por Flávio Ferreira e Renata Galf
Entidade vê captação indevida de clientes enquanto empresas dizem desburocratizar acesso a direitos
Em um setor com mais de 1 milhão de advogados e restrições legais à realização de propaganda pelos profissionais do direito, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) aumentou nos últimos meses a fiscalização sobre startups e sites que, segundo a entidade, estariam oferecendo ilegalmente orientação jurídica e a contratação de advogados.
A entidade acredita que parte dessas empresas faz intermediação de trabalhos precarizados, em uma espécie de uberização da advocacia.
Segundo fiscalizadores da OAB, desde o início da pandemia do coronavírus o problema se agravou, com o surgimento de sites que prometem conseguir descontos em mensalidades escolares e créditos de impostos e auxílios previstos em programas emergenciais do governo.
Além desse tipo de serviço, há também as plataformas que conectam advogados a possíveis clientes e que já existem há anos, parte delas já foi inclusive alvo de notificações de seccionais da OAB nos estados. ?
Plataformas digitais ouvidas pela Folha afirmam que a atuação delas está dentro da lei e que suas práticas buscam desburocratizar o caminho para a satisfação de direitos. Parte delas defende que as regras de atividades da advocacia sejam modernizadas.
Entre as regras do Código de Ética da OAB constam a proibição da captação de clientela e da mercantilização da profissão e a determinação de que a publicidade da advocacia deve ter caráter meramente informativo, primando pela "discrição e sobriedade".
A partir dessas regras e dos princípios de pessoalidade e confiabilidade na relação entre advogado e cliente, a entidade entende que o contato inicial entre cliente e advogado deve ser o mais pessoal possível e a indicação de parentes e amigos é o melhor caminho para que ocorra a contratação.
Porém, os integrantes da OAB admitem que numa sociedade digitalizada é preciso discutir outros meios de contato com clientes. A entidade conduz uma enquete nacional sobre as regras de publicidade e o uso de plataformas digitais de intermediação pela advocacia. ?
No fim de 2019, o Conselho Federal da OAB criou a Coordenação Nacional de Fiscalização, passando a receber denúncias de supostas atividades irregulares e a notificar empresas e advogados.
A maior parte das notificações já enviadas pelo grupo este ano se referiam a empresas e startups que oferecem atuação em favor de passageiros para obter indenizações de companhias aéreas ou se prontificam pagar de imediato para ficar com eventuais créditos em futuras ações de ressarcimento.
A Associação de Defesa dos Direitos dos Passageiros Aéreos (ADDPA), que reúne três startups que oferecem serviços a clientes de companhias aéreas, diz que a atuação em favor dos usuários está em conformidade com a lei e que, apesar de nenhuma delas realizar a compra de créditos atualmente, essa prática é legal.
Há na lista também sites que prometem conectar advogados a possíveis clientes, como é o caso do meuadvogado.com.br, que traz em suas telas iniciais os dizeres “converse agora com advogados”, “informe seu problema gratuitamente e com segurança”, “advogados entrarão em contato para te orientar com sigilo” e “contrate um advogado caso necessário”.
O presidente da comissão de fiscalização e combate ao exercício ilegal da advocacia da OAB de São Paulo, Fabrício Klébis, afirma que quem utiliza esse tipo de site corre o risco de obter serviços jurídicos de baixa qualidade e ter sérios prejuízos em relação à busca pela satisfação seus direitos
“Você está contratando alguém mas não tem ideia da qualidade do serviço que vai ser prestado. Outro problema é que não há pessoalidade alguma. Muitas vezes nós temos grande dificuldade de localizar onde ficam a empresa e seus sócios, muitas vezes eles nem estão localizados no país”, diz Klébis.
“Você paga um valor que parece barato, mas possivelmente aquele barato vai sai caro”, completa.
Procurado pela Folha, a direção do site meuadvogado.com.br afirmou que disponibiliza "o serviço facultativo de elaboração, hospedagem e manutenção de sites profissionais para advogados, com aplicativo de gerenciamento de contatos, domínio e e-mails próprios, serviço cobrado mediante
planos de assinaturas."
