Mobilização mostrou força da categoria, mas deixou evidente velocidade com que boatos se espalham nas redes sociais
Greve dos caminhoneiros tomou conta do País com informações circulando rapidamente pelas redes sociais | Foto: Alina Souza / CP Memória
O WhatsApp teve o poder de mobilizar o país por pelo menos 11 dias, com a greve dos caminhoneiros. O canal de comunicação tanto serviu para disparar o gatilho da paralisação, quanto para dirigentes sindicais negarem acordos feitos como autoridades federais. No meio de toda a escassez de combustíveis, atenuada pelas autoridades nesta semana, e falta de alimentos perecíveis nas gôndolas de supermercados, inúmeras informações falsas, as fake news, foram injetadas em diversos grupos, causando, algumas vezes, apreensão.
Notícias que tempo depois foram desmentidas. Nesta greve, o WhatsApp foi o instrumento mais usado pelos caminhoneiros, que se valeram da mídia social para monitorar a movimentação nas estradas e os locais de bloqueios, além da situação em todas as regiões do país.
A greve dos caminhoneiros guarda uma diferença significativa com as manifestações ocorridas em 2013, que também foram organizadas via redes sociais pelo Movimento Passe Livre (MPL) contra o aumento das passagens de ônibus. De acordo com Luiz Peres-Neto, doutor e mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade Autônoma de Barcelona (Espanha) e professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), o fenômeno de 2013 e o de agora diferem em alguns pontos. Em primeiro lugar, em 2013, os grupos eram formados por jovens conectados no Facebook e no Twitter, redes sociais que permitem uma certa intimidade, pois no Facebook, por exemplo, a pessoa tem amigos, posta fotos da família e tudo o mais, assim como no Twitter.
Já o grupo dos caminhoneiros tem uma conexão diferente e seus integrantes funcionam em uma comunidade de desconhecidos, com um fim comum. A comunicação entre eles é mais pragmática. “Se em junho de 2013, Twitter e Facebook foram os meios articuladores e aglutinadores dos movimentos sociais, agora, o coletivo de caminhoneiros valeu-se muito dos grupos de WhatsApp.
Isso se deve muito às singularidades desse coletivo, basicamente formado por uma extensa rede de autônomos com vínculos similares a uma extensa colcha de retalhos emaranhada”, explica Peres-Neto, que também é pesquisador da ESPM. Ele ressalta que o Whats, atualmente, funciona como os rádios que ainda existem nas boleias dos caminhões, por meio do qual são relatados acidentes e outras ocorrências das rodovias.
Se o Whats, salienta Peres-Neto, favoreceu a articulação da greve dos caminhoneiros, dando uma certa coesão entre o grupo que até então parecia caótico, por outro lado, se formou um terreno fértil à proliferação de notícias falsas, as fake news. Boatos das mais variadas situações foram postados nos grupos, criando em muitos casos apreensão até serem desmentidos. Isso, de acordo com Peres-Neto, se deve a dois elementos.
Em primeiro lugar, esta situação surge em um grupo que não tem liderança, não há uma centralização das informações, não existe um ponto central para que as notícias cheguem a toda a sociedade e, ao mesmo tempo, cria uma capilaridade maior. Este fenômeno, acredita o doutor em Ciências da Comunicação, terá que ser trabalhado de agora em diante. No caso dos caminhoneiros, comenta Peres-Neto, o movimento tem uma pauta comum que uniu a todos, mas aglutinou pessoas, também caminhoneiros, que também passaram a defender a intervenção militar, candidatos à presidência da República, entre outros assuntos.
Isso, acabou dando uma unicidade ao movimento. “Isso nos mostra o grande desafio em termos de comunicação que será enfrentado. Não bastará mais deter o domínio das mídias tradicionais. Tão ou mais importante será entender a capilaridade e os usos das redes sociais digitais, que variam em função de cada grupo social”, analisa Peres-Neto.
