O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, e o prefeito da capital, Marcelo Crivella, se reuniram nesta quarta-feira para abordar o futuro dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro e de seu icônico palco desde o famigerado governo Brizola, o Sambódromo. Os dois anunciaram uma decisão histórica: privatizar o espetáculo e o espaço.
Crivella disse que a Prefeitura não é mais capaz de financiar as escolas. Witzel, que vem se portando como entusiasta dos desfiles, disse que quer o Sambódromo ativo o ano inteiro, movimentando a cidade e angariando recursos, e que isso constará do plano de concessão. Vem sendo levantado, desde antes do anúncio, que um poderoso investidor quer aportar R$ 100 milhões para financiar o espetáculo e a gestão do espaço.
Muitos dirão que os desfiles já são privados, afinal são organizados pela Liga Independente das Escolas de Samba e há patrocínios, como o vultoso auxílio da Rede Globo, que hoje é uma das principais fontes de recursos das escolas de samba. No entanto, todos sabem que ainda existe o envolvimento da Riotur e que as escolas vivem se mobilizando para não deixar de receber uma relevante subvenção pública, fornecida pela prefeitura.
Não quero saber dos motivos de Crivella e do fato óbvio de que ele não gosta de Carnaval. Isso é colocado nos holofotes porque os dirigentes das escolas e da LIESA não estão acostumados a correr atrás do prejuízo que eles próprios impuseram à festa e se acomodaram a um modelo que não se sustenta mais.
Desde a década de 1930 (os desfiles surgiram em 1932), especialmente a partir da prefeitura de Pedro Ernesto, os desfiles de escolas de samba no Rio são patrocinados por verba pública. Trata-se de uma tradição que se consagrou desde a era varguista e foi alimentada pelos agentes culturais envolvidos nas apresentações e no espetáculo, tendo muitos deles absorvido a estúpida ideia de que a cultura só existe onde há dinheiro público. É o mesmo gênero de mentalidade que enseja a crença em que a cultura no Brasil só existe se existir um Ministério responsável por ela, o que implica concluir que a cultura no Brasil foi inventada pelo governo Sarney. Leia também: De volta ao Estado católico de Carlos Nougué
O espetáculo de desfiles de escola de samba mudou muito ao longo das décadas. Não se pode dizer, absolutamente, que seja a mesma coisa que era em 1932 ou em 1950. Ao longo do tempo, os barões do jogo do bicho assumiram o comando de várias escolas, utilizando-as para lavagem de dinheiro. Os carros alegóricos se agigantaram, os preços subiram, as arquibancadas populares foram escasseando. Os dias sagrados de Carnaval na Marquês de Sapucaí se transformaram em um grande negócio.
O impacto do dinheiro do bicho, sem morrer completamente, diminuiu, mas alguns agentes ainda menos interessantes, como as milícias e o tráfico de drogas, também pintaram no financiamento de algumas agremiações. Não é possível tapar esse Sol com a peneira. É a pura verdade, infelizmente. Em paralelo, entretanto, a prefeitura, especialmente na gestão de Eduardo Paes, dobrou o investimento – sem ter deixado, a qualquer momento, de participar.
Esse grande negócio, no entanto, é um patrimônio cultural e turístico do Rio de Janeiro. Não se pode, por conta de todas essas mazelas, menosprezar os grandes sambas e artistas formados ao longo da História, os espaços de convivência e socialização das quadras, a presença dessas agremiações e suas torcidas no cotidiano do carioca ao longo de quase noventa anos. Os desfiles e seu campeonato são um modelo de entretenimento e manifestação cultural fundado no Rio, que tem identidade e tem impacto. Não se pode jogar tudo no mesmo balaio.
