que a inundação se tornara o grande problema da cidade. Comissão especial fora incumbida de recolher donativos para as vítimas da enchente e um certo número de vereadores haviam partido em visita às ilhas do delta numa canhoneira da Marinha, a fim de distribuir entre os moradores os mantimentos  coletados. A propósito, a mesma canhoneira, a “Greenhalg”, segundo se lê em notícia de A Reforma andou passando dificuldades com a correnteza, na altura da ilha da Pintada.

O mesmo jornal, no dia 9 de outubro, registrava em suas colunas: “A enchente cresceu alguma coisa de anteontem; mas conservou-se ontem durante todo o dia, na mesma altura. À água tem continuado a invadir as chácaras do Caminho Novo, estendendo-se até os fundos da rua da Floresta, e o mesmo sucede quanto às da praia do Riacho, onde a água fez junção com as do arroio da Cascata, e inundaram completamente a estrada do Menino Deus, por onde não passam agora os bondes, mas há canoas que a navegam. Além das casas do Caminho Novo, que mais têm sofrido são as da rua 7 de Setembro, entre as ruas do Comércio e General Câmara. Os armazéns ali estabelecidos transferiram os seus gêneros para outras casas ou depositaram-nos em diversas embarcações. As da Doca também têm suportado com rigor o transbordamento
das águas”.

Nos dias subsequentes, o noticiário refere que a enchente na Capital começou a decrescer. Mas surgiam relatos procedentes de outras cidades: em Taquari, o rio tinha subido a uma altura descomunal, arrastando consigo mais de 20 ranchos e casas; “de São Leopoldo, um distinto amigo nosso nos dá alguns pormenores em carta de 9: A cidade esteve a ponto de ser arrazada pela enchente; o rio cresceu tanto que metade da cidade ficou alagada” (A Reforma, 11/10/1873).

Por causa da enchente, enfim, a Câmara Municipal, que era de maioria liberal, terminou brigando com o presidente da Província, dr. João Pedro Carvalho de Morais, que era conservador. Tudo por causa de verbas para a limpeza do Litoral e remoção de animais mortos pela cheia, e intromissão do Presidente nas tarefas da Câmara.


Delegacia Fiscal 1895. Antigo prédio visto pela Rua 7 de Setembro Também não há registros fotográficos da enchente, mas imagem mostra como era o antigo prédio da delegacia fiscal em 1895, visto pela Rua 7 de Setembro | Foto: CP Memória

1897 - junho

“Quando a ponte de cantaria da Azenha, que era um colosso, um molhe, desmoronou como um castelo de cartas, muitos outros desastres teremos a lamentar se este mau tempo continuar” (crônica de Carnioli, pseudônimo de Aquiles Porto Alegre, no Jornal do Comércio de 23/06/1897).

O Correio do Povo de 22 de junho, em 1897, já anunciava que uma copiosa chuva vinha caindo desde a semana antecedente. O Prado Navegantes não tinha conseguido realizar suas carreiras, transferindo-as para o Prado Rio-Grandense, no Menino Deus, mas nem ali fora possível correr nenhum páreo. E nesse mesmo dia 22 de junho, crescendo torrencialmente as águas do Dilúvio, lá se tinha ido à matroca a ponte de pedras do caminho da Azenha, tão velha a cidade, construída ao tempo do governador José Marcelino de Figueiredo.

No dia 23/06, quarta-feira, o Correio sintetizava os fatos: “Em virtude de copiosa chuva que com raros  intervalos caiu desde sábado até ontem sobre esta capital, avolumaram-se extraordinariamente as águas do Guaíba e Riachinho, inundando vários pontos da cidade e causando muitos e consideráveis prejuízos materiais. Há muitos anos Porto Alegre não assiste a um espetáculo de tal natureza”. No Menino Deus, na Azenha e no Caminho Novo (a imprensa continuava chamando assim a Voluntários da Pátria) a inundação tinha tomado “proporções assustadoras” — expressão que foi repetida pelos jornais em todas as grandes cheias. E quanto à mais antiga relíquia da vila setecentista: "Aluiu pelos alicerces a velha ponte de 120 anos! As águas esboroaram-na bem ao meio, abrindo grandes brechas nos lados”.

