sexta-feira, 29 de julho de 2022

A arte de dar brilho aos passos de quem anda em Porto Alegre perto do fim

 Conheça melhor o dia a dia dos poucos engraxates que ainda trabalham na Capital

Vera é a única mulher engraxate da Praça da Alfândega 

Com delicadeza de quem vai começar uma criação, as mãos de unhas pintadas separam os recipientes para iniciar o seu trabalho. Como se fosse uma aquarela, cada pote tem uma cor e seu pincel correspondente, dependendo do cliente. A arte em questão é a de rejuvenescer os sapatos que pisam o Centro de Porto Alegre. Mais propriamente na Praça da Alfândega, Vera Regina da Silva Weber, 60 anos, está entre os poucos engraxates que ainda restam na Capital.

Herdeira da cadeira do pai, João Estevão, que lustrou calçados de forma pioneira por mais de 50 anos no mesmo local, ao lado da agência da Caixa, Vera é a única mulher engraxate da praça (“a única do Brasil”, ela garante), onde apenas ela e outros três colegas prestam o serviço. O declínio da profissão é evidente na cidade. Somente no entorno da Alfândega, eram mais de 30 cadeiras nos anos 1990 mas, há vinte anos, caiu para 18, época que a então Secretaria Municipal de Indústria e Comércio (Smic) liberou os primeiros alvarás – entre eles, o da representante feminina da Capital. Mesmo que seu João Estevão não acreditasse que Vera pudesse seguir seus passos, ela, até então desempregada, resolveu colocar a mão na graxa e não se arrependeu. “Ajudei a pagar a faculdade dos meus dois filhos. Não tenho vergonha nenhuma de ser engraxate”, ressalta.

Vera revela que apenas 5% dos clientes são do sexo feminino. Casualmente, durante a entrevista, duas mulheres, em sequência, sentaram em sua cadeira. “Me sinto como se estivesse em um trono, fico com uma visão privilegiada da praça”, brinca a funcionária pública aposentada Carmen Santos, que buscava o serviço pela primeira vez. “Somos inquietas e guerreiras, queremos mais trabalhos para mulheres, sem demagogia”, defendeu. Sempre que pode, Vera dá dicas que ajudam a prolongar o efeito do seu trabalho por um bom tempo. “Passa vaselina líquida para nutrir o material e vai ter a tua peça de couro para o resto da vida”, afirma.

A engraxate ainda convive com episódios de preconceito, inclusive por pessoas do seu gênero (“empresárias vêm para serem atendidas aqui, e algumas funcionárias costumam mandar os sapatos e buscam depois, por vergonha”), mas, ao invés de se preocupar, faz planos. “Quero ir para a universidade, de repente, Ciência Social”. Outra cliente, Luciana Peters, também estreou como cliente de Vera. “A gente fica mais à vontade e, ainda, fortalece o lado feminino. É importante empoderar as mulheres, ainda mais que é difícil ver empreendedoras neste ramo”, pontuou, enquanto se preparava para lustrar sua bota. Vera assinala que está longe de parar. “Enquanto Deus permitir, tenho que continuar prestando este serviço. Tem gente que não engraxa os sapatos se não for comigo”, sorri.

Correr para "encher as latinhas"

Perto dali, próximo ao Farol Santander Porto Alegre, Isaías de Oliveira, 50 anos, não congrega dos mesmos projetos. Engraxate “do tempo das caixinhas”, ele está de volta ao ponto há cerca de um ano, mas está pensando em interromper novamente o seu trabalho na Praça da Alfândega para exercer outras atividades. “Estava desempregado e herdei a cadeira de um colega que faleceu. Mas diminuiu bastante o volume de trabalho de uns tempos para cá. Já faço alguns ‘bicos’ como eletricista, pintor e na construção civil. Mas acho que vou aceitar o convite para trabalhar em lavagem de carro”, conta. Atendendo de cinco a sete pessoas por dia, Oliveira ainda não fidelizou a clientela a ponto de se estabilizar o suficiente. “Como tenho família, cinco filhos, as ‘latinhas têm que estar cheias’. Temos que correr”, afirma. A causa da baixa procura, segundo ele, é geracional. “A juventude usa pouco sapato, são mais de tênis. Sem falar que muita gente, depois que foi para o home office, não voltou mais. Complicou”, resume.

Lustrada antes do embarque

Mesmo antes de se apresentar, ele confirma, sorridente, à reportagem: “Já dei entrevista para o Correio do Povo!”, brada, quase sem tirar os olhos do sapato do cliente em que dá brilho com uma escova, no segundo andar do Aeroporto Salgado Filho. Joarez Nicolini, 54 anos, sabe o dia, mês e ano em que começou a trabalhar ali. “Entro nesse espaço desde 15 de março e 1994. Das 14h às 20h, atendo cerca de cinco pessoas por dia”, conta. Por meio de uma concessão, dois engraxates ocupam cadeiras ao lado de um estabelecimento que vende sobremesas. Ele ensina como manter a durabilidade e a boa aparência dos sapatos lustrados. “Tem que engraxar, ao menos, duas vezes ao mês e passar todo dia um paninho”, gesticula.

O gerente de vendas de aço, Sidnei Abreu, aproveitou enquanto esperava o seu avião de volta a São Paulo para engraxar o seu calçado. “Venho três vezes por ano a Porto Alegre. Seu Joarez não se lembra, mas já vim aqui”, revelou. O cliente paulista acredita que é mais tranquilo lustrar os sapatos em solo gaúcho do que em sua terra natal. “Sempre que posso, passo aqui”, garante. Natural do município de Soledade, morou em Chapecó, em Santa Catarina, onde o ramo em que atuava era o de frigoríficos. “Fiquei desemprego e, em Porto Alegre, eu consegui trabalhar”, relembra. A quem deseja ser engraxate, Joarez é taxativo: “É bom achar um local específico. Shopping não dá mais, as pessoas vão mais para passear. Tem que querer. Exercer esta profissão é o que mais gosto de fazer”, afirma.

Joarez Nicolini trabalha no aeroporto desde 1994

Joarez Nicolini trabalha no aeroporto desde 1994. Foto: Mauro Schaefer

Perdas

Em maio, um dos engraxates mais antigos da cidade, Paulo Lopes da Silva, morreu aos 79 anos, quatro dias após um incêndio que atingiu sua casa, no bairro Partenon. Foi o pai de Vera que o levou à Praça da Alfândega, no Centro. A sua cadeira, azul, ao lado da colega, está vazia. O armário com seus pertences seguirá cadeado. “Ninguém quis herdar o ponto, uma pena. Era uma pessoa muito boa”, lembra Vera.

Outra perda recente por se tratar de um personagem querido na região foi a do engraxate Alexandre Dresch, o Alemão. Ele utilizava um caixote para trabalhar, em frente ao Foro Trabalhista de Porto Alegre, na avenida Praia de Belas, bairro Menino Deus. Vítima de câncer, faleceu aos 45 anos, no primeiro ano da pandemia, mas deixou uma marca de simpatia e bom humor. O Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-RS) chegou a emitir uma nota de pesar dada a gentileza com que tratava os clientes e amigos no entorno do prédio – aliás um ponto em comum a todos os entrevistados desta reportagem.

Correio do Povo

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