quinta-feira, 30 de maio de 2019

Sai o juiz de juiz de futebol, entra o juiz de manifestação política

Essa subespécie jornalística morrerá sem compreender que praças, ruas e avenidas são do povo, que delas se apossa quando está em jogo o destino da nação

Por Augusto Nunes

No domingo, 26, manifestantes se reuniram em todo o Brasil para pedir a aprovação da reforma da Previdência, do pacote Anticrime de Sergio Moro e da Medida Provisória 870 (Cristyan Costa/VEJA.com)

Sempre muito inventivo, o jornalismo brasileiro nem esperou o sumiço do juiz de juiz de futebol ─ reduzido a espécie em extinção com a chegada do VAR ─ para colocar em campo a figura do juiz de manifestação política. A novidade estreou em 15 de maio, quando esses magistrados de araque viram atos de protesto exemplarmente democráticos nas manifestações amparadas numa mentira: adversários do governo fingiram enxergar um corte de 30% no orçamento do Ministério da Educação onde havia o contingenciamento de 30% das chamadas verbas discricionárias, expressão que identifica despesas não obrigatórias, e saíram às ruas para combater o inimigo imaginário.

Além de desfraldarem uma bandeira falsificada, parte dos manifestantes exigiu aos berros a imediata soltura do presidiário Lula, num evidente desafio ao Poder Judiciário, que já o condenou em terceira instância, e também exigiu que o Congresso rejeite a reforma da Previdência. Mas os juízes de manifestação não viram, nesse caso, nenhuma forma de pressão sobre o Poder Legislativo. A brandura com que foram tratados os atos do dia 15 não se estendeu às manifestações deste domingo, 26 de maio.

Os jornalistas que agora decidem o que pode e o que não pode proibiram liminarmente a realização de atos públicos que lhes pareceram nocivos à democracia. Consideraram ilegítima e injustificável uma mobilização convocada, na versão encampada pela turma toda, pelo presidente da República, com o propósito de apressar o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. De nada adiantaram declarações de Bolsonaro condenando enfaticamente palavras de ordem hostis às instituições e reiterando que não havia convocado manifestação alguma.

Os juízes também desdenharam das provas e evidências de que multidões sairiam às ruas para que o Congresso aprove sem delongas a reforma da Previdência e, sobretudo, apresse a tramitação da Lei Anticrime concebida pela equipe do ministro Sergio Moro. Foi o que se viu neste domingo. Mas os juízes continuaram enxergando por trás dos fatos (e acima da verdade) as impressões digitais de Bolsonaro e um desejo oculto dos participantes do evento: o que aqueles liberticidas queriam era mesmo liquidar o Estado Democrático de Direito.

Somadas, a absolvição dos protestos do dia 15 e a condenação dos atos do dia 26 escancaram as marcas de nascença dessa brasileirice amalucada. Só um juiz de manifestação consegue ver e ouvir o que é invisível e inaudível para brasileiros comuns. Só um juiz de manifestação adivinha quando se deve dar as caras nas ruas ou ficar em casa. Só um juiz de manifestação consegue distinguir uma palavra de ordem aceitável de uma grave ofensa às instituições. Só um juiz de manifestação consegue descobrir se uma bandeira deve ser desfraldada ou arriada, porque só essa espécie de sumidade sabe prever as consequências de um ato público sobre os oscilantes humores der Rodrigo Maia ou do Centrão.

Jornalistas compõem uma categoria profissional historicamente deformada pela sensação de superioridade intelectual. Mas nunca houve nada mais arrogante que um juiz de manifestação. O consolo é que essa excentricidade será logo enterrada na vala comum dos doutores em tudo que, vistos de perto, são especialistas em nada. Morrerão sem compreender que, como a praça, também as ruas e as avenidas são do povo, que delas se apossa sempre que está em perigo o destino da nação.


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