Mas a de 1897 não foi a última enchente do século XIX. No ano seguinte, 1898, em seu relatório ao Conselho Municipal, o Intendente José Montaury queixou-se das “repetidas enchentes ocorridas durante o severo e prolongado inverno, e cujos efeitos calamitosos se refletiram em todo o Estado”. O prejuízo mais sério sofrido pela cidade foi a destruição de grande parte da então novíssima Estrada de Ferro do Riacho, construída com a finalidade de conduzir ao Cristal os cubos de matérias fecais do serviço de Asseio Público. A propósito, diria o Intendente Montaury em seu relatório de 15/05/1898: “Esta via férrea ficou completamente interrompida no último inverno e quase totalmente destruída no trecho compreendido entre a Estação do Riacho e o Asilo de Mendicidade”.

No quinto ano do século XX as inundações fizeram sua estréia, antecipando uma sequência que se repetiria, caráter calamitoso, pelo menos outras cinco vezes (não raro com “reprise” dentro do mesmo ano) até os meados do século.


Vista aérea de Porto Alegre década de 1900. A esquerda, a chaminé da Companhia Fiat Lux, nossa primeira usina geradora de energia elétrica, que estava localizada na esquina da rua João Manoel com 7 de Setembro. A direita a rua dos Andradas, ao fundo a praça da Alfandega. Na parte inferior da foto, onde está o prédio de 1 andar de esquina, encontra-se hoje a Casa de Cultura Mario Quintana. Imagem obtida do alto da igreja Nossa Senhora das Dores. Vista aérea mostra como era Porto Alegre na década de 1900, com a chaminé da Companhia Fiat Lux, primeira usina geradora de energia elétrica na rua Sete de Setembro, esquina com a rua João Manoel. Ao fundo a praça da Alfandega | Foto: CP Memória

1905 - agosto

“O rio cresceu, cresceu, um, dois, três palmos, um metro, dois metros, mais. Galgou as entradas das ruas, saltou barreiras dos cais e dos paredões, fez pressão sobre o Riachinho, seu irmão mais moço, e, num esforço titânico, derramou, emborcou a sua esplêndida e farta bacia aos pés da sua princesa” (crônica de Léo Pardo, Correio do Povo de 6 de agosto de 1905).

As chuvaradas começaram na madrugada de 3 de agosto, com forte trovoada: às 6 horas da manhã caiu uma faísca elétrica na torre em construção da Igreja do Menino Deus e, penetrando no templo, ali inutilizou um lustre de metal. Tratava-se da velha igreja, demolida para incorporar-se um edifício de apartamentos... Durante o dia (registra o Correio do Povo de 4 de agosto) alagaram-se as ruas da Margem, Venezianos, Demétrio Ribeiro, do Parque, Lopo Gonçalves. À noite, segundo uma notícia de última hora, a Polícia Municipal já se obrigava a socorro a flagelados que tinham suas casas invadidas nas ruas Boa Vista (Vicente da Fontoura de hoje), Marcílio Dias, 13 de Maio (atual Getúlio Vargas) nas imediações da ponte, São João (hoje Prof. Freitas de Castro).

Pelo Correio do Povo do dia imediato (5 de agosto), fica-se sabendo que o pessoal do 2º Posto (Azenha) passara à madrugada e a manhã de 4 a socorrer flagelados; a linha da estrada de ferro para Novo Hamburgo ficara interrompida; a praça dos Navegantes “transformada num lago” e inundadas igualmente as ruas Sertório e São José (hoje Frederico Mentz). Mas às 5 horas da tarde as águas começaram a baixar.

Como uma desgraça nunca vêm só, e a cidade já curtia uma epidemia de varíola, estando um barco, o “Horizonte”, ao largo do Guaíba para recolher em isolamento os variolosos, a cheia repetiu-se a contar do dia 11 de agosto, inundando-se outra vez a Várzea do Gravataí, Navegantes e a sofrida bacia do Riacho. O cronista Léo Pardo, em seu “Semanário” do domingo, 13, teve de repetir o domingo o tema do domingo anterior: “Cheia. A bacia do Guaíba de novo transborda. E não só ela: todo o seu estuário, intumescido, regurgitando, extravasa”.

E se mais não se falou em enchente foi por causa da varíola, que assustava muito mais.


