Executivo municipal entende que privatização da água trará benefícios para os mais pobres
Contrários a privatização entendem que não há garantia de melhores serviços | Foto: Ricardo Giusti
O debate sobre a privatização da água em Porto Alegre ganhou corpo no início de março com a instalação da Frente Parlamentar em Defesa do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) na Câmara de Vereadores. O objetivo da comissão é impedir o que considera a privatização da autarquia a partir do Projeto de Emenda à Lei Orgânica 010/17.
A proposta - que foi retificada no final do ano passado e deixou de fora o abastecimento e tratamento de água do contexto de terceirização - prevê a exploração do sistema de tratamento de esgoto a partir de Parcerias Público-Privadas (PPP). O projeto, no entanto, acendeu a luz de alerta dos servidores do quadro do Dmae.
Incomodados com a iniciativa do Executivo, sindicatos e associações de servidores saíram em defesa da autarquia. A mobilização resultou na criação da frente parlamentar, que rejeita a privatização dos serviços de coleta e tratamento de esgoto.
O projeto é polêmico e reacende uma discussão antiga em todo o mundo. Na contramão de muitas cidades europeias, que remunicipalizaram os sistemas de água e esgoto a partir dos anos 2000, insatisfeitas com os resultados obtidos a partir de privatizações, a Capital gaúcha retoma o debate sobre o tema.
E fomenta a possibilidade de entregar uma autarquia superavitária - que rende R$ 100 milhões por ano aos cofres do município - ao setor privado. Conforme o Observatório Corporativo Europeu - site que monitora casos de remunicipalização em todo o mundo -, após um período de privatizações dos serviços de água e saneamento, cidades como Paris, Bordeaux, Genebra, Turim, Suttgart, Berlin e Budapeste remunicipalizaram o tratamento e distribuição de água e o saneamento básico.
AUTARQUIA COMO REFERÊNCIA
Químico do Dmae, Marcos Calvete reforça que os serviços prestados pela autarquia se equiparam aos melhores oferecidos no país no que diz respeito à coleta e distribuição de água.
“Dmae é modelo no Brasil no tratamento de água. Acompanhei isso durante 15 anos e digo com segurança, pouquíssimas companhias no Brasil e na América Latina têm uma estrutura tão preparada, tão completa e que atende todo o escopo legal como o Dmae atende. Dmae é modelo, é referência”.
Segundo Calvete, atualmente, a empresa tem 80% da capacidade instalada em estações de tratamento. Apesar de a autarquia contar com uma série de projetos prontos, faltaria vontade política para executá-los. “O Dmae tem condições de enfrentar a questão do esgotamento sanitário sem deixar nada a dever a qualquer empresa privada. É só deixar o departamento usar os recursos que ele capta, a partir das contas de água, que fará o mesmo trabalho que o prefeito gostaria de entregar à iniciativa privada”, compara.
DMAE COMO SUS
Em relação à decisão de cidades europeias de remunicipalizar sistemas de água e esgotamento sanitário, o especialista avalia que o departamento cumpre também uma função social. “O Dmae, de certa forma, é um órgão auxiliar do SUS. Isso tudo é política de saúde, é uma política de saúde que é invisível para a população. Cada real investido em saneamento equivale a R$ 4,00 em saúde, esse é um número consolidado”, alerta. E acrescenta: “os países desenvolvidos têm clareza disso, viveram a experiência (privatização) e voltaram atrás. Por que vamos ir na contramão?”
Ao lembrar que o Dmae tem 84% de aprovação da população da Capital - dados disponíveis no site da autarquia -, Calvete reitera a importância do órgão nas regiões mais pobres da cidade, principalmente para evitar doenças de veiculação hídrica. “Quando tu entregas o saneamento a uma empresa privada, ela visa o lucro. Se tu tens o Dmae, que é uma empresa pública e quer o bem social, se ela precisa levar um caminhão-pipa com água para as pessoas que não têm dinheiro para pagar a conta, ela vai levar. Porque nosso compromisso é com saúde pública.”
Entre as 100 maiores cidades do país, Porto Alegre é o 24º município no que diz respeito ao saneamento básico
PROJETO PARA OS POBRES
Além de também destacar que cada real investido em saneamento equivale a R$ 4,00 economizados na Saúde, o prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Júnior, afirma que o projeto visa atender a população mais carente da Capital, em lugares nos quais os índices de tratamento de esgoto cloacal são “de países subdesenvolvidos”.
O objetivo é evitar o surgimento de várias doenças que atingem crianças e idosos. “Estamos falando de pessoas carentes, pobres. É para elas que é esse projeto, que, aliás, é o que o Rio Grande do Sul está fazendo, as cidades mais evoluídas do Brasil estão fazendo, independente de que partido esteja na gestão. É o que o mundo inteiro que conseguiu evoluir fez. Eu até estranho que ainda tenha isso aqui. Até parece que são os movimentos do atraso que tentam impedir a qualidade de vida dos mais pobres”, observa Marchezan.
