Foram mais de 20 horas de debate sobre projeto que garante gratuitamente interrupção voluntária da gravidez até a 14ª semana
Um projeto para legalizar o aborto na Argentina foi aprovado nesta sexta-feira pela Câmara dos Deputados e seguirá para a votação do Senado. O texto, que permitirá o aborto até 14ª semana de gestação, recebeu 131 votos a favor, 117 contrários e seis abstenções. O anúncio foi feito pela secretaria da Câmara dos Deputados após uma sessão de 20 horas.
O projeto encaminhado pelo Poder Executivo coincide com o apresentado pela Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito, que obteve meia sanção dos Deputados em junho de 2018: o direito de acesso à interrupção voluntária da gravidez é garantido com a única exigência da gestante ou gestante até a 14ª semana.
Fora do período estabelecido, a gestante tem o direito de decidir e acessar a interrupção de sua gravidez somente nas seguintes situações: se a gravidez resultar de violação, com o requerimento e a pertinente declaração juramentada da grávida, perante o agente de saúde interveniente; ou se a vida ou a saúde integral da grávida estiver em perigo”.
O texto estabelece que todos os sistemas de saúde, assistência social e pré-pago devem garantir a prática gratuita em todo o país. Após ser solicitada a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVE), o prazo máximo para garanti-la é de “dez (10) dias consecutivos”. Neste caso, o projeto da Campanha estabelece que deve ser realizada no prazo máximo de 5 dias corridos a partir da solicitação.
Comemoração
A aprovação foi recebida com alegria por milhares de jovens com lenços verdes, símbolo da campanha a favor da legalização do aborto. A multidão passou a noite diante do Congresso, em Buenos Aires, à espera da votação neste país de maioria católica e berço do papa Francisco.
"O dia 29 de dezembro é a data prevista para a votação no Senado", declarou à imprensa a senadora peronista (governista) Norma Durango, líder da Bancada da Mulher, espaço interpartidário criado para promover direitos com perspectiva de gênero. Durango completou: "Desta vez temos possibilidades de conseguir a sanção no Senado".
O governo tem 41 das 72 cadeiras no Senado, mas a aprovação do projeto continua sendo uma incógnita. Em 2018 nem todos os votos seguiram as linhas partidárias. No momento, as forças no Senado estão parelhas, "mas há indecisos", destacou a senadora.
Vigília de 20 horas
Milhares de mulheres de lenço verde fizeram uma vigília nos arredores do Congresso. Separadas por uma barreira, manifestantes com lenços da cor azul, contrários à iniciativa, também aguardaram o resultado da votação, que receberam com frustração.
A legalização do aborto foi discutida pela primeira vez no Parlamento argentino em 2018, durante o governo do liberal Mauricio Macri (2015-19), quando foi aprovada pelos deputados, mas rejeitada no Senado em meio a grandes manifestações de mulheres.
Este ano, a iniciativa de Interrupção Voluntária da Gravidez (IVE) foi apresentada pelo presidente de centro-esquerda Alberto Fernández como um modo de "garantir que todas as mulheres tenham acesso ao direito à saúde integral". "O aborto é legal em países de primeiro mundo e outros desenvolvidos e com forte religiosidade, como Itália, Espanha e Irlanda. Agora avançamos na Argentina. Se isto fosse um problema masculino, teria sido resolvido há muito tempo", declarou o ministro da Saúde, Ginés González García.
Durante a sessão, a deputada Ana Carolina Gaillard, da governista Frente de Todos, enfatizou que o "debate é sobre aborto seguro ou aborto inseguro", ao mencionar as mortes provocadas por interrupções clandestinas da gravidez, quase 3.000 desde 1983, segundo o presidente Fernández. "Sou católico, mas tenho que legislar para todos. É um tema de saúde pública muito sério", declarou o presidente.
Analistas de saúde calculam que a Argentina registra entre 370.000 e 520.000 abortos clandestinos por ano, com 39.000 internações a cada ano em centros de saúde pública.
Verdes contra azuis
"Acreditamos que as mulheres têm o direito a decidir sobre seu corpo. É importante que o Estado nos proteja. Que os legisladores que votam contra saibam que carregarão em suas mãos o sangue das mulheres que morrem por abortos clandestinos", disse à AFP Melisa Ramos, de 21 anos, diante do Congresso. "Aborto legal já, gratuito e no hospital!", afirmam os cartazes.
Do outro lado de uma cerca, as azuis protestaram com o lema "Salvem as duas vidas!". Elas exibiram bonecos que representavam bebês com sangue. "Toda vida conta", afirmavam os cartazes do grupo, com jovens tão entusiasmadas quanto as do lado verde.
Na Argentina, o aborto é permitido apenas em caso de estupro, ou de risco de vida para a mulher, segundo uma legislação vigente desde 1921.
Se o Senado aprovar o aborto legal em definitivo, o país se unirá a Cuba, Uruguai, Guiana e Cidade do México, como lugares que permitem o aborto na América Latina.
Acompanhamento por mil dias
O governo fez gestos políticos para somar votos. O principal deles foi o envio de outro projeto de lei, o Plano de 1.000 dias, destinado a apoiar economicamente mulheres de setores vulneráveis que desejam levar adiante a gravidez e seus filhos nos primeiros anos de vida. A sessão dos deputados continua nesta sexta-feira para votar o plano, com o apoio quase unânime dos partidos.
O projeto de legalização do aborto prevê a objeção de consciência individual e também de um estabelecimento de saúde, caso todos os médicos se posicionem contra. Haverá, porém, a obrigação de encaminhar a paciente para atendimento em outro hospital.
AFP e Correio do Povo
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