Não há mais espaço para o amadorismo ou para os que querem transpor a lógica dos meios tradicionais para os sites de redes sociais
Peres-Neto, doutor em Ciências da Comunicação
Diminuir os danos causados pela disseminação de notícias falsas é um grande desafio, principalmente em um país carente de educação de base. Segundo Peres-Neto, ficou evidente que, durante a greve, houve uma tentativa de se apropriar politicamente do movimento, tanto pela esquerda quanto pela direita. Também há pessoas que têm prazer em gerar desinformação, em destruir grupos ou indivíduos. Este grupo, analisa, é composto por pessoas que não têm segurança em si e se dedica a desconstruir os outros para se sentir forte. “Não é uma questão a ser resolvida com uma ou duas medidas.
É preciso dar instrumentos para que os próprios usuários das mídias tenham maior domínio e repertório crítico sobre os conteúdos que ali circulam”, afirma o doutor de Ciências da Comunicação. “Não há mágica, porque esta competência não vale apenas para as mídias digitais, mas para a leitura do mundo. Os conteúdos que circulam nas redes sociais digitais são os mesmos que circulam no mundo”, analisa Peres-Neto, salientando que mais do que uma ética para o uso das mídias digitais é preciso com urgência resgatar parâmetros que façam as pessoas se sentir cidadãs.
O uso do WhatsApp por parte dos caminhoneiros pode ter influenciado a continuação do movimento depois das primeiras negociações com o governo federal. O Palácio do Planalto anunciou um acordo com entidades da categoria, mas a combinação não vingou, não houve desmobilização como esperado. Pelo contrário, muitos afirmavam não serem representados por determinado grupo que negociou com o governo, lançando na rede social sua desaprovação.
A demonstração de que essa mídia consegue atingir mais diretamente a categoria ficou evidente na última quarta-feira, quando o governo federal lançou um número de Whats para os caminhoneiros. A propaganda é voltada aos profissionais que estariam querendo retornar para casa e sendo ameaçados. O número da mídia prometia sigilo a quem denunciasse alguma dessas situações.
Dia a dia da greve
Um exemplo de como o WhatsApp serviu para aproximar só caminhoneiros e deflagrar a paralisação pode ser constatada em Uruguaiana, na Fronteira-Oeste. Segundo Paulo Dutra, presidente do Sindicato dos Caminhoneiros Autônomos de Uruguaiana (Sindicam), o aplicativo serve tanto para aglutinar como para separar, pois também foram postadas fake news. Dutra disse ter tomando conhecimento do planejamento e início da greve por meio da mídia social.
Segundo ele, um grupo de caminhoneiros no WhatsApp começou informando que a categoria iria parar. No dia da paralisação, foi dado o sinal e os motoristas cruzaram os braços. “O alerta começou nos grupos. Eram postagens afirmando que tal dia a categoria iria parar. Até que ficamos sabendo do início da movimento e paramos”, comentou o presidente do Sindicam. “O WhatsApp é uma ferramenta muito importante para nós. É incrível como o que é postado nele se tornar verdade, mesmo que seja algo que não condiga com a realidade”, ponderou Dutra.
No final da tarde da última quarta-feira, Dutra estava em uma manifestação na BR 290, em Uruguaiana. De acordo com ele, outros grupos, parados nas mais variadas regiões do Rio Grande do Sul ou do país, passavam informações sobre as mobilizações em cidades como Silvério, Fontoura Xavier, Rio Grande e também no estado de São Paulo. As informações eram repassadas, acentuou Dutra, por pessoas já conhecidas. “Conhecemos quase todos os caminhoneiros”, acentuou Dutra. “Uruguaiana é um corredor internacional no transporte por caminhões e, por isso, acabamos fazendo amizade com muitos motoristas de várias cidades do Brasil.”
O uso do WhatsApp por parte dos caminhoneiros pode ter influenciado a continuação do movimento depois das primeiras negociações com o governo federal
Como começou a greve
Como exatamente começou a greve dos caminhoneiros? Associações ligadas ao setor do transporte pediam audiência com o governo desde outubro do ano passado, mas os encontros não ocorriam. A greve, anunciada em um domingo à noite e iniciada na segunda-feira, dia 21, chegava a um cenário desolador no domingo seguinte, dia 27. Em Porto Alegre, assim como em outras cidades do Brasil, ônibus pararam de circular.
Na capital gaúcha, ainda que houvesse combustível para atender prioritariamente carros da Segurança Pública, Bombeiros e ambulâncias, no entorno do Mercado Público e ruas próximas não havia policiais militares, mesmo a pé, a cavalo ou pilotando uma bicicleta, possivelmente pela dificuldade enfrentada também pelos agentes para chegar às suas unidades.