 

1912 - de maio a setembro

O ano de 1912 apresenta a particularidade de ter produzido três enchentes sucessivas: a primeira em maio, a segunda em agosto, e a terceira em setembro. 

A de maio aconteceu em razão de chuvas caídas torrencialmente a partir de 18 daquele mês. E foi, sobretudo, uma crescente do Riacho, “invadindo por completo as ruas Livramento, Sant'Ana, Larga, São Francisco e São João”, segundo registraram os jornais.

O episódio de agosto se desenvolveu entre os dias 10 e 14, com a habitual sequência de desastres numa cidade que era então absolutamente desprotegida contra as cheias do Guaíba e seus arroios afluentes. O Correio do Povo do dia 11 de agosto, sob o título “Princípio de enchente”, já relatava: “Com as chuvas caídas nestes últimos dias, as águas do Guaíba têm crescido extraordinariamente ameaçando transbordar em alguns pontos como nos Navegantes e Praia de Belas. Nesse último lugar, as águas já invadiram o leito da Estrada de Ferro do Riacho. O Gravataí está fora do leito, achando-se a várzea do mesmo nome completamente alagada, ameaçando invadir o arrabalde de São João pela avenida Ceará e ruas adjacentes”. As outras zonas clássicas de alagamento achavam-se também inundadas: os Navegantes, o Campo da Redenção, “transformado em vários e longos lençóis d'água”, as zonas próximas ao Riachinho, no Partenon e Azenha.

O jornal do dia 14 de agosto ainda relatava um cortejo de prejuízos à cidade: paralisação das companhias de navegação fluvial que serviam os rios da bacia do Guaíba; perdas dos depósitos de madeira da rua Voluntários da Pátria; casas invadidas na Ilha da Pintada. Outrossim, os telegramas do Interior davam conta da severidade da cheia ao longo do rio Taquari: em General Osório, hoje Muçum, o rio subira 36 metros, alagando campos e casas.

Pelos dias sucessivos, caiu o nível das águas, até o fim de agosto. Porém, nos primeiros dias de setembro, a natureza repetiu sua dose de aguaceiros e inundações. Lê-se no Correio do Povo de 3 de setembro: “Durante todo o dia de anteontem choveu abundantemente nesta Capital. Pela madrugada de ontem, porém, a chuva cessou e desencadeou-se sobre a cidade forte vento sul”. (...) “O vento, com uma violência extraordinária, fez o Guaíba sair fora do seu leito, inundando diversos pontos e alagando vários arrabaldes”.

O vento sul, como se sabe, é um inimigo contumaz da cidade, sempre que o Guaíba estiver cheio. E a área mais exposta à sua fúria é a zona meridional, diretamente exposta à fúria dos ventos e das ondas. O Correio de 3 de setembro fala de cheia de “proporções assustadoras” na Praia de Belas: “A zona da cidade compreendida entre a Estação da Estrada de Ferro do Riacho (N. do A., próxima à velha Ponte de Pedra) até o Menino Deus, estava toda alagada e transformada em um prolongamento da bacia do Guaíba”. Por sua vez, o Areal da Baronesa ficara transformado “em um rio”, segundo o enfático redator. 

Com os grandes danos sofridos pela E.F. do Riacho, que interromperam seu tráfego, e com a interrupção dos caminhos para o Cristal, o serviço do Asseio Público entrou em colapso. Leia-se o Correio do Povo: “Como as carroças, segundo nos disseram seus condutores, não pudessem ir até o Cristal devido à cheia do Guaíba, o despejo das matérias fecais foi feito em plena Praia de Belas, à esquina da rua Botafogo. De maneira que as águas, em sua violência, invadiam casas carregando as matérias fecais”. E ainda se imagina que a poluição seja uma criação recente...

No centro, as águas se avizinharam da Praça da Alfândega: “Em frente à Praça Senador Florêncio, as águas chegaram a cobrir o aterro existente ao lado do edifício dos Correios e Telégrafos” (Correio do Povo de 3 de setembro).

Os jornais mal começavam, naquela época, a ilustrar suas edições com fotografias. Mas o número de 4 de setembro ostenta em sua primeira página quatro fotos da enchente, apanhadas na zona da Baronesa.


