terça-feira, 10 de maio de 2022

Da presença de corpo estranho em alimentos e a responsabilidade civil

 por Maria Alice Ely Becker

Foi objeto de julgamento, em setembro de 2021, o AgInt no REsp 1.879.416/SC, da 4ª Turma, que decidiu acerca do pedido de compensação por danos morais quando é constatada a existência de corpo estranho em alimento, ainda que não ingerido pelo consumidor.

A decisão final considerou ser irrelevante a ingestão para caracterização do dano moral, visto que o artigo 12, caput e §1º do CDC tratam de produto defeituoso, o que legitima o dever de compensar os danos morais levando em consideração o que se espera do direito à saúde, segurança alimentar e incolumidade física garantidos pelo Código de Defesa do Consumidor.

 

Ressaltou-se que o fato de ter ingerido ou não o alimento será levado em consideração apenas quando passada à análise do valor da indenização. O que não exclui, portanto, a ocorrência do dano moral quando adquirido o produto com a expectativa de ser próprio para o consumo.

Importante salientar que o marco para consolidação do entendimento acima foi em 25/8/2021 quando, no julgamento do Recurso Especial nº 1.899.304/SP, a 2ª Turma do STJ solucionou a divergência acerca do tema entre a 3ª e a 4ª Turma, uniformizando o entendimento da corte.

Em sentido diverso era o entendimento majoritário do Tribunal Superior, visto que, no AgInt no REsp 1865253/SP (26/8/2020), a 4ª Turma decidiu que apenas a ingestão de alimento com corpo estranho seria apta a justificar dano moral indenizável, não bastando a simples compra de produto viciado para sua caracterização. O caso em questão tratava de visualização de corpo estranho no interior de garrafa de cerveja, consistente em embalagem para drogas, sob o argumento de que havia expressivo risco à saúde da agravante, além de causar nojo, repulsa, medo, insegurança e vergonha. Porém, ante a inexistência de provas de abalo à personalidade pela não ingestão do produto, foi negado provimento ao agravo interno. No mesmo sentido, AgInt no AgInt no Rescurso Especial nº 1.814.761-MG (26/4/2021), da 4ª Turma.

Nessa mesma linha de entendimento, o AgInt no EREsp 1.877.119/MG(18/12/2020), da 4ª Turma, tratou de indenização por danos morais em decorrência de suco contaminado, onde foi decidido que, para haver a responsabilização civil, há a necessidade de se comprovar a ingestão do alimento, hipótese que não se configurou no caso concreto. Situação idêntica ocorreu também no AgInt no Recurso Especial nº 1.797.805/PR (6/6/2019), também da 4ª Turma, onde foi encontrada uma larva viva no chocolate Caribe, produzido por Chocolates Garoto e vendido pelas Lojas Americanas. Não houve reconhecimento de dano moral, porque, apesar de visualizar o elemento estranho no chocolate, a consumidora nem sequer levou à boca, o que ficou demonstrado a não ocorrência de violação à sua integridade física ou psíquica, ou a direito da personalidade.

Entendendo de modo diverso, a 3ª Turma julgou um caso onde mesmo não ingerindo o alimento, foi reconhecido a ocorrência de dano moral no caso do Recurso Especial nº 1.644.405/RS (17/11/2017) onde um garoto de 8 anos estava prestes a ingerir uma bolacha recheada quando, mastigando-a, percebeu a presença de um anel dentro do recheio. Apesar de ter cuspido e não ingerido, a fundamentação da decisão foi no sentido de que, na hipótese, não se exige a ingestão, pois houve ofensa à saúde física e psíquica, a ensejar dano moral indenizável. Como não houve ingestão, tal fato repercutiu somente no momento da valoração do dano moral. Ademais, mostra-se oportuno e relevante destacar as palavras da fundamentação: "imagine-se uma situação que o corpo estranho envolvido não fosse uma aliança, mas uma barata ou um pedaço de rato. Há de se questionar se ainda seria exigido que os consumidores ingerissem, mesmo que parcialmente, tais corpos estranhos para a configuração do evidente dano moral que sofrem pelo mero fato de colocá-los em suas bocas".

Nesse sentido, o Resp 1.801.593/RS (15/8/2019), da 3ª Turma, tratou da compensação por danos morais em decorrência da presença de carteira de cigarro dentro do recipiente de bebida alcoólica. Situação essa onde, mesmo não tendo ocorrido a ingestão, total ou parcial, operou-se, de acordo com a corte, o dano moral passível de indenização.

Assim, resta evidente que havia uma divergência entre o entendimento das Turmas. Enquanto a 4ª Turma julgava que apenas a ingestão do alimento com corpo estranho seria apta a garantir indenização por danos morais, a 3ª Turma, por outro lado, mesmo quando não ingerido, total ou parcialmente, o alimento, entendia que o consumidor corre risco e tem seu direito à saúde violado, o que resulta no provimento do pedido do dano moral.

Dessa forma, com as decisões díspares, foi necessário uma uniformização do entendimento, o que ocasionou o Recurso Especial nº 1.899.304/SP (4/10/2021), de relatoria da ministra Nancy Andrighi, julgado pela Segunda Turma, que consolidou o entendimento no sentido de que, conforme já dispunha o artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, o direito à alimentação adequada é positivado pelo ordenamento jurídico brasileiro. Ainda, segundo o artigo 8º do CDC, "os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição", de modo que o CDC contempla a responsabilidade civil como forma de compensar o dano causado ao consumidor.

Como forma a solucionar o problema, também há uma alternativa: a utilização dos punitive damages, que, segundo Caroline Vaz [1], há tempos vêm tendo utilidade na common law. O instituto tem como objetivo punir o agente causador do dano assim como dissuadir não só a pessoa que cometeu ato ilícito mas, também, toda sociedade. Normalmente, são valores bem expressivos, porque se busca transparecer que algumas condutas não são toleráveis no Estado norte-americano, no caso de negligência grosseira (gross negligence). Assim, pretende-se barrar que tais condutas venham a se repetir e haja outras vítimas de tal ilícito.

Ainda conforme a obra de Caroline Vaz, os punitive damages servem justamente para punir os fornecedores de produtos que não fazem teste de segurança antes de colocar seus produtos no mercado de consumo, justamente por estar em uma sociedade de risco, agindo de forma indiferente em relação ao seu público [2].

Portanto, em que pese haver a possibilidade dos punitive damages na commow law, no Brasil, ele não é aplicado. Mas, em compensação, em relação ao tema há a consolidação do entendimento de que, para caracterização do dano moral em alimentos que possuam corpo estranho não é necessário sua ingestão, justamente por colocar em risco o consumidor, que adquire o produto esperando e confiando que este é seguro e possui adequação sanitária, de acordo com o que prevê o CDC. Assim, sempre que houver falhas no manejo de alimentos, ainda que não ingerido, total ou parcialmente, a configuração para dano moral estará caracterizada.

[1] VAZ, Caroline. Direito do consumidor à segurança alimentar e responsabilidade civil. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2015, pág. 154-156.

[2] VAZ, Caroline. Direito do consumidor à segurança alimentar e responsabilidade civil. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2015, pág. 157.

Fonte: Conjur - Consultor Jurídico - 09/05/2022 e SOS Consumidor

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