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quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

O caso da orangotango considerada mulher


São várias as ações que tentam conferir direitos humanos a animais. Na Argentina, uma orangotango foi considerada “mulher” para ser tirada de um zoológico.| Foto: Pixabay


Por Randall Otto
Public Discourse

No dia 7 de novembro de 2019, a revista Newsweek publicou um artigo com um título maravilhoso: “Orangotango É Considerado Legalmente uma Pessoa, Muda-se para a Flórida e Vira Mulher”. Numa época em que as identidades transgêneras despertam debate e questões éticas, sugerir que uma orangotango chamada Sandra pode mudar de espécie e se mudar de Buenos Aires para a Flórida como mulher — tudo graças a uma declaração legal — é “estranho”, como a Associated Press chamou o caso, se é que não uma maluquice. O caso de Sandra é o ponto alto de ações na justiça para tirá-la do zoológico onde ela era obrigada a viver até que condições melhores fossem conseguidas.
Em 2015, a sentença de uma juíza argentina disse que, legalmente, a orangotango não era simplesmente um animal. A sentença tinha como objetivo, nas palavras da juíza, “apresentar a sociedade a algo novo, o fato de os animais serem entes com sentimentos e que o primeiro direito que eles têm é nosso dever de respeitá-los”.
A sentença é resultado de um pedido de habeas corpus feito em nome da orangotango. Para justificar o uso de uma ação geralmente usada para questionar a legalidade da prisão de uma pessoa, a juíza, em essência, “redesignou” a espécie do orangotango para lhe conferir direitos humanos. Dar direitos humanos e o caráter legal como pessoa a animais não-humanos, contudo, demonstra uma incapacidade de diferenciar a senciência da alta consciência, personalidade e alma racional, prerrequisitos para tais direitos – sendo que a consciência, a personalidade e a alma racional são únicas aos seres humanos. As diferenças entre as pessoas prevalecem, independentemente das sentenças judiciais.

O uso de Habeas Corpus para animais

O caso de Sandra, a orangotango, não é o primeiro de um pedido bem-sucedido de habeas corpus em nome de um animal “preso” num zoológico. Um tribunal argentina deu um habeas corpus para uma chimpanzé chamada Cecília em novembro de 2016. Em 2017, a Suprema Corte da Colômbia deu um habeas corpus a Chucho, um urso, determinando que ele fosse tirado de um zoológico e colocado num habitat mais apropriado para a espécie.
As mesmas medidas não tiveram sucesso nos Estados Unidos, mas a maré pode estar mudando. Em 2014, a Suprema Corte de Nova York determinou, no caso de um chimpanzé chamado Tommy, que “um chimpanzé não é uma ‘pessoa’ com direitos e proteções previstos pelo instrumento do habeas corpus”. O tribunal disse que a incapacidade de responsabilidade o chimpanzé o tornava inelegível aos direitos humanos.
A Suprema Corte de Nova York usou o mesmo precedente num caso de 2015 envolvendo os chimpanzés Hércules e Leo, decidindo em favor da Stony Brook University, que defendia o seu direito de usar os animais em experiências. Ainda assim, o juiz reconheceu que “medidas para estender os direitos legais aos chimpanzés (...) são compreensíveis; no futuro talvez elas tenham sucesso” e que “as ações agora talvez se acumulem”.
Outras ações realmente tiveram sucesso em 16 de novembro de 2018, quando um juiz de Nova York deu um habeas corpus em nome de Happy, um elefante do Bronx Zoo, determinando que ele fosse solto num santuário mais apropriado. As ações agora talvez se acumulem. Chimpanzés e elefantes, claro, não se tornaram repentinamente autoconscientes nem agentes responsáveis. Mas argumentos antropomórficos em defesa de animais sencientes agora fazem parte do mundo jurídico.

A questão da pessoalidade legal: alguns animais são “como a gente”?