O projeto aponta que 47,9% dos logradouros dispõem de malha coletora para o esgotamento sanitário. Somente para coleta e tratamento de esgoto, seriam necessários R$ 1,7 bilhão, montante que representa duas vezes mais do que toda a dívida líquida do município e 40 vezes superior à capacidade anual média de investimentos na última década com recursos do Dmae.
“A ideia é a gente fazer uma concessão para o setor privado, para que ele possa fazer investimentos vultuosos e que são necessários para a gente trazer o futuro para o presente. E depois de 10, 15 ou 20 anos, depende do prazo da concessão, a iniciativa privada devolve a estrutura para a máquina pública. Então, não há de se falar em privatização, não há de se ideologizar isso”, rebate o prefeito. Procurada pela reportagem, a direção do Dmae não se manifestou sobre o projeto.
O Projeto de Emenda à Lei Orgânica 010/17 prevê a exploração do sistema de tratamento de esgoto a partir de Parcerias Público-Privadas
TARIFA MAIS CARA
Professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), o engenheiro Dieter Wartchow alerta que na última década a autarquia “repassou R$ 1 bilhão para recuperar o sistema de drenagem pluvial, mas os recursos não teriam sido aplicados nisso”. O ex-diretor geral da Corsan e do Dmae também chama atenção para a possibilidade de aumento no valor das tarifas caso prospere a parceria público-privada.
“O Dmae é uma autarquia municipal, com autonomia orçamentária, e recolhe menos tributos do que a companhia estadual (Corsan), que é uma economia mista. Existe grande diferença nas estruturas de tarifas. A tarifa do Dmae é mais baixa do que a da Corsan, pois há uma diferença de impostos em 40% do modelo de gestão”, explica Wartchow.
O professor afirma que o Dmae tem projetos prontos para a ampliação dos serviços de saneamento básico. Salienta ainda que Porto Alegre está em 19º lugar no ranking das cem maiores cidades avaliadas no país em abastecimento de água e esgotamento sanitário. “O Dmae conta com uma estrutura pronta de esgoto sanitário. É preciso fazer o serviço de formiguinha, fiscalizar ligações irregulares, trechos irregulares, interligar sistemas, trabalho de pesquisa, de campo, educação, tudo o que o setor privado não quer fazer, só quer o bem bom. Se der condições e oportunidade, poderá avançar na coleta sanitária”, pontua.
LITRO DE ÁGUA A R$ 0,032
Coordenador do Núcleo Sindical do Dmae, Alexandre Dias Abreu afirma que não há justificativa para enviar qualquer projeto de privatização ou criação de PPP, uma vez que o Departamento já atinge 100% da população com água tratada e potencial para tratar até 80% do esgoto produzido pela cidade.
“Um detalhe que muita gente não se dá conta é que o valor de 1 litro de água do Dmae hoje é R$ 0,032. É água tratada. E leva em consideração todos os insumos que são aplicados no tratamento e toda extensão de rede desenvolvida para que a água chegue na casa das pessoas”, compara. O cálculo é resultado da divisão do valor da tarifa social, R$ 32,50, por um metro cúbico (equivalente a 1 mil litros).
Abreu reforça que o PL 010 propõe a privatização do Dmae ou de serviços do departamento. “A autarquia tem capacidade técnica e condições financeiras para dar conta da demanda da cidade”, garante. Ele afirma que a mobilização vai continuar dentro e fora do plenário da Câmara de Vereadores. “Tem setores da iniciativa privada que querem lucrar em cima daquela que é uma necessidade essencial: a água. Geralmente, a iniciativa privada, quando faz um encaminhamento, vai ao BNDES para pegar dinheiro público. Mas o lucro é privado. Não tem justificativa nenhuma, sob nenhum aspecto ou justificativa”, afirma. E completa: “Ao longo do tempo, o Dmae se mostrou um órgão eficiente, reconhecido pela população de Porto Alegre, e faz um trabalho de excelência. Um órgão com técnicos extremamente qualificados”.
EXEMPLO EUROPEU
Ao elencar uma dezena de municípios europeus e sul-americanos que retomaram os serviços - como Paris, Berlim, Turim, Oslo, Rosário, Montevideo -, Wartchow diz que existe hoje uma tendência à remunicipalização do tratamento de água e saneamento básico. “Barcelona também remunicipalizou o sistema e está trabalhando com política pública para ampliar reservas de água e suprir necessidades básicas daquela cidade. Hoje se discute também na Inglaterra a questão envolvendo a remunicipalização. Analisando essas histórias a gente vê que a intenção era se apoderar das reservas hídricas para diferentes usos, submetendo a população ao que o setor queria aplicar”, ressalta o ex-diretor do Dmae.
O especialista garante que uma eventual PPP vai transformar a política de Abreu reforça que o PL 010 propõe a privatização do Dmae ou de serviços do departamento. “A autarquia tem capacidade técnica e condições financeiras para dar conta da demanda da cidade”, garante. Ele afirma que a mobilização vai continuar dentro e fora do plenário da Câmara de Vereadores. “Tem setores da iniciativa privada que querem lucrar em cima daquela que é uma necessidade essencial: a água.
