"Aplicativo das dancinhas" tem um dos algoritmos de recomendação mais sofisticados do mundo, segundo estudioso
Todo vício é caracterizado pela busca de recompensas de curto prazo que, via de regra, geram comportamentos persistentes e cada vez mais frequentes, levando o adicto a perder paulatinamente o controle sobre si mesmo.
Os hábitos nocivos podem partir do abuso de substâncias viciantes ou ter origens comportamentais, como compulsão por compras, comida, sexo, jogos. Mas para além do mundo real, a tecnologia descobriu que o mundo virtual pode proporcionar as mesmas sensações e que, para conquistar usuários – curiosamente o mesmo termo utilizado para os adictos – tudo deve ser oferecido em uma embalagem simpática e, de preferência, convencendo as pessoas de que se trata de uma simples forma de recreação. Para isso, nada melhor do que um aplicativo divertido, onde quem usa não precisa fazer absolutamente nada.
A novidade do formato vertical (que facilita manter o celular na mão por longos períodos de tempo) e a curtíssima duração, aliadas à rolagem infinita, chegam a ser praticamente irresistíveis. É como ter uma curadoria particular, onde alguém (neste caso um algoritmo poderosíssimo) conhece bem os seus gostos e vai distraí-lo do mundo ao seu redor mostrando só o que lhe agrada, por horas e horas. Mas para que você não perceba que o consumo desse volume massivo de “nada” pode lhe dar uma congestão, a dosagem vem em pequenas pílulas de 15 segundos cada, facilmente digeríveis.
No TikTok nada é por acaso
Segundo Matthew Brennan, especialista em tecnologia e autor do livro Attention Factory (Fábrica de Atenção, em português), a chinesa ByteDance, criadora do TikTok, sabia muito bem o que estava fazendo quando desenvolveu o aplicativo.
O autor afirma que o TikTok utiliza um dos algoritmos de recomendação mais sofisticados do mundo e que seu sucesso estrondoso não aconteceu por acaso. “Morando na China, eu vi em primeira mão o crescimento do Douyin (nome do TikTok naquele país), em 2017, e o impacto que teve em todos ao meu redor”, relata.
Por trás do aplicativo há um mecanismo tecnológico altamente eficiente, capaz de auditar automaticamente os milhões de vídeos publicados, categorizando um a um com palavras-chave. Primeiramente, cada vídeo é liberado para algumas centenas de usuários ativos para uma espécie de teste. Em seguida, acontece um cruzamento de informações, as chamadas métricas, que mapeiam o número de visualizações, “likes”, comentários, duração média de exibição, compartilhamentos etc. Tudo para identificar os conteúdos mais populares e enviá-los para o próximo nível, onde serão liberados para milhares de usuários ativos. O processo se repete e, de acordo com o resultado, o conteúdo continua sendo enviado ao próximo nível, liberado para audiências cada vez maiores, podendo chegar aos milhões.
“A ByteDance foi a primeira empresa chinesa de internet a se dedicar totalmente à então nova tecnologia de recomendação e a se comprometer com a difícil tarefa de criar uma ferramenta desafiando o status quo da curadoria humana. A aposta inicial valeu a pena. As bases do sucesso do TikTok foram estabelecidas muitos anos antes do próprio aplicativo ser construído, e não foi coincidência que a ByteDance foi a empresa que o criou.”, afirma Brennan.
Todo o sucesso do TikTok se resume à ferramenta de recomendação, pois é ela que prende o usuário a conteúdos que o agradam, dando a ele a falsa sensação de controlar o que vê ao mover o polegar para cima, acionando uma barra de rolagem infinita, onde perde-se a noção do tempo.
Ao cair nas recomendações, o usuário se submete ao que o aplicativo quer que ele veja. Quanto mais a ferramenta acerta, mais chances de o usuário permanecer on-line, ingerindo as pequenas pílulas de recompensa que, assim como qualquer outra droga, se tornarão cada vez mais irresistíveis e incontroláveis.
Alto controle da ferramenta, nenhum controle do usuário
Para entender melhor como as chances de a ferramenta acertar são altas, tornando o conteúdo viciante, podemos fazer uma analogia de como são as recomendações entre humanos e como a ferramenta atua. Normalmente, ao lermos um livro que acreditamos ser de interesse de alguém, indicamos a leitura, mas comprar o livro, efetivamente ler e nos dar um retorno é um processo longo, que fica 100% a critério da pessoa, podendo, inclusive, não resultar em nada.
Já o algoritmo não funciona assim. Brennan explica que ele possui o chamado “machine learning”, ou seja, tem a capacidade de aprender ao rastrear o comportamento do usuário. “O que torna o TikTok tão viciante é que ele aprende o que você gosta e o que não gosta. E faz isso muito rapidamente porque em um minuto você pode assistir a cinco ou seis vídeos. Nesse tempo, você tem que descartar ou assistir o vídeo, revelando as suas preferências. Dessa forma, o ByteDance pode obter muita informação em um tempo muito curto”, esclarece o autor e acrescenta: “É uma personalização extrema”.
Da forma que o algoritmo atua, o controle que o usuário tem sobre o que vê é praticamente inexistente. Enquanto a pessoa acha que está fazendo as próprias escolhas, não percebe que está apenas fornecendo informações das “substâncias” que devem ser colocadas em suas pílulas viciantes de recompensas.
Geração com abstinência crônica
Em entrevista à revista Exame, a psicóloga especialista em criança e adolescente Manuela Santo, afirmou que “quando o jovem está assistindo a um vídeo no TikTok, o cérebro dele recebe uma enxurrada de dopamina que faz com que ele se sinta feliz, alegre, satisfeito. O problema é que, quanto mais dopamina o cérebro recebe, mais ele quer, aí ele acaba entrando em um estágio de saturação em que essas ‘doses’ vão precisar ser cada vez maiores”.
Por outro lado, a abstinência da dopamina traz sintomas como os de qualquer outro vício, tornando o jovem apático, irritado, agressivo, mentalmente confuso, com alterações no sono e problemas de memória. Não é difícil encontrar crianças e adolescentes apresentando esses sintomas sempre que precisam fazer qualquer atividade em que o celular não esteja presente.
São jovens que não querem sair de casa, têm dificuldade de socializar, de se comunicar e de prestar atenção. Se algo não lhes interessa nos primeiros dez segundos, já anseiam por “outro conteúdo” que os satisfaça, assim como no TikTok.
É preciso entender que, por mais inofensivo que pareça, esse tipo de tecnologia gera mudanças de comportamento que, ao que tudo indica, não são benéficas para o usuário. As grandes corporações por trás delas possuem seus próprios interesses e, assim que atingem seus primeiros objetivos, criam novas ferramentas que, impulsionadas por bilhões de dólares, alcançam metas ainda mais ambiciosas.
Não há dúvida de que crianças e jovens têm sido cobaias desses grandes experimentos que impõe controle e alteram comportamentos. Até o presente momento, não temos condições de prever onde isso tudo pode chegar, mas analisando os indícios e o que está acontecendo com crianças e adolescentes é possível ter uma ideia de que o resultado não será positivo.
Estejamos atentos, pois o maior tesouro que uma pessoa pode ter é seu direito de escolha, seu livre arbítrio. Se entregarmos o que temos de mais precioso para máquinas programadas para arrancá-lo de nós o que nos restará?
R7 e Correio do Povo
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