O Non-Human Rights Project, que entrou com as duas últimas ações nos Estados Unidos, busca estender os direitos humanos a baleias, orcas, golfinhos e chimpanzés, e também a qualquer outro animal que demonstrar cognição e autonomia o bastante para ser reconhecido como “pessoa em termos jurídicos” e para receber liberdade pessoal. O Great Ape Project (GAP), organizado pelos filósofos Peter Singer e Paola Cavalieri em 1993, busca também “defender os direitos dos grandes primadas não-humanos” (chimpanzés, gorilas, orangotangos e bonobos).
O dr. Pedro Ynterian, fundador do GAP Project no Brasil, explica que chimpanzés “pensam, sentem, odeiam, sofrem, aprendem e até transmitem o aprendizado. Eles são 'como a gente'. A única diferença é que eles não falam, ainda que se comuniquem por sinais, sons e expressões faciais. Precisamos garantir os direitos deles à vida e liberdade”.
Se os chipanzés “são como a gente”, exceto por não falarem, então é claro que deveríamos lhes dar os direitos à vida, liberdade e a busca pela felicidade. Aquilo que Thomas Jefferson diz ser “autoevidente” no século XVIII — que todos os seres humanos “recebem do Criador” esses direitos inalienáveis — já não se limita tão claramente aos humanos.
Mas temos de deixar claro que os chimpanzés — assim como baleias, golfinhos e outras criaturas —, por mais sencientes que sejam, não são como a gente. O antropólogo Russell Tuttle resume com habilidade vários estudos sobre nossos ancestrais mais próximos em seu magistral livro Apes and Human Evolution [Macacos e a evolução humana]. Os chimpanzés são capazes de aprender e os melhores processos permitem que eles resolvam problemas. Eles se reconhecem, exibem comportamento intencional, conseguem fingir, cooperar e retribuir, e têm capacidade mental (raciocínio, compreensão, percepção, sentimento) comum a muitas espécies.
Mas eles não têm uma linguagem. A chimpanzé Washoe (1965–2007), embora criada desde o primeiro ano de idade interagindo diariamente com seres humanos, aprendera, aos cinco anos de idade, a fazer 132 sinais da Língua Norte-americana de Sinais e a entender centenas de outros. Isso não é nada em comparação a um ser humano médio, que aprende 60 mil palavras entre o nascimento e a idade adulta, começando aos dois anos e a uma taxa de oito a dez palavras novas por dia.
Stephen Budiansky demonstrou, em seu livro If A Lion Could Talk: Animal Intelligence and the Evolution of Consciousness [Se um leão pudesse falar: a inteligência animal e a evolução da consciência] que esforços para reproduzir o “efeito Washoe” mostraram que, ao contrário do uso espontâneo e criativo da linguagem por crianças (inclusive surdas), os sinais dos chimpanzés são apenas uma forma de obter uma recompensa do professor. “Os macacos imitam sinais que seus professores usam”, cometem muitos erros ou usam sinais questionáveis que requerem uma interpretação “muito generosa”.
Esse é o “antropomorfismo reprovável” que Budiansky e outros apontam como o grande problema dos estudos com animais — a tendência de perceber características humanas em ações de animais. Tuttle conclui que Washoe e outros chimpanzés em estudos semelhantes são “solucionadores de problemas, e não estão usando a linguagem como forma de transmitir um sentido”.
Como os computadores processam linguagem sem demonstrar consciência, é difícil dizer que chimpanzés e outros hominídeos não-humanos detêm aspectos da linguagem e cultura que sejam simbolicamente mediados por ideias, crenças e valores — sem falar na moral, no conceito de verdade e na espiritualidade, coisas que parecem envolvidas na ideia real de autonomia. Animais não-humanos não são essencialmente racionais como os seres humanos.

