Devo estar a ficar velho: as Paulas Cristinas têm mais de vinte anos , os Brunos Migueis já vão nos quinze , as katias e as Sónias deram lugar às Martas , Cararinas , Marianas .A maior parte dos policias são mais novos do que eu . Comecei a gostar de sopa de nabiças. A apetecer-me voltar cedo para casa . A observar no espelho matinal desabamentos, rugas imprevistas, a boca entre parentesis cada vez mais fundos .A ver os meus retratos de criança como se olhasse um estranho. A deixar de me preocupar com o futebol, eu que sabia de cor os nomes completos dos jogadores do Benfica . A desinteressar-me dos gelados do Santini que o Dinis Machado de cigarrilha nas gengivas achava peitorais.
Se calhar daqui a um pouco uso um sapato num pé e uma pantufa de xadrez no outro e vou de bengala contar os pombos do Príncipe Real que circulam de mãos nas costas como os chefes da repartição em torno do cedro. Ou jogar sueca com colegas de boina na Alameda
Afonso Henriques , de manilha definitiva suspensa no ar numa atitude de Estátua da Liberdade . Ou internam-me no Meu Lar , Recebe Idosos Inválidos & Convalescentes a fim de passar as tardes à janela em casaco de pijama numa poltrona de orelhas, com os bolsos cheios de palitos, capicuas e migalhas de bolacha Maria , visitado na Páscoa por sobrinhos apressados e saquinhos de amêndoas. Quando der por mim encontro o meu sorriso na mesinha de cabeceira a troçar-me num copo de água com trinta e dois dentes de plástico . Reconhecerei o meu lugar à mesa pelos frasquinhos dos medicamentos sobre a toalha que me farão lembrar as bandeiras que os exploradores antigos, vestidos de urso como os automobilistas dos tempos heróicos, cravavam nos gelos polares.
Serei como aquela prima idosa surdíssima , outrora bonita , com uma enorme telefonía à cabeceira, a quem o enfermeiro que lhe dava as injeções para o reumático comentou
---‐Que lindo rádio a senhora tem
e ela num suspiro , de nádegas ao léu à espera da seringa , orgulhosa e coquete
----- Havia de o ter visto aqui há quarenta anos.
Devo estar a ficar velho . E no entanto , sem que me dê conta , ainda me acontece apalpar a algibeira à procura da fisga . Ainda gostava de ter canivete de madrepérola com sete lâminas, saca-rolhas, tesoura , abre-latas e chave de parafusos .Ainda queria que o meu pai me comprasse na feira de Nelas um espelhinho redondo com a fotografia Yyonne de Carlo em fato de banho do outro lado.
Ainda tenho vontade de escrever o meu nome depois de embaciar o vidro com o hálito. Ainda caminho pela borda do passeio sem pisar os intervalos das pedras. Ainda me apetecia que o meu avô me viesse fazer uma festa à cama .
Ainda gosto de resolver os hieróglifos comprimidos dos Almanaques Bertrand do sótão organizado pela Sra.D.Maria Fernandes
Costa e de escrever nas soluções quando a pergunta é Grande Escritor Português Infelizmente Já Falecido, o nome do emérito
Poeta General Fernandes Costa. Pensando bem
(e digo isto ao espelho )
não sou um senhor de idade que conservou o coração menino .Sou um menino cujo envelope
se gastou.
António Lobo Antunes
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