(O Estado de S. Paulo, 23) O dólar está por todas as partes. Antes, os venezuelanos viam a moeda americana apenas em raros vislumbres. Um garçom disposto a arriscar um tempo na prisão podia ser persuadido a aceitá-las pelo preço certo. Turistas mostravam as notas verdinhas no aeroporto. Vendedores ambulantes faziam ofertas por elas, quase sussurrando.
Agora, elas estão empilhadas nas gavetas de caixas de supermercados, armazéns e até nas canecas dos mendigos. Os ricos dão gorjetas para valets de estacionamento e sacam maços de US$ 20 para pagar por baldes de cerveja. Operadores de câmbio acomodam-se em esquinas movimentadas nas favelas e gritam: “Compro dólares, compro dólares”.
Com o bolívar quase sem valor, relegado à irrelevância pelo presidente Nicolás Maduro, o dinheiro impresso pelos americanos – que o chavismo tanto odeia – tornouse uma presença constante na vida dos venezuelanos. E são as notas que trazem a face de Benjamin Franklin que mantêm viva a economia do país.
Até recentemente, usar dinheiro estrangeiro era um crime que o governo ameaçava processar com gosto. Depois que os chavistas estabeleceram controles cambiais, em 2003, começaram a patrulhar transações que iam contra as regras kafkianas sobre o dinheiro. Inspetores vestidos com roupas comuns montavam operações e invadiam empresas.
Pouquíssimos acabaram atrás das grades, mas o governo conseguiu assustar todo mundo. Os venezuelanos mantiveram as notas americanas escondidas por medo de mandar sinais para sequestradores e policiais. As conversas eram sempre em código e um novo léxico foi criado nas ruas: o dólar virou “alface”. Mesmo na clandestinidade, muitas transações eram concluídas em dólares. Aqueles que recebiam as traiçoeiras notas americanas fechavam nervosamente janelas e portas, enquanto desferiam olhares desconfiados e indiscretos para os compradores.
Agora, a inflação atingiu seis dígitos e a fome finalmente começou a desmantelar a complicada confusão dos controles cambiais. Hoje, as autoridades não piscam quando os dólares são trocados. O governo está falido e desajustado demais para ditar termos comerciais. O socialismo do século 21 deu lugar ao capitalismo selvagem.
A liberalização das regras, que começou em agosto do ano passado, foi bem-vinda para qualquer um cansado de lidar com a quantidade de zeros envolvidos nos preços do bolívar, puxando pacotes de notas inúteis e rezando para que o leitor de cartão de crédito funcionasse pelo menos uma vez.
Os apagões, quando a maior parte da Venezuela fica sem energia e sem sistema bancário, aceleraram a dolarização da economia. Na escuridão, carregar dinheiro era a única maneira de ter certeza de que se conseguiria fazer qualquer tipo de compra.
Algumas lojas e restaurantes já exibem os preços em dólar. Na região leste de Caracas, os estabelecimentos oferecem de tudo, desde cereais Fruit Loops a biscoitos caseiros e garrafas de Budweiser. Tudo tabelado em dólar. Os funcionários também aceitam transferências eletrônicas, via Zelle ou PayPal, facilitando a vida de quem não carrega dinheiro. Estima-se que 30% de todas as transações são feitas em dólares hoje na Venezuela – um porcentual que tende a crescer. Entre os opositores, também se intensifica o debate sobre adotar ou não a moeda após a volta da democracia. A maioria dos venezuelanos, porém, já fez sua escolha.
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