Racionalidade, senciência e ordens de consciência

A racionalidade não é um poder exclusivamente humano, e sim uma forma distinta de ter capacidades. Descrever um ser humano como racional não é descrever propriedades necessárias para que uma espécie tenha direitos. É algo que caracteriza a natureza humana em si. Os predicados, como diz Matthew Boyle, “expõem não as características que os indivíduos precisam ter se pretendem pertencer a uma espécie, e sim atributos que caracterizam diretamente uma natureza substancial em si”.
“Racional”, portanto, não é uma característica de algumas espécies animais, e sim o que constitui a forma humana de ser unicamente diferente de todas as outras criaturas. A ação intencional e a subjetividade, a ação com base na análise conceitual das opções, tudo envolvendo intencionalidade e raciocínio reflexivo, são característicos dos seres humanos, que se enquadram sozinhos na descrição de animais racionais.
A juíza argentina decidiu que uma orangotango era uma pessoa não-humana com base na senciência. Muitos estão preocupados com o “contrabando da consciência” envolvido no uso do termo “senciência”. Embora o próprio Darwin considerasse a imaginação “uma fonte grave de erros” capaz de levar uma pessoa a projetar aquilo que espera obter, o uso, por parte da etologia cognitiva, de “histórias, analogias e antropomorfismo para chegar às suas conclusões” talvez agrave esse problema.
O assunto deu origem a toda uma indústria de livros sobre a vida emocional dos animais. O neurocientista Joseph LeDoux, em seu recente livro A Deep History of Ourselves [Uma história profunda de nós mesmos], está entre os “muitos que estão enfrentando essas ideias, argumentando que versões de antropomorfismo com nomes que parecem científicos não se qualificam como abordagens comportamentais científicas (...) A não ser que se exclua interpretações inconscientes alternativas nos animais, não se deve falar em consciência”.
Já em 1940, C. S. Lewis falava do sofrimento animal: “devemos separar senciência de consciência”. Ele dizia que, ainda que os animais tenham um sistema nervoso com o qual experimentam sensações, eles não têm uma alma (racional) nem personalidade capazes de diferenciar isso da sensação, de dizer “estou com dor”. Assim, “muito do parece ser sofrimento animal não é sofrimento no sentido real do termo”, já que os seres humanos “podem estar vendo no animal um 'eu' para o qual não há prova clara”.
Mas defensores dos direitos dos animais costumam nivelar a senciência à consciência sem deixar claro o que é a consciência. A Declaração Cambridge sobre a Consciência, de julho de 2012 e assinada por vários neurocientistas, reafirmava que animais não-humanos – incluindo todos os mamíferos e aves e outras criaturas, como polvos — têm os substratos neurológicos necessários para a geração de consciência. Supõe-se, aqui, que a senciência, em geral vista como a capacidade de sentir de uma forma diferente da razão e percepção, está envolvida na consciência, mas de que tipo?
O psicólogo Merlin Donald está entre os vários que sugerem ordens diferentes de consciência, notando que há ao menos três definições: consciência enquanto estado — que envolve concentração, prontidão e sonhos, algo que muitos mamíferos e não-mamíferos têm; consciência enquanto estrutura — arquitetonicamente a ver com a cognição, emoção, ação e autorregulação geralmente encontradas nos mamíferos mais desenvolvidos e também algumas espécies de aves e que os permite alcançarem um objetivo de curto prazo e se comportar como se tivessem uma unidade de experiência; e, finalmente, consciência como instrumento representacional, o que é algo exclusivo dos seres humanos porque depende da capacidade humana da expressão simbólica encontrada na linguagem

Os direitos humanos são exclusivos dos seres humanos

Muitas criaturas têm vários graus de senciência e capacidade cognitiva, incluindo algum nível de consciência. O que diferencia a espécie humana de todos os animais não-humanos é a consciência de si mesmo: o reconhecimento do ser que é ontologicamente distinto do pensamento — sabe-se sujeito à experiência, agente responsável e pessoa. Tudo isso faz parte de ser um animal essencialmente racional e, sob a perspectiva judaico-cristã, um ser criado à imagem de Deus.
Os seres humanos são diferentes de todos os outros animais. Essa afirmação não se baseia num conjunto de propriedades e capacidades encontradas em alguns, mas talvez não todos, humanos. Inabilitar ou tirar uma propriedade não muda algo que é essencial. Uma águia cega ainda será uma águia e um humano inconsciente ou que ainda não nasceu ainda é um ser humano.
Os animais não têm livre-arbítrio, moralidade com base em ideias de virtude, dever e valores e direitos intrínsecos, ou qualquer conceito de verdade, pensamento abstrato e linguagem. Nenhum truque jurídico será capaz de conferir a um orangotango ou qualquer outra criatura o caráter de ser suficientemente “como a gente” a ponto de ele se tornar uma criatura autônoma com direitos únicos aos seres humanos. A espécie não é juridicamente definida, e sim divinamente determinada.
Juristas precisam chegar desistir da ideia de dar direitos humanos a animais não-humanos porque eles não são como a gente.
Conferir direitos humanos a criaturas não-humanas estabelece um precedente perigoso, com ramificações em potencial para várias outras facetas das relações entre os seres humanos e os animais. As diferenças entre os seres humanos e os animais precisam ser mais bem definidas na filosofia, teologia, ciência, direito e jornalismo. Apesar da definição clara do que senciência, consciência, personalidade e pessoalidade significam, a tendência humana em antropomorfizar talvez ganhe força, fazendo com que os não-humanos entrem no reino dos seres humanos dignos de direitos.
Nenhum animal não-humano, contudo, deve ser encarado como um ser com direitos humanos. Nenhuma orangotango jamais pode se tornar mulher – uma fêmea adulta humana. A despeito das manchetes sensacionalistas, Sandra ainda é uma orangotango que agora mora na Flórida com outros orangotangos — mas fêmea, não mulher —, destinada a sempre ser uma orangotango, sem capacidade de compreender qualquer conceito de direitos. Ela talvez não faça ideia disso, mas nós, seres humanos, fazemos.
Randall Otto é professor de religião no Southwestern College de Wichita, Kansas, e mentor em humanidades na Thomas Edison State University de Trenton, Nova Jersey.
© 2020 Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês


Gazeta do Povo

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