quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Arnaldo Cezar Coelho: VAR veio para confundir


A introdução malfeita do árbitro de vídeo no futebol brasileiro é um infeliz exemplo de como a tecnologia não veio para explicar, como diria o Chacrinha

Por Arnaldo Cezar Coelho*

ALÔ, TEREZINHA - No Brasileirão: em 79% das vezes o árbitro mudou de opinião ao recorrer ao vídeo: mero coadjuvante (Osvaldo Lima/Photo Premium/Folhapress)

Posso dizer com tranquilidade: eu avisei. A aplicação do VAR, o árbitro assistente de vídeo, vem se mostrando um problema em todo o mundo. Seu lema, segundo a Fifa, é “interferência mínima, benefício máximo”, mas o que vimos até o momento foi justamente o contrário. Nos meus tempos de apito, o comentarista Mário Vianna dizia que o árbitro era a “autoridade máxima do espetáculo”. Hoje, o apitador virou um mero coadjuvante. Os defensores do VAR argumentam, de maneira coerente, que sua função é impedir erros graves. A teoria é bonita, mas a prática é complexa, porque fere o espírito da lei. A regra do futebol foi evoluindo para tornar o jogo mais dinâmico, como o fim do recuo para o goleiro ou a adição de mais bolas e gandulas ao redor do campo. E, a partir do momento em que se criou esse grande negócio milionário que é o apito tecnológico, matou-­se a fluidez do jogo.

Tenho 76 anos, mais de meio século dedicado à arbitragem, e acompanhei toda a evolução do jogo e o processo de perda de autoridade do árbitro. Por exemplo, antigamente, o assistente só marcava impedimento e indicava quando a bola cruzava a lateral ou a linha de fundo. Depois, ele passou a ter o poder de assinalar faltas. Os donos do apito começaram a transferir responsabilidade. O mesmo acontece agora com o VAR: os árbitros botam a mão no ouvido e deixam o circo pegar fogo, o que só irrita os atletas, torcedores e telespectadores. O VAR é a versão moderna daquele bordão de Abelardo Barbosa, o inesquecível Chacrinha: não veio para explicar, mas, sim, para confundir. A regra é clara, mas também é subjetiva, e, à medida que se põe mais gente para interpretá-la, haverá mais confusão.

O VAR também me remete a outro grande comunicador brasileiro, o escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, certeiro ao tratar de nosso complexo de vira-lata. O brasileiro tem a mania de enaltecer tudo o que vem de fora. É como a fila no aeroporto: no Galeão, as pessoas reclamam da demora; em Paris, acham maravilhosa. Hoje está na moda dizer que o árbitro de vídeo funciona em todos os lugares, menos aqui. Não é verdade. Houve erros graves em torneios europeus e até na final da última Copa do Mundo. Os mais apressados já decretaram o sucesso da ferramenta no Campeonato Inglês após duas rodadas de uso. Mas a verdade é que por lá também houve contestações. E a razão para isso é simples: a máquina, assim como a bola, é controlada por seres humanos, que acertam e erram durante os noventa minutos e acréscimos (que, diga-se, estão cada vez mais longos).

Ora, e por que só os erros dos árbitros são intoleráveis? Hoje, o VAR é capaz de condenar um bandeirinha por não assinalar um impedimento milimétrico. Essa, aliás, é outra discussão interessante: por mais eficiente que sejam as câmeras tridimensionais e suas fórmulas matemáticas, ainda é um humano que aperta o botão naquele em que considera o momento exato em que a bola partiu do pé do passador. E esse profissional, por mais treinado que seja, pode se equivocar em um milésimo de segundo e deixar um jogador impedido em posição legal, ou o contrário, e assim definir um campeonato. Justamente como acontecia quando apenas os homens de campo tinham o poder de decisão. A arbitragem, de campo ou de vídeo, pode falhar, assim como um atacante ao perder um gol feito, ou quando um goleiro leva um frango. Para mim, o futebol sempre foi interessante por isso. A injustiça de ter um gol em impedimento validado é tão cruel quanto um time perder um campeonato com uma falha grotesca de um único jogador.

