quinta-feira, 27 de agosto de 2020

IDEIAS MOVEM PESSOAS. PESSOAS MUDAM O MUNDO


por Paulo Moura



A relação entre as ideias e a realidade é objeto de reflexão e debate intelectual, pelo menos, desde a Grécia Clássica. Platão foi um pensador que acreditava que as ideias constituiriam um “mundo” à parte, e sem conexão com a realidade tal como a que percebemos com nossos sentidos. Dessa compreensão é que nasceu a expressão “amor platônico”, que é um amor aprisionado no mundo das ideias e que nunca se “realiza”.

Esse mundo idealizado por Platão seria “habitado” por “verdades” naturais, eternas e imutáveis. O conhecimento que estaria ao alcance da percepção pelos nossos cinco sentidos seria, então, imperfeito, no máximo, aproximado dessas verdades naturais e perenes.

A razão seria o caminho para alcançarmos a compreensão dessas verdades imutáveis, que seriam até “mais reais” do que a própria realidade, em constante movimento. Ao velho dilema sobre quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha, Platão responderia que quem nasceu primeiro foi a ideia do que é um ovo e do que é uma galinha.

Alguém disse algum dia que não há nada que os filósofos gregos já não tenham pensado. Em sala de aula já expus o argumento de Platão em defesa do governo dos filósofos, isto é, a ideia de que somente indivíduos intelectualmente preparados deveriam ter o “direito” de governar a sociedade. Não raras vezes encontrei convictos defensores da ideia.

A tese de Platão sobre a existência de um “mundo das ideias” poderia ser contestada por uma simples interrogação: haveria ideias se não houvesse seres humanos para pensá-las?

Independentemente do que você, eu ou Platão achemos sobre a ordem dos fatores na equação que relaciona ideias e realidade, vale a interrogação: qual é o papel das ideias nas nossas vidas?

Há quem pense que o debate entre “altruísmo” e “egoísmo”, ou, entre “coletivismo” e “individualismo” é recente e associado à luta política entre liberais e conservadores contra socialistas e comunistas.

No entanto, quem já teve o privilégio de ouvir uma das palestras da Bruna Torlay, editora da Revista Esmeril, aprendeu que esse conflito de ideias já estava lá na filosofia dos gregos dos tempos de Platão.

Pessoalmente, defendo a tese de que nossas ideias resultam da reflexão do ser humano sobre a realidade. Nossas ideias nascem de inquietações com relação a alguma dimensão da realidade que nos incomoda.

Isso vale para “ideias” bem simples e práticas, tais como aquelas que levaram o homem das cavernas a constatar que se proteger numa caverna torna a vida melhor do que a vida ao relento, ou, que viver em grupos é melhor para nos defendermos das adversidades da vida inóspita daqueles tempos do que viver sozinhos e isolados.

Nasceu assim a sociabilidade humana que, colocada diante de novos desafios, permitiu o progresso da nossa civilização. Por progresso aqui entendamos a ideia de evolução civilizatória de uma vida inóspita, desconfortável e violenta em direção a uma vida com cada vez menos sofrimentos e adversidades.

Não se trata, portanto, do sentido do conceito progressista de “progresso”, tal como algum desavisado tradutor dessa obra poderia, no futuro, interpretar meu conceito.

Essas reflexões práticas é que levaram o ser humano a desejar viver melhor e a mudar a realidade em que viviam. Foi isso que permitiu que nossos antepassados mudassem suas vidas e, por consequência, as nossas.

E foi exatamente por existirem seres humanos com essa habilidade para pensar e resolver os problemas práticos que foi possível existirem pessoas com a capacidade do raciocínio complexo. Pessoas como os filósofos gregos que levavam uma vida contemplativa e se interrogavam sobre dilemas tão profundos como a busca de respostas paras nossas, essas sim eternas, perguntas: De onde viemos? Quem somos? Para onde vamos?