Geralmente, a iniciativa privada, quando faz um encaminhamento, vai ao BNDES para pegar dinheiro público. Mas o lucro é privado. Não tem justificativa nenhuma, sob nenhum aspecto ou justificativa”, afirma. E completa: “Ao longo do tempo, o Dmae se mostrou um órgão eficiente, reconhecido pela população de Porto Alegre, e faz um trabalho de excelência. Um órgão com técnicos extremamente qualificados”.
FRENTE PARLAMENTAR
Presidente da Frente Parlamentar em Defesa do Dmae, o vereador Mauro Zacher ressalta que sindicatos e ex-dirigentes da autarquia já se manifestaram contrários à PPP. “Estamos diante de um órgão superavitário, que deixa mais de R$ 100 milhões/ano de lucro no caixa da prefeitura. E isso ajuda em tempos difíceis, ainda mais com a prefeitura com dificuldades de honrar com o salário dos servidores públicos. Então, não faz o menor sentido”, critica.
Zacher afirma que existe um planejamento elaborado por técnicos que prevê que, em 2030, a cidade estará com 100% do esgoto tratado. “Mesmo que o prefeito tivesse vontade de fazer tudo, seria impossível, inexequível, porque não teria como abrir todas as ruas ao mesmo tempo”.
Conforme o parlamentar, há uma disposição do governo de apresentar um modelo liberal. A Frente pretende reunir pelo menos 16 vereadores para inviabilizar a aprovação do projeto e manter a administração pública. “Sabemos que tanto o esgoto quanto a água têm grandes grupos interessados em administrar”, reforça.
Zacher critica ainda o sucateamento do órgão. “Há uma tentativa do governo de, perante a opinião pública, convencer o cidadão que isso (PPP) é importante. Basta ver o corte de investimentos que foi feito no Dmae em 2017, mesmo sendo superavitário, justamente porque o governo monta essa estratégia”, sustenta.
CAPITAL É 24ª EM SANEAMENTO
O Instituto Trata Brasil é uma das entidades que acompanham o desenvolvimento do esgotamento sanitário do país. Formada por empresas com interesse nos avanços do saneamento básico e na proteção dos recursos hídricos do país, a Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) atua desde 2007. O instituto elaborou um relatório sobre os benefícios econômicos do saneamento no Brasil e produziu um mapeamento com a evolução do sistema no país entre 2005 e 2015.
De acordo com o Ranking do Saneamento Básico 2017, publicado pela entidade, entre as 100 maiores cidades do país, Porto Alegre aparece como a terceira melhor capital e o 13º município no que diz respeito à água tratada. Em saneamento básico, o estudo coloca a cidade em 24º lugar. Em relação ao ranking do ano anterior, Porto Alegre subiu 14 posições, deixando a 38ª colocação. Entre as capitais, ficou em terceiro, atrás apenas de Curitiba e São Paulo. Pelo quarto ano seguido, Franca (SP) aparece como a melhor cidade entre as 100 maiores.
O objetivo do estudo é chamar a atenção dos indicadores de saneamento nas 100 maiores cidades do Brasil. O trabalho usa dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, Ministério das Cidades – ano base 2015 – e avalia a evolução dos indicadores de água, esgotos, investimentos e perdas de água nos maiores municípios e com foco nas capitais brasileiras. Os dados nacionais de saneamento no Brasil mostram que 50,3% da população têm acesso à coleta dos esgotos e somente 42% dos esgotos são tratados.
OBSERVATÓRIO EUROPEU
A onda de reversão de privatizações na Europa também resultou em um rastreador de remunicipalização. O site foi criado com o objetivo de monitorar casos de cidades que decidiram retomar os serviços de tratamento e coleta de água e saneamento básico. Um mapa interativo é disponibilizado ao internauta que quiser pesquisar os principais processos de remunicipalização concluídos ou em andamento.
A partir do Projeto Justiça de Água, o rastreador de remunicipalização busca mostrar exemplos em diferentes partes do mundo que estão migrando de uma gestão de água privatizada para serviços de água e esgoto de gestão pública. A ideia é aumentar a visibilidade das remunicipalizações, reunindo experiências menos conhecidas. A ferramenta se concentra em entender por que e como ocorreu o processo, bem como os obstáculos encontrados e os resultados atingidos.
O histórico de privatizações na Europa remonta à década de 1990, quando muitos países privatizaram seus serviços de água e saneamento. Houve aumentos expressivos das tarifas assim como taxas de conexão que não eram acessíveis a famílias de baixa renda.
Como resultado, contratos com operadores privados foram encerrados. E, na maioria das vezes, seguindo o clamor popular. Cidades, regiões e até países decidiram encerrar a experiência de privatização da água e retomar a gestão pública. Estudo de abril de 2015 aponta que, em 15 anos, 235 cidades em 37 países remunicipalizaram o controle da água, beneficiando 100 milhões de pessoas. O objetivo é desenvolver sistemas públicos de abastecimento e esgotamento que atendam às necessidades dos cidadãos.
Correio do Povo
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