quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Conheça o piru-piru, pássaro símbolo da preservação ambiental do Litoral Norte do Rio Grande do Sul

 Ave de bico alongado e avermelhado emite um som característico que lhe dá o nome popular



O biólogo Paulo Ott caminhava pelas dunas da Praia Grande de Torres numa manhã de setembro 2014 quando se deparou com uma cena que lhe chamou a atenção. Com o hábito de observar a fauna e a flora locais, avistou um ninho no solo contendo um ovo e um filhote de pássaro. Ficou em dúvida com relação a qual espécie eles pertenciam, resolveu seguir acompanhando e viu que se tratava de um ninho de piru-piru, ave de bico alongado e avermelhado que emite um som característico que lhe dá o nome popular. Com a descoberta, veio o espanto de perceber o desconhecimento da comunidade acadêmica de modo geral com relação à reprodução destes animais ali, numa praia urbanizada do Litoral Norte. Mais do que isso, começava surgir, aos poucos, o entendimento de que pássaro poderia ter o potencial de se tornar um símbolo da conservação ambiental da região. 

Ott é professor do curso de Ciências Biológicas da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Uergs), onde é pesquisador e um dos fundadores do Gemars, o Grupo de Estudos de Mamíferos Aquáticos. Seu interesse, porém, é pela vida no mar e na região costeira como um todo. Sabe, portanto, a importância de se entender a praia como um ecossistema que precisa ser preservado. Já o veranista leigo muitas vezes sequer sabe o porquê de questões como a proteção das dunas ou a proibição de acessar a beira-mar de carro são previstas por leis. Parte do trabalho educativo que precisa ser feito pode estar na própria natureza, em animais como o piru-piru, que, como o biólogo observou nos últimos sete anos, depende de todo este ambiente. 

Depois de identificar o ninho de piru-piru pela primeira vez, Ott e outros pesquisadores da Uergs passaram a observar as dunas da Praia Grande e viram que a região era utilizada para a reprodução de outros casais da mesma espécie. A surpresa de terem encontrado outros ninhos em um local com bastante circulação de pessoas veio acompanhada do entendimento de que as dunas em Torres são, relativamente, bem preservadas, largas, com passarelas de acesso à praia, o que permite que os animais possam fazer seus ninhos com certa segurança. “Conhecemos outros locais no litoral que também são urbanizados, mas, pelo fato de não terem as dunas tão bem preservadas, a espécie não utiliza mais aquelas áreas”, explica Ott. Ainda diz que, no passado, certamente o piru-piru utilizava toda a região litorânea gaúcha.

Marcação e monitoramento

Mais do que apenas curiosidade inicial, a observação do pássaro se torou um projeto de pequisa. A partir de 2017, os animais começaram a ser marcados. As capturas são feitas à noite, não machucam os pássaros e ocorrem rapidamente. Em apenas 15 minutos, os pesquisadores colocam uma anilha metálica com um código numérico e uma anilha colorida nas patas do piru-piru que permite identificá-lo mesmo à distância. Os dados vão todos para uma planilha, o que possibilita que o monitoramento seja mantido ao longo dos anos. Atualmente, há 90 indivíduos marcados e uma série de descobertas importantes que puderam ser feitas graças a isso. Uma delas foi a conclusão de que as mesmas aves que fazem ninhos na Praia Grande se alimentam na Ilha dos Lobos, conhecida unidade de conservação gerida pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e onde lobos e leões marinhos descansam nas rotas migratórias. 

Outra característica observada foi que os indivíduos utilizam diferentes regiões, como o Parque Estadual de Itapeva. Os pesquisadores também perceberam que, ao longo dos anos, os mesmos casais de piru-pirus se mantêm durante a reprodução. De longo prazo, a expectativa é de que, a cada ano, a iniciativa possa garantir novas descobertas sobre a espécie. Em 2019, o projeto “O piru-piru como símbolo e indicador ecológico da ligação entre áreas protegidas no sul do Brasil” foi apoiado pela Fundação Telefônica, o que possibilitou o uso de rastreadores importados da Lituânia para monitorar o deslocamento dos pássaros. Cidreira e Palmares, a 95 e 135 quilômetros de Torres, respectivamente, além de Araranguá, em Santa Catarina, a 53 quilômetros, foram deslocamentos registrados. O projeto ainda foi aprovado no edital da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza.