Vista dos trapiches do Cais em Porto Alegre no início do século XX Fotografia mostra como eram os trapiches na região do Cais no início do século XX | Foto: CP Memória

1914 - setembro

“A enchente atual é, em suma, a maior de quantas têm havido na capital” (Correio do Povo, 9/09/1914). 
“...enchente grande, só comparável à de 1873” (do Relatório do Intendente José Montaury, em 15/10/1914). 

A inundação começou no Dia da Pátria de 1914. A imprensa estava preocupada, antes de tudo, com a Guerra Européia, e, secundariamente, com as lutas do Contestado, cujas narrativas eram encimadas pelo título “Fanáticos”. De modo que o número de 8 de setembro se limita a mencionar a inundação da cidade numa pequena notícia, sem destaque: estava alagada a Praia de Belas, como de costume nas crescentes do lago, e a Voluntários da Pátria, desde a Avenida Pátria em diante. Todavia, a edição de 9 de setembro mudava de atitude. As coisas tinham ficado pretas, mais do que no ingrato ano de 1912: “No centro da cidade, a enchente limitou-se ao nivelamento das águas do Guaíba com os cais e trapiches. Na parte do cais já construído, à Praça Senador Florêncio, as águas já estão sobre o cais, ameaçando inundá-lo, caso as chuvas continuem. O edifício dos Correios e Telégrafos está ameaçado de invasão das águas pelos fundos que dão para o Guaíba. As obras do edifício da Alfândega paralisaram, devido à enchente. À rua 7 de Setembro, esquina das ruas General João Manoel e General Bento Martins, as águas transbordaram, impedindo o trânsito a pé por aqueles pontos”. (...) “À esquina da avenida 13 de Maio (hoje Getúlio Vargas) e rua Venâncio Aires, o Riacho, saindo do seu leito, invadiu aqueles pontos. Botes vão desde a ponte até à rua 17 de Junho”. (...) “À rua Voluntários da Pátria, desde a rua Hoffmann até a praça Navegantes, as águas cobriram toda a artéria. Os bondes da Cia. Força e Luz não passam da rua Hoffmann, tendo cessado o tráfego para as linhas de S. João e Navegantes”.

Em data de 11 de setembro, o Correio do Povo já anunciava que a enchente diminuíra em Porto Alegre, mas estava se estendendo “a quase todos os municípios do Estado”.


Enchente de 1926 em Porto Alegre, próximo à praça Garibaldi Fotografia publicada pelo Correio do Povo mostra a enchente de 1926, nas proximidades da praça Garibaldi, em Porto Alegre | Foto: CP Memória

1926 - de 25 de setembro a 2 de outubro

“É cousa já sabida, por experiência de muitos anos, que, aproximando-se o dia de S. Miguel, que transcorre a 29 de setembro, chove sempre torrencialmente nesta capital e nos municípios do interior”. (CP. 26/09/26).

A fama de São Miguel sempre foi a de santo chovedor. E isso explica a observação litúrgica-meteorológica do Correio do Povo. A enchente de 1926 coincidiu, à maravilha, com as chuvas de São Miguel, e isso justificou o apelo à tradição, que, aliás, nem sempre se confirma.

A cheia de 1926 prolongou-se por uma semana. Às chuvas torrenciais começaram a 24 de setembro e já no dia 25 havia alagamentos em todas as áreas baixas da cidade. Com o Guaíba 1,87 m acima do normal, inundaram-se as ilhas, os bairros de São João e Navegantes, a Várzea do Gravataí, o Areal da Baronesa, a llhota e toda a área banhada pelo arroio Dilúvio.

Rua Praia de Belas em 1926 tomada pelas águas do Guaíba Fotografia mostra a rua Praia de Belas tomada pelas águas em 1926 | Foto: CP Memória

O noticiário de 26 de setembro menciona expressamente como ruas alagadas a Primavera (que depois foi Rodrigues Alves e já não existe porque cedeu lugar a um dos segmentos da Avenida Ipiranga), a Laurindo e a Dona Teresa, que é hoje a Jacinto Gomes. O Correio do Povo de 28 de setembro, com abundante reportagem fotográfica, indicava cifras da pluviometria: de 1º até 27 de setembro haviam caído 390,5 mm de chuvas, segundo o Instituto Meteorológico. Mas as coisas não ficaram nisso, porque, nos dias imediatos, a situação
da cheia se agravou, elevando-se ainda mais o nível do rio e a área alagada. Segundo notícias de 30 de setembro, na véspera, mais de quarenta ruas da cidade se achavam completamente inundadas. As águas alcançaram o nível da amurada do cais do porto. E de 2 para 3 de outubro começaram a baixar, depois de oito dias de alagamentos nas áreas baixas da capital.


