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quinta-feira, 24 de novembro de 2016

O que seria de nós sem esse maldito capitalismo?

Por João Luiz Mauad
capitalismo-socialismo


Aproveitei o feriado prolongado e saí, no sábado, para um programa pouco usual, pelo menos para mim. Precisava comprar um par de tênis, além de estar devendo à minha mulher uma ida ao cinema. Estava na hora, portanto, de enfrentar as agruras de um shopping. Para quem é avesso a tumultos, um shopping lotado, sábado a tarde, pode ser um martírio dos grandes. Por isso, aquele fim de semana parecia perfeito, já que a cidade estaria vazia e deveria haver muito menos gente que o normal.
A primeira parada foi no cinema. Um enorme complexo, com quase vinte salas, modernas e confortabilíssimas, som e imagem perfeitos. O ingresso foi caro, já que estamos entre aqueles que financiam a benemerência dos políticos com idosos e estudantes, além da contumaz malandragem dos falsários. Esse, aliás, é um dos motivos que me afastaram dos cinemas, afinal, como todo mundo, não gosto de fazer o papel de otário. Porém, como muito bem lembrou minha mulher, eu não estava ali para aporrinhações, mas para me divertir.
Depois do filme, uma parada para um chopinho gelado. O bar ficava bem em frente à saída do cinema, num ponto estratégico, cujo aluguel deve custar uma fortuna. O sujeito sai do cinema, com sede, e é quase impossível resistir à visão daquele letreiro luminoso. O serviço, porém, era muito ruim. O garçom demorou uma eternidade para nos atender e o chope não era bom. Desse jeito, pensei cá com os meus botões, esses caras não vão durar muito tempo neste local. Saímos dali correndo, já que um pouco mais adiante havia outro bar.
Desta vez, não houve erro e degustamos alguns deliciosos chopes gelados, cremosos, com espuma no ponto certo, sem falar no atendimento cordial e eficiente. “Eis aí uma das grandes vantagens do regime de concorrência” – comentei. “Caso não goste de um produto ou serviço, o consumidor é livre para buscar outro fornecedor. A fuga dos clientes é, aliás, a maior punição que empresários ineficientes podem receber, muito mais efetivas e dolorosas do que qualquer multa prevista nos famigerados códigos de defesa do consumidor”.
A terceira parada foi na sapataria. Confesso que, atualmente, as opções são tantas que torna-se difícil a escolha. Havia centenas de pares ali expostos, nas cores e modelos os mais variados possíveis. Os preços, novamente, eram salgados, porém, se lembrarmos que perto de 50% do preço são tributos, não dá para crucificar o comerciante. Escolhi, inicialmente, três modelos para experimentar. Não gostei de nenhum deles e pedi ao atendente para ver outros dois. Ele sorriu e correu para apanhá-los. Enquanto esperava, comentei com minha mulher sobre o fato de o funcionário haver permanecido cordial e solícito, ainda que eu fosse um cliente muito chato e indeciso. Já ia começar mais um daqueles discursos sobre a soberania do consumidor no capitalismo, ou de como os interesses individuais daquele vendedor estão atrelados à minha satisfação, quando (para sorte dela) o rapaz retornou.
Enquanto esperava na fila do caixa, minha veia de administrador raciocinava sobre o destino do dinheiro que eu deixaria ali. Uma parcela seria destinada a pagar os salários do atendente, do balconista, dos funcionários administrativos. Outra parte serviria para o aluguel das instalações, para os impostos, taxas, emolumentos e comissões. Um bom pedaço proporcionaria a reposição do estoque, que envolve custos de transporte, armazenagem, mais impostos, etc. A última porção, provavelmente a menor de todas, seria contabilizada como lucro e, mesmo assim, apenas depois de pagos todos os demais custos e despesas inerentes ao negócio.
Eis um lado da moeda que muita gente ignora ou sequer pensa a respeito. A maioria entra numa loja dessas, examina as mercadorias expostas, não raro aluga o tempo dos funcionários e, no fim, vai embora sem comprar nada. Faz parte do negócio. Cabe a nós, e somente a nós, consumidores, decidir, voluntária e espontaneamente, se iremos trocar nosso dinheiro por algum produto ou não. Ninguém pode nos forçar a nada. Se eu, por exemplo, depois de ter experimentado todos aqueles pares de tênis, resolvesse finalmente que nenhum deles me agradou, não haveria qualquer penalidade por isso.
Um pensamento puxa o outro e comecei a imaginar quanto os donos daquela loja teriam investido em instalações, estoques, treinamento, etc., sem que tivessem qualquer garantia de que eu, um dia, entraria ali, disposto a trocar o meu dinheiro por um dos produtos da vitrine. Ou, indo um pouco mais à frente, que outros milhares de consumidores fossem adentrar, mensalmente, aquele estabelecimento para comprar suas mercadorias, na quantidade e velocidade necessárias para que o negócio se tornasse lucrativo.