Apesar dos contratempos, naquele dia os primeiros sinais de retomada eram esperados a partir do trabalho das forças de segurança que escoltavam caminhões em sete estados, mais o Distrito Federal, transportando combustível primeiramente para abastecer o transporte público. Naquela mesma data, o governo federal anunciou decretos definindo redução no preço do diesel, isenção de tarifa no eixo suspenso nos pedágios de vias estaduais e federais e ainda parcela de 30% nos fretes da Companhia Nacional de Abastecimento para os autônomos, além de tabela mínima no frete.
A primeira reunião para suspender a greve, na noite do dia 25, sexta-feira, foi anunciada como se tivesse ocorrido um desfecho positivo, mas determinadas categorias afirmavam não estar representadas no encontro e, ao contrário das expectativas, aumentaram os pontos de bloqueio, reduzidos à metade no domingo após forças militares serem colocadas nas ruas.
As últimas duas semanas revelaram um país no ápice do ambiente de tensão, que ficou ainda mais grave quando a mobilização de outros profissionais se sobrepôs à paralisação pelas estradas. Em um dos pontos mais marcantes de protestos no Estado, em frente à Repaf, em Canoas, os petroleiros engordaram a mobilização. Paralisaram no sábado, dia 26, e organizaram outro movimento, este com duração de 72 horas iniciado na quarta-feira, definido como ilegal pelo Judiciário trabalhista. A iniciativa da mobilização foi tomada pela Federação Única dos Petroleiros. As reivindicações mostravam descontentamento de todos os lados.
Para os caminhoneiros, era fundamental acabar com os aumentos diários no diesel e com tributos que incidem sobre o produto, como Cide e Pis/Cofins, este último com sua isenção aprovada no Senado na última terça. Os petroleiros, por sua vez, se manifestavam contra a política de preços da Petrobras que permitia os reajustes diários. Protestavam ainda contra a gestão de Pedro Parente na estatal e contra a venda de 60% do capital de quatro refinarias, duas no Nordeste e duas no Sul, entre elas a Refap, com capacidade de produzir 416 mil barris de petróleo por dia.
Caminhoneiros realizaram manifestações por todo o país
Os preços e a negociação com o governo
As primeiras manifestações do governo federal sobre a legitimidade da greve dos caminhoneiros começaram já na primeira semana da mobilização. O ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, afirmou que o governo tinha indícios de que parte da paralisação se devia não à mobilização dos motoristas, mas a pressões de empresas transportadoras, o que seria crime de “locaute”, ou seja, quando patrões e empregados se unem em uma mesma paralisação.
A iniciativa é proibida por lei. No decorrer da semana, prisões também ocorreram e os suspeitos não seriam caminhoneiros.“Essa paralisação foi feita em parte com o apoio criminoso de patrões, transportadoras e distribuidoras que irão pagar por isso”, disse Jungmann. Crime ou não, as categorias juntas, patrões, empregados e autônomos, levaram para as ruas e rodovias seu descontentamento. O inimigo era basicamente um: o preço do diesel, ajustado diariamente. E, em meio à greve, o governo acabou mudando o sistema de reajustes.
Quando Michel Temer assumiu a presidência, em 2016, a Petrobras havia adotado uma política de ajuste em paridade com o mercado internacional não somente para o diesel, mas também para gasolina e gás residencial, industrial e comercial, o que poderia significar aumento ou redução.
Em texto publicado em seu site, antes da suspensão dos aumentos diários, a Petrobras detalhava: “Nossa área técnica de marketing e comercialização terá delegação para realizar ajustes nos preços, a qualquer momento, inclusive diariamente”. Em outro trecho, afirma levar em consideração “o preço de paridade internacional (PPI), margens para remuneração dos riscos inerentes à operação e o nível de participação no mercado”.
Para o consumidor que simplesmente vai ao posto abastecer seu veículo é difícil de compreender. Em outras palavras, a companhia justifica a prática dizendo que, quando o petróleo aumenta de preço na Europa ou nos Estados Unidos por conta de um frio rigoroso e maior consumo, por exemplo, o reflexo também chega ao Brasil por causa de cotações definidas nas bolsas de Nova Iorque ou Londres. No meio da semana, no entanto, após o anúncio de suspender esses ajustes diários e após Temer falar em “revisão” dessa política, as dúvidas sobre como esses preços chegarão ao consumidor final só crescem.
