O quarto dia de julgamento dos réus pelo incêndio da boate Kiss chegou ao fim, por volta das 19h deste sábado (4), após os depoimentos de mais três testemunhas, das quais duas são sobreviventes da tragédia que matou 242 pessoas na madrugada de 27 de janeiro de 2013 em Santa Maria (Região Central do Estado).
As atividades no Plenário do Fórum Central de Porto Alegre, no bairro Praia de Belas, serão retomadas às 10h deste domingo (5), às 10 horas. Devem ser ouvidos Thiago Mutti (convocado a pedido da defesa de um dos acusados) e a vítima Delvani Brondani Rosso, solicitada pela acusação. Ainda não há data prevista para a conclusão dos trabalhos.
No banco dos réus estão os sócios da boate Elissandro Callegaro Spohr, 38 anos, e Mauro Londero Hoffmann, 56, mais o músico Marcelo Jesus dos Santos, 41, vocalista da banda Gurizada Fandangueira, e o produtor e auxiliar de palco Luciano Bonilha Leão, 44.
Eles foram denunciados pelo Ministério Público (MP) por 242 homicídios consumados com dolo eventual (quando se assume o risco de matar) e 636 tentativas. A maioria das vítimas – com idades entre 18 e 30 anos – sofreu asfixia.
Conforme o processo, houve imprudência por parte dos empresários por permitirem aglomeração de público além da capacidade prevista pela casa noturna e dos músicos por usarem em ambiente fechado um artefato pirotécnico que acabou incidindo sobre material inflamável usado como isolamento acústico, produzindo fogo e fumaça tóxica.
Primeiro depoimento
Entre o começo da manhã e o meio da tarde, foi ouvido durante quase cinco horas (uma das oitivas mais longas do julgamento até agora) o publicitário Alexandre Marques, 38 anos. Na época do incêndio na Kiss, ele atuava como promotor de bandas para boates e como técnico para um grupo musical.
Marques não estava na danceteria na noite trágica, mas como testemunha arrolada pela defesa do réu Elissandro Callegaro “Kiko” Spohr (um dos sócios da casa noturna) detalhou aspectos sobre a realização de festas e eventos nesse tipo de estabelecimento, inclusive no que se refere a efeitos pirotécnicos.
Conforme o ex-produtor, o uso desse tipo de dispositivo não costumava ser avisado com antecedência aos proprietários de boates e similares. “Certa vez, tentei utilizar um ‘sputnik’ [tipo de fogo cenográfico] na Kiss, mas não tive autorização do Kiko”, garantiu.
Questionado sobre a lotação das danceterias, Marques discorreu sobre estratégias utilizadas pelas boates para manter o movimento de clientes e a pista de dança cheia. Segundo ele, os clientes em geral não gostam de locais vazios.
Por fim, ele afirmou que não conhecia Mauro Londero Hoffmann, sócio da Kiss, e que acreditava que, na prática, o proprietário da boate era Elissandro.
Segundo depoimento
Depois prestou depoimento o desenhista industrial Maike Ariel Santos, único sobrevivente de seis amigos que estava na Kiss para comemorar um aniversário. Ele detalhou que, no início do incêndio, os gritos de “Fogo!” foram o gatilho para buscar uma saída, de mãos dadas com as cinco garotas que completavam o grupo:
“Tinha muita gente, eu estava ‘esmagado’ entre as pessoas e não enxergava minhas amigas, só sentia as suas mãos. Acabamos nos separando. Quando cheguei perto do bar, senti a fumaça e esquentou muito rápido, os olhos ardiam a ponto de não poderem se abrir. Não havia qualquer referencial de visão”.
Houve um momento em que Maike desmaiou: “Só recobrei os sentidos lá fora, provavelmente retirado por alguém”. Ele ficou um mês internado, incluindo dez dias em coma e uma piora que quase o levou a óbito. Mas conseguiu se recuperar, restando como sequelas cicatrizes de queimaduras nas mãos.
“Meu tratamento psicológico foi conhecer os pais de minhas amigas que faleceram”, desabafou, acrescentando que não recebeu apoio ou pedido de desculpas por qualquer um dos quatro réus.
Terceiro depoimento
Por fim, foi ouvida das 17h às 19h a sobrevivente Cristiane Santos Clavé, que perdeu 15 amigos na festa, à qual compareceu após deixar os filhos com um tio. Ela detalhou que viu dois fogos-de-artifício presos ao chão perto do palco quando começou o show.
“A cortina estava bem perto dos artefatos”, relatou. “Depois eu viu uma fumaça, senti falta de ar muito forte e saí do local para respirar melhor. Tinha muita gente, tinha que ficar desviando.”
As memórias de Cristiane preservam, ainda, a tentativa de escapar: “Estava muito quente, a fumaça se espalhou rápido, o público começou a correr e se empurrar, então lembrei de uma mesa próxima à saída, como referência, e conseguiu deixar a boate. Não havia sinalização e, mesmo que tivesse, estava muito escuro”.
Ela disse ter ouvido muitas pessoas reclamando por terem sido barradas [pelos seguranças] para que não deixassem a boate sem pagar. E que ninguém anunciou se tratar de um incêndio: “Tenho certeza de que muita gente morreu sem saber o que acontceu”.
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