 

1928 - duas enchentes

Em 1928, grandes chuvaradas no mês de junho, entre 22 e 26, ofereceram a "avant premiere” da enchente que se apresentaria catastrófica em setembro. 

Conforme o Correio do Povo de 23 de julho, “as chuvas torrenciais que caíram sobre a cidade a partir da madrugada de ontem, e se prolongaram até as primeiras horas da noite, bastaram para que se repetisse um dos espetáculos comuns nos pródromos da estação invernosa — a inundação de alguns bairros de Porto Alegre”. Como sempre acontecia, o bairro de São João foi uma das vítimas, e outra a larga região banhada pelo arroio Dilúvio. “Uma das primeiras vias públicas onde se fizeram sentir as consequências da enchente foi a rua Dona Tereza (atual Jacinto Gomes), habitada em sua maior parte por famílias dotadas de poucos recursos. As 15 horas, as águas do Riacho começaram a penetrar assustadoramente nas casas. Uma hora depois, idêntico fato se registrava nas ruas São Luiz, São João e Arlindo, e na Ilhota, à Praça Garibaldi, na entrada do arrabalde Menino Deus”. Eram os árduos tempos anteriores à retificação e canalização do Dilúvio.

No dia 25 de junho, pela aparição do vento Sul, temeu-se que pudesse repetir-se uma nova enchente, idêntica talvez à de 1926”, dizia o Correio”, e o Guaíba começou a transbordar no bairro Navegantes, porém a melhora do tempo aliviou a situação.

Passou julho e passou agosto. Mas, em meados de setembro, viria outra enchente, que ao porto-alegrense de então pareceu uma das maiores que já tinha visto. O Guaíba se derramou sobre o centro da cidade, sobre as novas avenidas que lhe tinham sido conquistadas (a Mauá e a Júlio de Castilhos), superando em 20 centímetros a amurada do porto e alagando todas as ruas adjacentes, até a 7 de Setembro.

A partir de 16 de Setembro, os jornais tratam do assunto, com ampla reportagem. Lia-se a 18 de Setembro no Correio do Povo: “Calcula-se que umas cem quadras se encontram debaixo d'água e que 30.000 pessoas se viram obrigadas a abandonar seus lares”. E mais: “O Guaíba, transbordando no cais, alagou completamente as ruas a ele paralelas, e outras qua ali vão desembocar, a ponto de invadir a usina da Energia Elétrica, que se viu obrigada a restringir o fornecimento de luz e de energia”. Tratava-se ainda da antiga usina, situada na esquina das ruas Gen. João Manoel e Sete de Setembro. A do extremo da rua dos Andradas, que estava em construção, também foi alcançada pelas águas.

A reportagem do Correio do Povo saiu a inquirir moradores antigos e sentenciou: “Não há morador antigo em Porto Alegre que não ache a atual enchente uma das maiores até hoje registradas nesta capital”. Apenas foi respeitado o depoimento de um remanescente da cheia de 1873, o comerciante Joaquim Rache Vitello, o qual informou que, naquela inundação, as águas do rio tinham chegado à rua dos Andradas.

A circunstância de o cais ter sido largamente superado pelo nível das águas levou os repórteres a entrevistarem o Engº Rodolpho Ahrons, que fora o construtor do primeiro trecho do cais, sob o governo do dr. Carlos Barbosa. E o dr. Ahrons esclareceu que a Diretoria Fluvial, ao fazer o projeto, louvara-se pela variação das águas ocorrida em 1873, que teria sido de 2,80 m. Por isso, calculara a altura da amurada 3 metros acima do nível normal das águas. E provável que tanto a estimativa da enchente de 1873 haja sido imprecisa, quanto imprevidente a fixação da cota da amurada do cais.

Foi no dia 10 de setembro que a inundação atingiu seu maior índice — 3,20 m — alcançando o quarteirão bancário, inclusive a atual agência Centenária, do Banco Sul-Brasileiro. E mais, obviamente, as zonas baixas da cidade, usualmente vitimadas por todas as crescentes.