É claro que há pessoas que discordam do que acabei de escrever no último parágrafo. Há outras que até concordam, mas acreditam que a presença, em algum grau, da criminalidade e as constantes viradas de mesa de dirigentes que se recusam a cumprir os regulamentos da competição que disputam tornam os desfiles indignos de receberem verba pública. Outras ainda concordam, mas simplesmente não gostam de Carnaval. Leia também: Sérgio Moro e "The Intercept": o que sei e o que não sei
Essas pessoas devem ser obrigadas a financiar os desfiles? É função do Estado subvencionar um espetáculo gigante que cobra ingressos de altos valores e mantém camarotes caríssimos com ritmos alternativos ao longo do Sambódromo? Eis um lado da questão. Respondo: não, essas pessoas não deveriam ser obrigadas a financiar. Qualquer bom liberal dirá isso.
O modelo não está moralmente compatível com o tamanho do espetáculo e a forma como está organizado hoje. Não é justo continuar usando verba pública nele. Se os desfiles fossem bem menores e bem mais modestos, franqueados ao público ou realizados com preços populares, como antigamente – e não, apresso-me em dizer que não estou pregando a pura e simples volta ao passado -, os valores diminutos de verba pública até poderiam ser mais facilmente justificados, mas mesmo assim, se as escolas realmente têm penetração na sociedade carioca, isso seria mais um motivo para acreditar na facilidade de angariar financiamento privado.
O outro lado da questão é: o que ganham as escolas com a permanência desse modelo? É interessante viver de pires na mão, na dependência do gestor público que assumir a prefeitura? É interessante não conquistar autossuficiência? A LIESA foi fundada em 1984 e até hoje não brigou por isso. Não perseguiu efetivamente uma fonte de financiamento que permitisse que as escolas não vivessem na dependência dos recursos públicos, sujeitas, com isso, às críticas constantes dos que não as apreciam ou não gostam de Carnaval, mas têm o seu dinheiro empregado nelas.
O que realmente ganham, não as escolas, mas os dirigentes, com a certeza da verba pública é a liberdade para “coçarem o saco” e preservarem o Carnaval em sua caminhada rumo à total falta de credibilidade e ao abandono. É evidente que não proponho a privatização como a panaceia, aquilo que resolverá todos os problemas do Carnaval, até porque é um caso em que não haveria concorrência de mercado e sim apenas a transferência da responsabilidade e da fonte das verbas para a iniciativa privada. No entanto, é uma tendência que um grande investidor exija mais transparência e respeito ao regulamento para não perder dinheiro. Nesse caso, ganham os foliões. Se alguns dirigentes de caráter duvidoso e alianças no submundo perdem com isso, quem é que realmente se importa? Leia também: “Ayn Rand e os devaneios do coletivismo”: o Objetivismo na coleção “Breves Lições”
Faz diferença se o dinheiro vem do Estado ou de uma grande empresa? Se aqueles milhões que entram na conta de uma escola vêm de um grande investidor ou do prefeito, que diferença faz para quem vai vestir sua fantasia e desfilar? Ganha o espetáculo, que passa a ser independente do Estado e ter um argumento a mais para ignorar os críticos, que podem contestá-lo à vontade, sem estar pagando um centavo para financiá-lo.
Com a ideia de Witzel de movimentar o Sambódromo o ano inteiro, também ganha o espetáculo mais fonte de riquezas. Ganham as escolas com investidores e anunciantes. “Ah, mas aí terão que estampar marcas de empresas em carros alegóricos ou fazer desfiles com temas enlatados…” Por favor, sejamos inteligentes, isso não é necessário. Há outras maneiras de os anunciantes e investidores marcarem presença. Acreditar que é impossível um espetáculo manter seu valor artístico e sua natureza enquanto se sustenta por vias privadas é um velho trauma das esquerdas estatizantes que podemos perfeitamente dispensar.
A privatização pode ser boa para todo mundo. Para quem não gosta, para quem gosta, para quem desfila, para quem assiste, para quem torce. Vamos experimentar – vale a pena. Doer mais do que já está doendo, matar os desfiles mais do que já estão matando, não vai, pessoal.
Lucas Berlanza
Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Lucas Berlanza é carioca, editor dos sites “Sentinela Lacerdista” e “Boletim da Liberdade” e autor do livro “Guia Bibliográfico da Nova Direita – 39 livros para compreender o fenômeno brasileiro”.
Instituto Liberal
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