No site, a Petrobras mostra a evolução diária dos valores, sempre estabelecidos para as distribuidoras, mas sem tributos. Tomando o diesel como exemplo, o valor da tabela da distribuidora, sem tributos, e que depois vai repassar o produto às bombas, entre 12 de abril e 26 de maio, passou de R$ 1,95 a R$ 2,10. Para o consumidor final, o diesel dobrou de preço de 2016 para cá. Recentemente, ainda em meio às manifestações dos caminhoneiros, emissoras de TV noticiavam valores de R$ 3,90 no postos de combustível do Rio Grande do Sul. A questão dos impostos é outro nó a ser desfeito e o Congresso foi chamado a colaborar para zerar Cide e PIS/Cofins, tributos que incidem sobre o preço.
Quanto à gasolina, a estatal também havia anunciado no início da última semana ter feito “a quinta redução” consecutiva para as distribuidoras, mas acabou informando aumento de 0,74% na quarta-feira. Muito antes disso, porém, os índices de inflação divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) já registravam a escalada no valor do litro. Em 2017, quando divulgou o IPCA, índice de inflação oficial do governo, o IBGE informou 2,95%, resultado considerado baixo se comparado à meta de 4,5%.
A pesquisa detalhada mostra, porém, o grupo dos transportes entre os que mais avançaram em termos de preços: alta de 4,1%. Nesse grupo são analisados itens como diesel e gasolina, o primeiro com alta de 10,32% e o segundo, 8,32%. O IBGE ainda apurou que, somente no ano passado, foram 115 reajustes, acumulando mais de 25%.
A inflação oficial também mostrou a escalada do preço do gás, analisando-se o número cheio de 2017. O botijão de 13 quilos, que faz parte das despesas apuradas no grupo Habitação do IPCA, já tinha subido 16% no ano passado, e vem disparando neste ano. O consumidor tem se perguntado por que os índices de inflação mostram-se tão baixos se produtos como gasolina e diesel vinham sendo ajustados diariamente, e é com combustível que se transporta quase tudo. No Brasil, a inflação oficial é definida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) e tem um centro de meta de 4,5% ao ano, com margem de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo, conforme regra estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional.
O indicador estaria dentro da tolerância se tivesse fechado em 3%. Os 2,95% apurados em 2017 mostraram resultado abaixo disso. Uma das explicações seria o menor consumo, afetado por diminuição da renda e por desemprego em alta. Outro indicador, o Índice de Preços ao Consumidor (INPC), fechou 2017 em 2,07%. O índice também levantado pelo IBGE mede preços para as famílias que ganham até cinco salários mínimos por mês, e é geralmente usado nos cálculos feitos para acordos entre patrões e empregados quanto a aumentos salariais. Esse resultado ficou ainda menor que a inflação oficial.
No grupo de alimentos os preços mostram desaceleração, mas é sempre o combustível que mais puxa para cima os cálculos. E a partir de agora, com os efeitos da paralisação, com verduras, carnes e leites estragando, ainda que os abusos possam ser fiscalizados pelos órgãos de defesa do consumidor, o custo de determinados itens aumenta e esse valor também deverá ser repassado à ponta do consumo.
O preço da volta
O governo federal precisará de R$ 9,6 bilhões para bancar a baixa no preço do diesel prometida aos caminhoneiros. Na última quinta-feira, o noticiário destacou o anúncio sobre retirar benefícios concedidos à indústria química, praticamente eliminar incentivos para exportadores e cancelar parte de gastos com programas públicos. As medidas publicadas em edição extra do Diário Oficial da União buscam viabilizar o desconto de R$ 0,46 por litro do diesel na bomba.
Entre os programas públicos que possivelmente perdem verbas estão políticas de enfrentamento à violência contra a mulher, fomento à produção pesqueira, assistência técnica para a agricultura familiar e ainda concessões de bolsas por meio do Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento das Instituições de Ensino Superior (Proies).
Correio do Povo
POLÍTICA
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