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segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

O Brasil e a leviandade jurisprudencial: o desprezo aos precedentes e à segurança jurídica

Decisões como a do ministro Marco Aurélio Mello violam a jurisprudência do país e tratam os precedentes jurídicos como irrelevâncias a serem corrigidas por vontades individuais

Ludmila Lins Grilo 22/12/2018


O Brasil não possui uma tradição jurisprudencial. Por estas bandas, troca-se de posicionamentos como quem troca de roupa, no calor das discussões do momento. Uma Justiça com credibilidade deve ter uma jurisprudência minimamente consolidada a respeito dos bens jurídicos mais importantes, tais como a vida, a liberdade e a propriedade, e não deve ceder às tentações de modificá-la a cada pressão política ou midiática de ocasião.

Os precedentes judiciais fazem parte do conjunto de tradições de um país e significam, na prática, segurança jurídica para os cidadãos. É necessário ter um mínimo de previsibilidade a respeito de temas caros à nação, de forma que todos consigam planejar suas vidas e praticar atos com a certeza de que não violam nenhuma norma e de que estão minimamente protegidos contra ilícitos provenientes de terceiros, sem que lhes sobrevenha uma inesperada decisão teratológica que lance todas as suas legítimas expectativas ao léu.

Isso não significa que um precedente nunca deva ser modificado: ele pode, mas, evidentemente, isso não pode ser feito ao sabor de cada acontecimento da ordem do dia. Em um país sério, os precedentes permanecem incólumes por anos e anos a fio, apenas sendo superados por motivos imperiosos, quando a atual ordem jurídica ou mudanças socioculturais justifiquem a revisão.

Note-se que a própria Constituição brasileira prevê a possibilidade de sua alteração por meio das emendas, até mesmo porque, do contrário, haveria umengessamento incompatível com as naturais demandas que surgem no decorrer dos tempos. Nas palavras de Edmund Burke, “um estado sem a possibilidade de alguma mudança é incapaz de se conservar”. É evidente que, com o passar dos anos, reformas acabam sendo necessárias para a própria melhoria e preservação de tudo aquilo que eventualmente estiver em risco e mereça ser conservado.

A força dos precedentes judiciais está presente com muito mais força nos países da common law, que adotam com muito mais vigor a doutrina da stare decisis, segundo a qual decisões anteriores sobre um determinado tema devem ser levadas em consideração em julgamentos semelhantes futuros. Aliás, a expressão é proveniente do latim stare decisis et non quieta movere (respeitar as coisas decididas e não mexer no que está estabelecido), na medida em que ubi eadem ratio, ibi idem jus (onde existirem as mesmas razões, devem ser proferidas as mesmas decisões).

No Brasil vige o sistema da civil law, caracterizado pela maior importância das normas escritas, sendo estas as suas principais fontes do direito. Não obstante, o direito brasileiro vem aos poucos incorporando elementos do sistema da common law, na medida em que tem estabelecido no ordenamento alguns precedentes de forma compulsória (binding effect), tais como as súmulas vinculantes, criadas por meio da Emenda Constitucional nº 45/2004, bem como outros precedentes de compulsoriedade discutível, como aqueles previstos no artigo 927 do Código de Processo Civil de 2015.

Apesar disso, tem-se vivido em permanente estado de tensão no que diz respeito a expectativas quanto a decisões judiciais. De cabeça de juiz e bumbum de neném, ninguém sabe o que vem”, já dizia a velha piada, que por estas terras, em tempos de franco ativismo judicial e desprezo às normas legais, tem toda razão de ser. Por aqui, a lei anda sendo um mero detalhe, quase um fetiche positivista, quando o grande ápice da intelectualidade é ignorar seus termos em prol da utilização de algum princípio de alto grau de abstração, que se amolda gentilmente a qualquer circunstância a que se queira justificar quando não há norma para tanto.

Em matéria de precedentes, duas técnicas são frequentemente utilizadas para verificar a aplicabilidade ou não de uma jurisprudência ao caso concreto: distinguishing e overruling.

Distinguishing ocorre quando o caso que está em julgamento não se amolda inteiramente ao que fora julgado e gerou o precedente, seja porque há alguma distinção entre os fatos fundamentais que dão substrato a um e outro caso, seja porque, a despeito de haver coincidência fática, existam peculiaridades que impedem a aplicação do precedente. Quando isso ocorre, afasta-se o precedente e aplica-se o direito específico para aquele caso concreto.

Overruling, por sua vez, representa a verdadeira superação do precedente, motivada por modificações na realidade social, econômica ou cultural que acabam por determinar a necessidade da adequação da jurisprudência ao novo estado de coisas.

O economista e filósofo norte-americano Thomas Sowell, em sua obra “Os Intelectuais e a Sociedade”, dedica um capítulo aos intelectuais que atuam na seara da Justiça. Sowell menciona uma declaração de Oliver Wendell Holmes – juiz da Suprema Corte americana entre os anos de 1902 e 1932 – que demonstra a atenção deste à possibilidade de modificação dos precedentes, desde que feito com substrato em uma real mudança social: “a tradição e os hábitos da comunidade contam mais do que a lógica (…) o reclamante deve esperar até que ocorra uma mudança de hábitos ou, ao menos, um consenso estabelecido de opinião civilizada antes que possa ser esperado que esse tribunal derrube as regras que os legisladores e a corte de seu próprio estado apoiam”.

