O Jornal O Estado de São Paulo vibrou com mais um quiproquó público protagonizado por figuras notórias por terem contribuído sobremaneira para a derrocada do PT (notadamente no processo que enxotou Dilma do Planalto) e suas linhas auxiliares nos últimos anos – motivado, talvez, pelo senso comum de que um time “desunido” perderia forças e abriria o flanco para o ataque do oponente.
Mas a celebração do periódico, tudo leva a crer, foi deveras precipitada, pois basta lançar um olhar mais apurado sobre o contexto destes confrontos para entender o quão salutares eles podem vir a ser na busca de soluções para os problemas do Brasil (e para desmascarar certos direitistas um tanto “canhotos”), e por que tal fenômeno não encontra eco nos “distintos” segmentos da esquerda nacional atualmente.
De um lado, observa-se discurso afinado, homogeneidade de idéias, padronização do pensamento; do outro, pluralidade de idéias, diversidade de opiniões relativas a um mesmo objeto, diferentes conceitos convivendo no mesmo espaço. É claro, pois, que dificilmente algum desentendimento (real) ocorrerá entre aqueles cuja liberdade de expressão é tolhida pelo politicamente correto; e é óbvio que debates acalorados serão frequentes entres aqueles cujas visões de mundo não irradiam a partir de líderes santificados em vida, mas são forjadas a partir do cruzamento de diferentes experiências, da intercessão de múltiplos conhecimentos práticos e teóricos, a partir dos quais busca-se encontrar a forma mais apropriada de equacionar conflitos do cotidiano e da vida em sociedade.
Ou seja, por mais que “diferentes” setores da esquerda divirjam no tocante aos métodos a serem empregados (da truculência trotskista à ocupação de espaços e hegemonia cultural gramscinianas), emulando a centenária disputa entre Bolcheviques e Mencheviques, eles seguem à risca uma cartilha de dogmas que jamais podem ser contestados por membros de seus grupos, sob pena de banimento – o que, por si só, elimina quase que por completo qualquer possibilidade de discordância interna. Um por todos e todos por transformar o mundo em uma Cuba de proporções planetárias.
Senão vejamos: você já viu (ou ao menos consegue imaginar) militantes de esquerda, seja de que vertente forem, posicionande-se contra cotas raciais em universidades? Defendendo um estado enxuto e focado em direitos negativos dos indivíduos – isto é, em garantir a propriedade privada e o cumprimento de contratos firmados voluntariamente? Advogando pela devida punição de criminosos a despeito de serem menores de dezoito anos? Fazendo qualquer coisa que não seja pedir mais e mais estado intervindo em cada aspecto de nossas vidas, enquanto combate o maior empecilho para tal meta totalitarista – o núcleo familiar?
Acho pouco provável. E aqueles que se aventuram em contestar os escritos sagrados desta seita (os quais, curiosamente, variam ao sabor do vento, conforme os interesses da “causa” estatizante, como o tratamento destinado aos homossexuais – outrora tidos como perpetradores de uma perversão da burguesia e hoje arregimentados na guerra contra a moral burguesa) acabam por serem condenados ao exílio ideológico, como o jornalista nova-iorquino Chadwick Moore, marginalizado em seu meio profissional após assumir posições avessas àquelas professadas pela quase totalidade dos veículos de comunicação, alinhados por completo à agenda globalista.
Do outro lado da arena política, a heterogeneidade de premissas não apenas é tolerada, mas constitui um valor em si. Vale invocar, aqui, as definições de visão irrestrita e restrita, segundo os ensinamentos de Thomas Sowell. A primeira admite a hipótese de pessoas supostamente iluminadas lograrem definir, do alto de suas sapiências, quais seriam os rumos ideais a serem seguidos pela humanidade. A segunda resigna-se em admitir que é no incessante embate de idéias que reside a verdadeira fonte de conhecimento, uma vez que este estaria disperso por toda a população, especialmente entre os cidadãos mais comuns.
Ora, posto que não se admite, segundo os pressupostos desta visão restrita, a qual caracteriza as correntes de direita, que autoproclamados intelectuais deliberem, de forma monopolista, sobre como solucionar todos os problemas de nossas vidas – prometendo o paraíso na terra e entregando 100 milhões de mortos como resultado -, torna-se absolutamente natural que divergências despontem aqui e acolá.
