sexta-feira, 30 de junho de 2017

O Iluminismo britânico e a sociologia da virtude

Quando se fala em Iluminismo, costuma-se pensar em Voltaire, no racionalismo francês, na própria Revolução Francesa. Mas esse foi apenas um lado do fenômeno. No Reino Unido, especialmente na Escócia, ocorria uma fervilhante troca de ideias também, mas com abordagem bem distinta. No fundo, faz sentido falar em Iluminismos, pois foram mais de um. E esse aspecto acaba sendo ignorado inclusive por muitos professores de História. Mas esse Iluminismo britânico também ajudou a moldar a era moderna, e merece maior atenção.

É o que sustenta a historiadora Gertrude Himmelfarb em seu magistral O caminho da modernidade, em que divide o legado iluminista em três: o francês, o britânico e o americano. De forma resumida, as principais diferenças poderiam ser definidas como a “ideologia da razão” (França), a “sociologia da moral” (Reino Unido) e a “política da liberdade” (Estados Unidos). Na síntese de Luiz Felipe Pondé feita no prefácio da edição brasileira, “o Iluminismo foi uma tentativa de examinar três formas básicas da experiência humana a partir do exercício livre do pensamento, a saber, a moral, o conhecimento e a política”.

A ênfase dada ao lado francês fica clara quando se fala da “era da razão”, o que já soa um tanto prepotente, como se até então a humanidade vivesse no obscurantismo das superstições, e finalmente tivesse acordado para o poder do raciocínio. Mas é justamente essa a ideia que muita gente tem desse período de intensa produção intelectual, ignorando a maior cautela dos britânicos. Não que fossem irracionais; certamente não eram. Mas porque defenderam ideias mais moderadas, que não combinaram muito com aquele clima revolucionário.

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Ocorre que houve revoluções e “revoluções”. Não é possível colocar no mesmo saco a Americana e a Francesa, por exemplo. Uma teve influência de pensadores britânicos mais conservadores, e pretendeu resgatar valores perdidos e preservar as liberdades existentes na própria metrópole inglesa, enquanto a outra buscou destruir todos os pilares até então existentes, declarar guerra à aristocracia e à religião, e criar um mundo novo praticamente do zero.

Enquanto a Revolução Americana produziu uma das nações mais livres e prósperas do mundo, a Francesa levou ao Terror jacobino e ao regime ditatorial de Napoleão. O “Templo da Razão” acabou se revelando um tanto irracional. Muitos foram sacrificados em nome da Liberdade. Em boa parte, argumenta a autora, isso se deve ao esquecimento de certas lições defendidas pelos pensadores britânicos, como David Hume, para quem a razão era facilmente dominada pelos afetos e paixões.

Ou seja, o ceticismo britânico alertava para um ensinamento básico que foi jogado para baixo do tapete pelos racionalistas franceses: o de que os “hábitos são essenciais para nos mover num mundo do qual não temos grandes certezas contínuas”, no resumo de Pondé. Uma razão excessivamente autoconfiante pode produzir utopias perigosas, fruto dessa “arrogância fatal”, como diria Hayek, algo que o “espírito conservador” dos britânicos procurava evitar.

Os britânicos eram mais empíricos, reconheciam os limites da razão, com base na própria razão, e por isso rejeitavam ideias revolucionárias de um “mundo novo” parido do nada, como se a natureza humana fosse uma tábula rasa. Essa postura levava a um foco maior nas virtudes, não necessariamente as virtudes individuais, mas as “virtudes sociais”, tais como compaixão, benevolência, simpatia. Para os britânicos, elas naturalmente unem as pessoas, mais do que a razão, que teria um papel secundário, instrumental, diferente do papel primário e determinante dado a ela pelos philosophes.

Claro que tais distinções não são tão claras e estanques assim, e havia comunicação entre esses diferentes pensadores. Em alguns casos, um pensador francês poderia estar mais alinhado com o ponto de vista anglófilo, e vice-versa. Mas em linhas gerais essa divisão define bem o fator predominante em cada ala iluminista. O ódio contra a religião, por exemplo, era uma característica basicamente francesa, e foi Voltaire quem lançou sua famosa declaração de guerra conta a Igreja – “esmague o infame!” –, enquanto Diderot propôs “enforcar o último rei com as tripas do último padre”.

Esse não era, nem de perto, o clima dos Iluminismos britânico e americano, que foram liberais em termos de religião, compatíveis com um amplo espectro de crença e descrença. E, se a “era da razão” levou à guilhotina dos jacobinos, é preciso considerar que a “era da benevolência” dos britânicos não só garantiu maior estabilidade política como produziu uma incrível proliferação de atos filantrópicos. Para Himmelfarb, os britânicos confrontaram o mundo moderno com bom senso – o “senso comum” –, e seus filósofos dele se serviram em um período tumultuado e que ecoa ainda hoje em um estágio posterior da modernidade.

Isso ajudou a evitar derramamento inútil de sangue, assim como a impedir modelos totalitários no Reino Unido, cuja monarquia parlamentar sobrevive até hoje. “Piedade”, “empatia”, “benevolência”, esses foram conceitos marcantes para o Iluminismo britânico, para pensadores como Hume, Adam Smith e Burke. O “senso moral” era ainda mais importante que a razão para esses filósofos com forte senso prático.

Numa era de individualismo exacerbado, de tantos buscando monopolizar a razão, e da velha arrogância racionalista de que é possível e desejável se criar um “novo mundo” a partir do zero, com base em conceitos abstratos paridos do conforto do escritório de “intelectuais” e abandonando completamente as antigas tradições, talvez seja mais prudente deixar um pouco o fervor revolucionário dos novos jacobinos de lado e escutar o alerta dos britânicos. Mais prudência, mais ceticismo, menos utopia e menos febre revolucionária.

O mundo não começou hoje, tampouco com Voltaire e companhia. Seria bom um pouco mais de respeito por nossos antepassados e pela formação de nossas instituições, especialmente a moral, tão combalida nos dias de hoje, quase considerada “ultrapassada”.

Rodrigo Constantino

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