Daí surge o conceito de autocontenção judicial, que significa não apenas a observância fiel aos termos legais, mas também, nas palavras de Sowell, a “relutância em anular decisões judiciais anteriores”. Isso não significa, evidentemente, que eventuais anulações não possam acontecer, mas sim que, caso sobrevenham, sejam feitas de forma absolutamente responsáveis, com extrema cautela e de forma rigorosamente fundamentada.

Diz Sowell:

“Se algum acadêmico publicasse um artigo ou um livro mostrando de forma convincente que o caso Marbury v. Madison foi equivocadamente decidido em 1803, mesmo assim nenhum tribunal de hoje se inclinaria a anular aquela decisão, sobre a qual dois séculos de precedentes foram construídos e sob a qual todo tipo de projetos e comprometimentos foram realizados durante esses séculos, baseando-se no sistema legal que foi desenvolvido no caso Marbury v. Madison”.

Tal afirmação revela a preocupação que se deve ter com a segurança jurídica em um país, uma vez que, com base nos precedentes, decisões são tomadas, contratos são assinados e vidas são decididas.

A questão concernente à possibilidade de prisão em segunda instância retrata exatamente o problema da insegurança jurídica e do desprezo aos precedentes no Brasil. Até 2009, o Supremo Tribunal Federal admitia a execução da pena confirmada em segunda instância, tendo modificado o seu entendimento no HC 84078, daquele ano, quando então passou a condicionar a execução da pena ao trânsito em julgado da condenação. Em 2016, nova reviravolta jurisprudencial: a Suprema Corte voltou a admitir seu posicionamento anterior, ou seja, o de que a execução da pena com a condenação em segunda instância não viola o princípio constitucional da presunção de inocência.

Já no final de 2018, em decisão monocrática proferida na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) n.º 54, o Ministro Marco Aurélio Mello determinou a suspensão da execução da pena nas condenações sem trânsito em julgado, decisão esta que foi suspensa horas depois pelo então Presidente da Suprema Corte, Ministro Dias Toffoli, paraque então o caso seja (novamente) julgado pelo plenário do STF em abril de 2019.

Não se vai, aqui, entrar no mérito a respeito do cabimento ou não da prisão em segunda instância, tendo o assunto sido utilizado com a única finalidade de servir como exemplo de jurisprudência vacilante que se modifica com uma frequência incompatível com o estado de segurança jurídica tão almejado pelos brasileiros. A Suprema Corte que despreza sucessivamente sua própria jurisprudência viola o que se convencionou chamar vinculação horizontal, ou seja, a vinculação relativa aplicada ao mesmo órgão que gerou o precedente.

Observe-se que os precedentes gerados pela Suprema Corte o são em nome da instituição, e não de seus membros componentes individualmente considerados. Portanto, em caso de aposentadoria, morte, ou qualquer outra forma de vacância do cargo de ministro, não cabe ao novo empossado suscitar novamente a questão pelo simples fato de não concordar com os posicionamentos anteriores.

Da mesma forma, se algum ministro eventualmente modifica seu entendimento sobre determinada matéria já julgada pelo pleno, não caberá invocar novamente o julgamento para tentar reverter o resultado pelo simples fato de ter mudado de posição, especialmente se houver passado pequeno período de tempo e nada tenha acontecido de socialmente relevante que justifique a tentativa de revisão da jurisprudência. O precedente é criado mesmo se não houver unanimidade: ele transcende as vontades individuais divergentes.

Segundo o filósofo conservador inglês Roger Scruton, na obra “Como ser um Conservador”, os precedentes significam, em última análise, uma forma de defesa do povo contra eventuais caprichos e interesses dos burocratas de uma época: “no caso do direito inglês, há normas jurídicas e casos de precedentes que datam do século XIII, e os progressistas consideram isso um absurdo. Para mim, era a prova de que o direito inglês é propriedade do povo inglês, não uma arma dos governantes”.

As tradições que sobrevivem aos testes do tempo revelam, pelo simples fato de serem perenes, uma tendência muito mais significativa à legitimidade, à qualidade e à virtude, merecendo atenção das gerações posteriores para a responsabilidade em conservar o que há de bom e foi construído ao longo dos tempos. Nas palavras de João Pereira Coutinho, “as tradições mais profundas foram emergindo naturalmente, o que significa que elas foram sobrevivendo naturalmente porque sucesssivas gerações encontraram nelas vantagens que aconselharam a sua manutenção”.

É necessário o restabelecimento da normalidade institucional, da força normativa das leis, da estabilidade e da segurança jurídicas. Como bem asseverou Russel Kirk, “o mal da desagregação normativa corrói a ordem no interior da pessoa e da república. Até reconhecermos a natureza dessa enfermidade, seremos forçados a afundar, cada vez mais, na desordem da alma e do Estado. O restabelecimento das normas só pode começar quando nós, modernos, viermos a compreender a maneira pela qual nos afastamos das antigas verdades”.

O Brasil se transformou em uma espécie de túmulo das tradições em matéria de Direito: nenhum posicionamento se sustenta por muito tempo, qualquer miserável vento que sopra tem o poder de levar a jurisprudência para um lado e para outro, configurando uma lamentável leviandade jurisprudencial que nos confere lugar de prestígio garantido no ranking da vanguarda do atraso judiciário.

Urge, portanto, uma Suprema Corte originalista, leal às leis, à Constituição, aos precedentes e às tradições, que, atenta aos fatos – e não a elucubrações ideológicas ou partidárias –, supere os hiatos entre o Direito e a realidade, conservando a jurisprudência fiel a tudo o que há de mais fundamental e elevado na existência humana.


Senso Incomum

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