É bom que os esquerdistas (99% dos jornalistas entre eles) saibam, portanto, que “coxinha”, diferente de “mortadela”, não é tudo igual. Desde os conservadores até os anarcocapitalistas, há um considerável feixe de distintos (de fato, e não apenas na roupagem) vieses, os quais, inevitavelmente, irão colidir vez por outra. Diversos temas dividem o espectro político right-wing, entre eles o aborto, os entorpecentes, o controle de fronteiras, os limites de atuação do estado, dentre outros.
Para os adeptos da visão irrestrita, tal conjuntura deve ser esquisita mesmo: onde já se viu não haver um guru guiando a todos em um mesmo sentido, ao melhor estilo Mao, Stalin, Hitler, Pol Pot, Castro, Chavez, Morales? Assim fica complicado evitar o choque de opiniões, certo? Que bom! É argumentando que se chega a resoluções importantes e se alcança o desejado consenso em temas polêmicos. Ou não: podem compor um mesmo cenário político posicionamentos conflitantes, ainda que a custa de eventuais pendengas, como a relatada com muito gosto pelo Estadão, ou até mesmo como o debate sadio travado entre este articulista e o economista Luiz Mauad recentemente.
Como dizia meu avô: o que é da pessoa não se tira. Posso discordar de quase tudo que anda escrevendo Reinaldo Azevedo, mas ele afrontou o PT quando Lula era um semideus, e o valor disso é inestimável; é possível discordar vez por outra de Joice Hasselman, mas o fato de ela ter demonstrado aos jornalistas de direita da imprensa tradicional que é possível fazer sucesso trabalhando de forma autônoma abriu uma vereda que pode ser seguida por muitos outros; nem sempre consigo corroborar com tudo que afirma Olavo de Carvalho, mas seu pioneirismo em desmascarar o Foro de São Paulo foi um grande favor prestado a nosso país; Rodrigo Constantino não é dono da verdade, mas alertou para a recessão que aí está quando o Brasil produzia “pibão” às custas de muito keynesianismo.
E todos eles já entraram em rota de colisão em algum momento, para o deleite de seus leitores, que puderam prestigiar a troca de argumentos – e até de alfinetadas – e aprender muito a partir dela. Aliás, a crescente audiência de pessoas interessadas no conservadorismo e no liberalismo (a alardeada por FHC “onda reacionária”) certamente contribui para que estes clashes ocorram: será que brigar sem platéia teria alguma graça? Com torcida é bem melhor, sem dúvida.
Aviso aos viúvos do PT assanhadinhos para ver o circo pegar fogo: não adianta soltar foguetes porque a “nova direita” estaria se pegando na porrada – e achar que isso vai enfraquecê-lá. Ao contrário: é desse intenso debate interno que ela se retroalimenta e cresce (ao mesmo tempo em que separa alhos de bugalhos, Joices de Reinaldos, pseudoliberais de liberais), enquanto a esquerda prefere isolar-se em seus “safe spaces”, em suas bolhas onde é proibido pensar com a própria cabeça sem ser execrado, “protestando a favor” quando chega ao poder e se achando muito rebelde e dotado de senso crítico por xingar Trump e Bolsonaro ao comando de dog whistles.
Reinaldo Azevedo, no episódio em questão, baixou, sim, o nível com Joice Hasselman. O tom belicoso e desrespeitoso foi totalmente desproporcional e desnecessário. Sua atitude xucra de rotular de xucro pessoas que simplesmente lhe apontavam incoerências revelou sua visão irrestrita de mundo, incapaz de conviver com o contraditório, dando margem, inclusive, para acusações de que estaríamos diante de um socialista fabiano ávido por proteger supostos cupinchas do PSDB. E como discordar diante de tantas evidências?
E talvez ela, por sua vez, tenha dado mais Ibope do que merecia seu interlocutor. Mas ainda assim é preferível ver o pau quebrando do que ouvir zumbis entoando mantras e ladainhas em uníssono lá no outro lado.
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