(Leonarco Avritzer, mestre em filosofia pela FFLCH-USP e professor do Instituto Sidarta e do Colégio Nossa Senhora do Morumbi - O Estado de S. Paulo, 27)
Seu livro centra suas preocupações entre dois pontos de referência: o processo democratizante das instituições e seu refluxo antidemocrático no caso brasileiro. Para esse movimento pendular, o senhor elege um vértice, a distância entre a soberania popular moderna (demos) e a orientação das decisões institucionais. Como diferenciar essa distância entre os dois cortes históricos que o livro apresenta: 1946-64 e 1988-2013? Ela se comporta, mesmo que formalmente, da mesma maneira?
O argumento do meu livro é que é que tanto a conjuntura 1946-64, quanto a conjuntura a partir de 1988-2013 são conjunturas pendulares. No entanto, são conjunturas pendulares de formas diferentes. Entre 1946 e 1964, quase não se colocava a questão da autonomia do poder judiciário, enquanto ela é central entre 1988 e 2013 devido ao novo formato dado ao poder judiciário pela Constituição de 1988. Já no que diz respeito à questão dos militares, ela era muito mais relevante entre 1946 e 1964, quando o Brasil presenciou diversas tentativas de intervenção militar. Já no período atual, a questão do impeachment adquiriu uma nova centralidade. O problema, no entanto, é: ainda que certas instituições, como os militares e o poder judiciário, tenham um papel diferente na conjuntura 19882013 eles continuam tendo um papel de conseguir reverter o pêndulo democrático independentemente da soberania popular e da forma do Estado de direito no texto constitucional.
Alguns dos recursos institucionais do Executivo (de sua eficiência e relevância no cenário pós-88) são heranças de uma certa ‘vontade institucional’ da Ditadura Civil-Militar, que colocou o presidente como um orientador central, agora burocrático-legal (não mais de exceção, como na Ditadura), de políticas públicas. Como pensa esse ponto institucional de origem?
Em relação aos setores institucionais do poder executivo, eu diria que o Brasil tem um poder executivo forte desde a Era Vargas e que a força do poder executivo no Brasil não se desfez depois da redemocratização de 1946. Nesse sentido, acho que se poderia falar de uma vontade institucional forte do poder executivo como orientador de todo o processo burocrático no Brasil desde os anos 1930. O que muda na verdade na tradição jurídico-legal brasileira são as novas prerrogativas adquiridas pelo STF e pelo Ministério Público a partir da Constituição de 1988. O problema, no entanto, é que independentemente do fato de nós termos um executivo muito forte, o Brasil continua tendo um desequilíbrio que é provocado pelo fato de o Congresso ser sempre fraco e, quando ele é forte, é capaz de derrubar o governo se o governo estiver em minoria. Ao mesmo tempo, nós temos um poder judiciário que quer se transformar no próprio elaborador das políticas públicas, o que é completamente inadequado.
Muito se diz, hoje, sobre um parlamentarismo brando que seria responsável pela ‘porção racional’ da atual configuração do governo brasileiro. O caráter dito reformista deste parlamento aparece como reação democratizante em meio aos impulsos antidemocráticos?
Não tenho dúvidas que nós temos no Brasil, nesse momento, uma configuração positiva dentro do parlamento, especialmente dentro da Câmara dos Deputados, que faz com que alguns elementos que faltam completamente ao governo Bolsonaro – como por exemplo a capacidade de negociação de suas propostas políticas ou a capacidade de articulação das propostas no centro do espectro político – tenha ocorrido no parlamento. De fato, o parlamento no caso brasileiro hoje aparece mais democratizante depois de uma gestão absolutamente desastrosa sob a direção de Eduardo Cunha. O que se espera é que esses novos impulsos democráticos no parlamento continuem.
O professor Rogério Arantes, em ‘Ministério Público e a Política no Brasil’ (Edusp, 2002), fala sobre o voluntarismo ideológico-político do Ministério Público brasileiro e como essas mudanças são essenciais para a nova configuração da burocracia do Estado brasileiro. Como essa ‘gestação’ de quase 20 anos de fortalecimento do MP surgiria na descrição dessa resultante pendular de que trata seu livro?
Nesta atual crise brasileira, não tenho dúvidas que o papel do Ministério Público volta a ser colocado em questão. O Professor Rogério Arantes, de fato, em seu livro Ministério Público e Política no Brasil, foi o primeiro a falar de um certo voluntarismo no MP, e também falar da própria ideia que Avritzer compara os períodos de 1946-64 e de 1988-2013 existe no MP uma visão acerca da hipossuficiência do eleitorado ou das formas eleitorais do País. Estas elaborações muito preocupantes em relação à organização burocrática do Estado tem se tornado cada vez mais fortes no MP. A ideia de uma autonomia do MP, que eu acho que fez muito sentido durante o momento da elaboração da carta Constitucional de 1988, era a de tentar combater a inefetividade de uma certa tradição legal pela via de atores independentes capazes de defender a legalidade e o estado de direito. No entanto, a gente vê hoje, 20 anos depois, que existe um voluntarismo total associado a uma politização indesejável. Então, o Ministério Público certamente é parte desse movimento pendular descrito no livro.
E, para finalizarmos, qual a principal interferência (se é que há em sua visão) que percebe nesse movimento pendular democrático brasileiro dos (não tão) novos desafios do capitalismo globalizado e contemporâneo que incidem sobre o Brasil e suas configurações institucionais?
Sem dúvida nenhuma não podemos deixar de lado a questão de um movimento global do capitalismo, de financeirização, e de questionamento de direitos, que não é só brasileiro e que tem presença forte nesse movimento pendular descrito. Não tenho dúvida que Donald Trump teve sua vitória em estados onde existe uma classe trabalhadora branca, bem remunerada nos EUA e que é perdedora do próprio processo de globalização no país. O caso brasileiro é um pouco diferente, porque na verdade o ator que acaba se colocando como ator antidemocrático não é uma classe trabalhadora bem remunerada, mas é uma classe média baixa que é mais perdedora de um novo processo de reorganização do estado do que um processo de reorganização do capitalismo global. De todas as maneiras, os movimentos do capitalismo global afetaram sim a crise brasileira através da diminuição do preço das commodities, do aumento do custo de políticas sociais que incide diretamente sobre a crise fiscal do estado brasileiro.
Ex-Blog do Cesar Maia
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