Espécie bandeira

Com o acesso de veículos proibido pela Justiça desde 2017, o Parque Estadual de Itapeva é um oásis em meio ao ritmo frenético do restante do Litoral Norte. Estamos no fim de uma manhã ensolarada de uma quinta-feira de fevereiro e, enquanto a maior parte das praias está apinhada de veranistas em busca de um espacinho na areia, a unidade de conservação ambiental reserva o som do canto dos pássaros, do vento e das ondas em meio à imensidão, num raro momento de harmonia entre o ser humano com o restante da natureza. Para quem se dispõe a chegar a pé, o acesso é livre, assim como são os piru-pirus, quero-queros e pernilongos-de-costas-brancas nestes pouco mais de 998 hectares. 

Além de um pequeno pedaço de paraíso para a fauna e a flora silvestres, esta área de proteção integral de responsabilidade da Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) permite uma visualização privilegiada do pássaro que, na opinião do coordenador do projeto, reúne as características de uma espécie bandeira, ou seja, que tem a capacidade de sinalizar a importância de uma determinada área e, consequentemente, beneficiar outras espécies. Um pouco maior que um quero-quero e com um bico comprido e avermelhado, o Haematopus palliatus, popularmente conhecido como piru-piru, é facilmente avistado e reconhecido. “As pessoas conseguem enxergar, criam uma identidade, uma sensação de pertencimento, de que conhecem aquela espécie, isso ajuda a se interessarem por aquele ambiente, e é uma espécie que reproduz todos os anos nessas áreas”, explica Ott. 

A criação de um vínculo afetivo com o piru-piru ajuda a promover o entendimento de que os ovos são depositados nas dunas e que, sem o devido cuidado, podem ser facilmente destruídos. Com isso, o tuco-tuco e a lagartixa-das-dunas, dois animais destas áreas em risco de extinção, mas mais difíceis de serem vistos, acabam sendo respeitados também, assim como as outras aves que utilizam a região e as mais de 100 espécies de plantas ali presentes. O mesmo vale para questões proibidas por lei e que, na visão popular, podem parecer inofensivas, como a circulação de animais domésticos sem coleira. “É importante que as pessoas saibam o porquê disso, não é simplesmente para proibir o bicho de andar solto, é porque existe uma fauna silvestre importante que pode ser perturbada e, inclusive, predada pelos cachorros”, explica o biólogo. 

No caso da entrada de veículos motorizados na praia, mais uma vez o potencial educativo do piru-piru pode entrar em jogo para facilitar a compreensão do cuidado que é necessário se ter com todo o ambiente. Se utiliza as dunas como parte do seu processo reprodutivo, o pássaro vai até a Ilha dos Lobos e aos costões rochosos em busca de alimento, mas também à beira do mar, onde captura presas como tatuíras e bivalves. É o caso do marisco-branco, protegido por duas conchas robustas e que são abertas apenas com a força do longo bico, numa cena engenhosa de se observar. Otimista com relação à possibilidade de harmonia entre homem e natureza, Ott diz não ver um impacto considerável, por exemplo, num pescador artesanal capturar mariscos para a pesca do dia, mas que o mesmo não pode ser dito sobre um carro passando sobre a faixa areia. 

“É um quebra-cabeça que, faltando uma peça, a gente perde um equilíbrio que pode ter consequências bastante desastrosas”, afirma o coordenador do projeto, referindo-se não só aos animais silvestres, mas também aos seres humanos. Onde dunas são retiradas indevidamente, por exemplo, uma proteção natural é perdida e uma nova necessidade se cria, a de se gastar recursos para a construção de muros de contenção. “O homem não está separado da natureza, é possível viver em harmonia e nos beneficiarmos do que chamamos de serviços ecossistêmicos, a natureza presta muitos serviços que nem nos damos conta, e faz isso de graça.”

Com o objetivo de promover a espécie como símbolo da zona costeira, placas informativas devem ser instaladas nas dunas de Torres e no Parque de Itapeva para que todos que vivem e veraneiam no litoral entendam que, ali, esta e outras espécies dependem dos ambientes conservados. “Parece que é tudo muito igual, mas existe uma riqueza de vida, uma diversidade bastante impressionante se tivemos um olhar mais atento.”

Correio do Povo

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