E por que toda essa divagação se o tema dessa edição da Revista Esmeril é o valor dos tradutores para a cultura?

Como você acha que ficamos sabendo o que sabemos sobre o pensamento de filósofos que viveram no período da Grécia Clássica, no século V a.C.?

Caso você não tenha se ligado para esse detalhe, eles falavam e pensavam em grego, tal como o idioma era naquela época.

Os historiadores convergem todos para um consenso quando se trata de identificar os três pilares fundadores da Civilização Ocidental moderna:

na Civilização Grega Clássica que nos legou a primeira noção de democracia;
no Império Romano, que bebeu na fonte dos gregos e erigiu a primeira sociedade regida por leis escritas e governada por instituições jurídicas e políticas; e,
no cristianismo, que nos legou o monoteísmo, a crença num Deus único, pessoal e criador de todas as coisas.
O grego e o latim são, portanto, os dois idiomas-raiz das línguas faladas no mundo ocidental, e a partir dos quais foi registrado e transmitido às gerações seguintes todo o legado civilizacional que herdamos dos gregos, dos romanos e das Escrituras Sagradas do Velho Testamento, que está nas origens do cristianismo.

Sem entrar no mérito das polêmicas entre católicos e protestantes, a própria difusão do cristianismo no ocidente ocorreu, em parte, em função do fato de que um dia, um teólogo defendeu a tradução da Bíblia Sagrada do latim para o alemão, com a finalidade de tornar a Palavra Sagrada conhecida e acessível ao cidadão comum.

A que outro exemplo mais forte do que este poderíamos recorrer para tornar tangível a compreensão do papel dos tradutores para a cultura de uma civilização?

A missão a que se auto atribui o tradutor lhe impõe, antes de tudo, um imperativo ético pressuposto na intenção de perseguir com a maior fidelidade possível às ideias originais do autor traduzido.

A missão precípua do tradutor é, então, abrir mão da sua “liberdade” para assumir, voluntariamente, a condição de “escravo” fiel do autor e da obra que escolheu traduzir.

Essa tarefa vai muito além de simplesmente consultar um dicionário, que nem sempre existiu, e converter as palavras de um idioma para outro, tal como nos presenteia o Google Translator. Mais do que verter um texto de um idioma em outro, a tarefa do tradutor consiste em translatar ideias. E as ideias traduzidas não pertencem ao tradutor. Para cumprir sua missão, o tradutor precisa sair de si e se colocar na condição no tempo e no lugar do autor.

A mente humana é livre e se permite voar em qualquer direção. Permite ao tradutor fazer essa viagem, mas permite ao leitor fazer o que quiser com as ideias que absorve. Basta ver a profusão de dissidências que ocorrem com as mais diferentes correntes de pensamento social, político, econômico e filosófico, como resultado da livre intepretação das ideias.

Essa transformação é um dos fundamentos mais básicos do conceito de cultura. É de cultura e de transformação da realidade através da cultura, portanto, que estamos falando.

As ideias não movem o mundo, elas movem as nossas mentes e, em seguida, uma vez que foram assimiladas e aceitas como válidas, elas moldam os valores que orientam nossas ações. E são as nossas ações que transformam o mundo.

Ninguém fica indiferente ou impune à leitura de um livro. Ao lermos a primeira página, abrimos a mente para novas ideias e, ao fecharmos o livro, após a leitura da última página, nossa vida já não é mais a mesma.

Nossa maneira de ser se transforma em outra e somos o que somos, socialmente, em relação aos outros. Ao mudarmos a nós mesmos a partir das ideias de um livro, mudamos nosso entorno, mudamos a sociedade.

Se você, assim como eu antes de ser desafiado a escrever esse artigo, jamais havia refletido com profundidade sobre a missão e a importância dos tradutores para a cultura de uma sociedade, trate de mudar de ideia. (texto publicado na Revista Esmeril)


Pontocritico.com

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