Só a 22 de Setembro o tráfego da Viação Férrea para o Interior do Estado pôde ser restabelecido.


Rua Voluntários da Pátria alagada na enchente de 1936 em Porto Alegre Rua Voluntários da Pátria alagada na enchente de 1936 em Porto Alegre | Foto: CP Memória

1936 - de 1º a 14 de outubro

Enquanto o general Francisco Franco apertava o cerco sobre Madri e os jornais se enchiam de manchetes gritantes, as chuvaradas de São Miguel, com um pequeno atraso, davam mais um tremendo susto à capital gaúcha. Dizia o Correio do Povo que, das 7h30min do dia 1º às 14h30min do dia 2 de outubro, em 31 horas, haviam caído 142 mm de chuvas. Com 100,5 mm só durante o dia 2/10, este passava a ser um dos recordistas de chuva nos registros do Instituto Meteorológico. O ciclo de aguaceiros começava violento, com os galpões da Limpeza Pública abrigando mais de 300 habitantes da Ilhota, da Rua Arlindo e do Areal da Baronesa.

Depois de um certo refluxo no dia 3 de outubro, a enchente recrudesceu no dia 5 de outubro. A 7, o Correio anunciava que as águas tinham-se nivelado com a amurada do cais. No dia imediato, haviam-na ultrapassado, atingindo armazéns do Porto, a avenida Mauá, a Siqueira Campos e alguns pontos da Rua 7 de Setembro. Dia 8 de outubro, a inundação alcançou seu ponto máximo, marcando 3,12 m na régua da Administração do Porto. Só 8 centímetros menos que em 1928. Grandes áreas da cidade ficaram alagadas, sendo necessário abrigar flagelados em repartições municipais, em vagões da Viação Férrea e em quartéis da Brigada Militar.

Iniciado o processo de vazante a contar de 9 de outubro, só em 13 de outubro as águas haviam baixado sensivelmente, permitindo que os flagelados voltassem às suas casas e que os trens da Viação Férrea tornassem a correr. Segundo dados do Instituto Meteorológico, transcritos por Walter Spalding, ocorreram em outubro de 1936 doze dias de chuva, com uma queda pluviométrica de 316 mm.


 

1941 - maio, a maior

Foi esse um episódio presenciado por muita gente ainda viva. Sem dúvida alguma, a maior das inundações de que se tem notícia na história de Porto Alegre. Os minuciosos dados numéricos fornecidos no estudo de Walter Spalding, A Enchente de Maio, já citado, falam por si mesmos. A partir de 10 de abril e até 14 de maio, houve 22 dias de chuva em Porto Alegre, caindo a altíssima cifra de 619,4 mm. Simultaneamente, chovia de igual modo em toda a bacia dos rios formadores do Guaíba. Em consequência disso, desde os primeiros dias de maio a enchente se manifestou violenta, alcançando seu nível máximo a 8 do mesmo mês, quando as águas marcaram a altura recorde de 4,73 m na régua da administração portuária. No centro da cidade, as águas cobriram toda a Praca da Alfândega e ocuparam a rua dos Andradas, desde o seu início até quase a esquina da Rua Uruguai. A própria Avenida Otávio Rocha ficou inundada. Nos bairros, a água avançou além da Avenida Farrapos e bordejou a Avenida Benjamin Constant; cobriu grande parte do Menino Deus, da Azenha, do bairro Santana. Mais de 40 mil flagelados precisaram ser atendidos pela autoridade pública.

Houve na enchente de 1941 uma particularidade interessante. Mesmo depois de cessadas as chuvas, a inundação prosseguiu, embora brilhasse o sol num céu sem nuvens. É que o vento sul, insistente, represava as águas e impedia uma normal vazante.

O imenso desastre que foi a enchente de maio de 1941 despertou a consciência pública para a necessidade de proteger Porto Alegre contra as inundações. Na mesma década importantes trabalhos foram iniciados pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento, os quais não está em nosso propósito relatar. Mesmo porque são amplamente conhecidos.

Nunca mais se repetiu igual calamidade, mesmo tendo havido intensas quedas pluviométricas na bacia do Guaíba e inundações em cidades vizinhas.











Correio do Povo

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