Concluí que foram necessários algumas centenas de milhares de reais. Investidos, repito, sem qualquer garantia de retorno. E então, pensei, o que faz a loja com os eventuais lucros, depois de pagar todas as despesas? Provavelmente, reinveste a maior parte deles no próprio negócio. Porém, por que deveriam os donos daquela empresa repor aquele par de tênis que eu acabara de comprar ou investir na ampliação do negócio? Competição. Se quiserem permanecer no negócio, têm que ofertar sempre o que houver de mais moderno no mercado, a um preço sempre mais barato, sob o risco de serem engolidos pela concorrência. Tudo isso sem qualquer garantia de que amanhã as vendas não caiam, que os clientes descubram um concorrente melhor e mais em conta.
Pensando bem, não é nada fácil a vida dos capitalistas. E, no entanto, esses caras são, freqüentemente, pelo menos em Pindorama, os sujeitos mais injuriados da paróquia. Ninguém pensa em quantos empreendedores “quebram a cara” todo santo dia, pelos mais variados motivos, e que somente uma minoria consegue vencer os percalços e estabelecer-se. Ou que os grandes e odiados magnatas são pessoas cuja renda provém, na maioria das vezes, do empenho para satisfazer o consumidor e dos riscos inerentes à sua atividade. Quase ninguém para e pensa que a poupança de gerações pode virar pó, da noite para o dia, bastando para isso um breve cochilo ou a interferência nociva da mão pesada dos governos. A maioria só costuma olhar, com grande inveja, para a riqueza de uns poucos privilegiados.
Paguei pelo tênis que comprara e despedi-me do solícito vendedor com um “muito obrigado”. A resposta dele não foi outra: “muito obrigado, senhor”. Já notaram como essa costuma ser a despedida padrão, sempre que acabamos de comprar alguma coisa? E, pensando bem, o duplo “obrigado” faz todo sentido. Encerrava-se ali uma transação que foi benéfica para todo mundo. Eu disse “obrigado” porque acabara de adquirir algo que valia, para mim, mais do que o dinheiro que dei em troca. Por outro lado, o vendedor agradeceu por si – já que certamente acabara de embolsar uma comissão – e pelos donos da loja, que fizeram uma troca também lucrativa. No fim, todo mundo saiu ganhando.
Já era noite, quando saímos do shopping em busca de um bom lugar para jantar. Para nosso azar, no entanto, encontramos pela frente um enorme engarrafamento, causado por um sinal (semáforo) apagado. Perdemos ali quase uma hora, graças à incompetência e ao descaso do serviço público, pois, além do problema elétrico – provavelmente causada por falha de manutenção -, não havia no local um único guarda de trânsito para colocar alguma ordem naquele tumulto.
“É notável como os serviços públicos, os únicos que pagamos não por opção, mas pela mais absoluta coação, são exatamente aqueles que mais deixam a desejar” – esbravejei, já de mau humor, depois de conseguir ultrapassar o tal semáforo queimado. “Dá só uma olhada nesse asfalto, todo esburacado. Assim não há suspensão que aguente! Em compensação, olhe quantos radares para multar o excesso de velocidade. Quando é para multar, os caras não economizam. Ainda bem que não dependo da prefeitura para conseguir meus sapatos, pois fatalmente estaria andando descalço…”.
Minha mulher, que conhece há bastante tempo o marido irascível que tem, especialmente quando é vítima da inépcia dos governos, esperou que eu acabasse aquele longo discurso anárquico para propor que, ao invés de jantarmos fora, pedíssemos algo para comer em casa, com o que concordei de imediato.
Pedimos, então, comida japonesa pelo “delivery” habitual. Meia hora depois, embora já estivesse chovendo naquele momento, um motoqueiro batia n nossa porta, trazendo consigo nossos sushis e sashimis, que, além de deliciosos, trouxeram o meu bom humor de volta. Enquanto pagava a conta ao solícito e eficiente entregador, não por acaso lembrei da famosa sentença de Adam Smith:
“Não é da benevolência do padeiro, do açougueiro ou do cervejeiro que devemos esperar que saia o nosso jantar, mas sim do empenho deles em promover os seus próprios [e legítimos] interesses”.
Sábias palavras!  O cara sabia das coisas.
* Artigo publicado originalmente em Nov/2007




SOBRE O AUTOR

João Luiz Mauad

João Luiz Mauad

João Luiz Mauad é administrador de empresas formado pela FGV-RJ, profissional liberal (consultor de empresas) e diretor do Instituto Liberal. Escreve para vários periódicos como os jornais O Globo, Zero Hora e Gazeta do Povo.


Instituto Liberal

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