“A máquina, assim como a bola, é controlada por seres humanos, que acertam e erram durante noventa minutos”

Relembro uma história do passado para ilustrar o que penso. Lá em 1900 e bolinha, havia o problema da baixa média de gols na Copa do Mundo. Na ocasião, o João Havelange, então mandatário da Fifa, afirmou ter uma ideia genial: “Vamos aumentar o tamanho do gol para 9 metros de largura”. Eu disse a ele: “Presidente, sabe quantas traves existem no mundo? Vamos jogar todas fora?”. Ele, então, retrucou, dizendo que a novidade valeria apenas em Mundiais. Não demorou muito para perceber o tamanho da bobagem que havia dito. Em outra medida, o que aconteceria com os goleiros no devaneio de Havelange é o que acontece hoje com o VAR. Os árbitros são formados sem a ajuda da tecnologia e depois se complicam na adaptação. Por falar em presidentes da Fifa, acho curiosa a postura do atual mandatário, o ítalo-suíço Gianni Infantino. Ele dizia detestar a ideia do VAR quando era apenas secretário-geral da Uefa, a federação europeia de futebol. Depois que subiu de patente, passou a adorá-la.

Um dos principais problemas — e nisso, de fato, o Brasil precisa melhorar — é a velocidade na tomada de decisões. Toques de mão, por exemplo, causam a maior confusão. É inconcebível que um grupo enorme de pessoas fique numa sala revendo imagens dos mais variados ângulos e demore mais que dois minutos para chegar a uma conclusão. E o pior: sem que o telespectador saiba o que está acontecendo. Felizmente, isso deve mudar a partir do segundo turno do Brasileirão. A recomendação é que o VAR só sugira a revisão quando houver certeza de que a decisão de campo foi equivocada. Isso é impossível em lances interpretativos, como no caso de bola na mão. Segundo números da Comissão de Arbitragem da CBF, até a 14ª rodada do Brasileirão 87 lances foram revisados (quando o juiz recorre à tela à beira do campo) e houve 69 mudanças de marcação. Ou seja, em 79% das vezes o juiz mudou sua decisão depois de rever o lance no monitor. Isso mostra que os protagonistas estão lá em cima, não no gramado. No meio da arbitragem, apelidamos de Deus quem acha que sabe de tudo. Quando se escala Deus como VAR, é certo que ele vai apitar o jogo inteiro, como se estivesse dentro do gramado.

+ VAR: o primeiro dia de aula de um árbitro de vídeo

É preciso desconfiar dos números oficiais. Geralmente, as entidades afirmam que o VAR tem uma eficiência de 97%, 98%. É mentira! E quem provou isso foi um juiz brasileiro, Sandro Meira Ricci, que logo que voltou da Copa da Rússia admitiu ter cometido um erro no jogo entre Tunísia e Inglaterra e que essa falha não foi contabilizada nas estatísticas. Os dirigentes sempre vão considerar como acerto os lances interpretativos. Hoje, a arbitragem no Brasil está nas mãos do ex-árbitro Leonardo Gaciba, que foi meu colega na Globo e por quem tenho grande respeito. Ele, no entanto, está sofrendo no posto de chefe da comissão de arbitragem da CBF, pois pegou o bonde andando. Antes de calibrar o VAR, ele precisa consertar um problema na formação de quem apita. Antes, os juízes percorriam de 5 a 6 quilômetros por jogo. Hoje, passam dos 13 quilômetros, então têm de estar mais bem preparados fisicamente. No entanto, a seleção de árbitros não pode se dar apenas pelo critério atlético. É preciso ter técnica, bom-senso e, sobretudo, vocação. De novo, esse não é um problema exclusivamente brasileiro. Tem juiz de final de Copa que chegou lá só porque era fortão e falava vários idiomas, mas não apita nada. O Gaciba, justamente pela vantagem de ter estado do outro lado do balcão nos tempos de comentarista, precisa buscar uma renovação no quadro de árbitros, e isso inclui os de vídeo. Em suma, não sou contra o VAR, mas, sim, contra a forma como ele tem sido aplicado. Os protagonistas precisam estar dentro de campo.

* Arnaldo Cezar Coelho, ex-árbitro, apitou a final da Copa do Mundo de 1982 e foi comentarista da Rede Globo

Publicado em VEJA de 28 de agosto de 2019, edição nº 2649


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