"Já se passaram vários anos desde que uma contranotificação foi enviada ao Conselho Federal da Ordem do Advogados do Brasil e se houvesse algum tipo de ilegalidade no site meuadvogado.com.br, como afirmam, certamente a OAB teria tomado alguma providência", afirma a empresa.
Outro exemplo de plataforma notificada é a DOC9, que, segundo consta em seu site, é uma empresa de “logística forense” que possui uma rede de parceiros que executam diferentes diligências jurídicas.
?Na prática, isso significa que um escritório de advocacia, um departamento jurídico de uma empresa e advogados autônomos podem contratar, por meio da plataforma, o serviço de um outro advogado para executar um serviço pontual, como participar de uma audiência ou obter a cópia de um processo. No caso, a DOC9, faz a “gestão, gerenciamento e o controle” dos chamados correspondentes jurídicos.
De acordo com o secretário-geral adjunto e corregedor nacional da OAB, Ary Raghiant Neto, que também está à frente da consulta e da Coordenação de Fiscalização, plataformas de intermediação entre clientes e advogados não são permitidas pelas atuais regras.
Consta na notificação enviada pela OAB à DOC9 que “os serviços divulgados pelo site em questão são privativos da advocacia e não podem ser intermediados por sociedades não inscritas na OAB”.
A entidade de classe solicitou ainda que fossem informados os nomes dos profissionais parceiros da plataforma, sob a justificativa de que “[os advogados parceiros] como beneficiados da operação também violam a legislação”.
A DOC9 afirmou que não angaria ou patrocina qualquer tipo de causa jurídica e que está adequada a todas as legislações vigentes.
“[Nós] contribuímos com o ecossistema jurídico ao possibilitar que os pequenos escritórios e os advogados autônomos possam ter acesso e trabalhar, em diligências forenses, para grandes escritórios e corporações”, diz a empresa em nota à Folha.
Para o corregedor nacional da OAB, a precarização do trabalho do advogado, o que ele classifica como uberização, em referência ao aplicativo de transporte, está relacionada principalmente à falta de opção para o jovem advogado. Segundo Raghiant, isso é consequência de um mercado com alto número de profissionais e em um contexto de crise econômica.
“Uberização significa a banalização, o apequenamento da nossa profissão, advogados cobrando R$ 10, R$ 20, R$ 30 para fazer audiência”, afirma.
Uma das maiores plataformas do setor jurídico, a JusBrasil, está no radar da coordenação da OAB, mas até o momento não recebeu notificação. Segundo a empresa, o site possui mais de 900 mil advogados cadastrados e 28 milhões de usuários.
A JusBrasil diz defender a modernização do regramento das atividades da advocacia e que o site facilita a conexão entre advogados e seus clientes.
“Não realizamos captação de clientela, tampouco direcionamos causas para advogados específicos ou participamos/interferimos nas tratativas e negociações entre cliente e advogado”, afirmou o site em nota. ?
O tema da utilização de plataformas digitais para intermediação e divulgação de serviços advocatícios é um dos itens de uma consulta pública que está disponível no site da OAB sobre os limites da publicidade na profissão. O resultado parcial da enquete mostra que de 15 mil respondentes, cerca de 12 mil são favoráveis ao uso de plataformas para esses fins.
O intuito da consulta é tirar uma proposta de alteração do provimento nº 94, editado em 2000 pela OAB, que traz as regras de publicidade e propaganda da profissão.
Raghiant afirma que caso se chegue ao entendimento de que a existência desse tipo de plataforma é necessária, a melhor saída é que seja criado um site disponibilizado gratuitamente pela OAB, com a vedação do funcionamento de outras plataformas no mercado.
“Nós temos na nossa legislação a proibição de utilização de intermediários para captação de clientela. Ou a gente muda isso na legislação ou nunca poderemos validar uma plataforma que não seja uma plataforma oficial da OAB”, disse.
Já o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, não vê problema na coexistência de uma plataforma gratuita, da OAB, e de outras privadas. Para ele, isso pode ocorrer "desde que com regras muito claras de acesso aos advogados e de identidade pessoal. Isso porque a internet não pode ser uma espécie de biombo, você acha que está falando com um advogado, mas atrás do biombo não é um advogado".
Fonte: Folha Online - 12/10/2020 e SOS Consumidor
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